Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

À procura de carrascos

MÍDIA GAÚCHA

Gilmar Antonio Crestani (*)

O destino traçara a sorte de dois nascituros. Deveriam reinar em prejuízo de seus próprios ascendentes. Bem, mas ainda havia tempo para impedir que o oráculo se concretizasse.

Laios determina que seu filho, Édipo, seja entregue às feras. Um pastor da corte deixou-o no monte Citéron, perto de Tebas, para ser devorado pelas feras, mas outro pastor, coríntio, encontra-o e o entrega a Políbios, rei de Corinto, que o cria como filho seu. Depois este menino acaba matando Laios e casando com a própria mãe, mas sem saber que eram seus pais (Édipo não sofria do complexo que leva seu nome…).

Outra personagem com trajetória semelhante à de Édipo, embora menos conhecida, foi Ciro, o Grande. Não confundir com Ciro o Jovem, nem com Ciro, o pequeno ou das Patrícias…

Conta Heródoto que o rei da Média, Astíages, sonhou que a filha Mandane urinava em tal abundância que inundava a capital do reino e toda a Ásia. O que faz o rei? Obrigou-a a desposar um persa, do reino vizinho, chamado Cambises. Mas outro sonho o fez perder o sono. Neste, pareceu-lhe ver sair do seio da filha uma videira que cobria toda a Ásia. A interpretação dos magos lhe recomendava precaução. Assim, quando Mandane estava prestes a dar à luz Ciro, chamou-a da Pérsia. Astíages encarrega de eliminar seu neto Hárpago, seu parente. Sendo Ciro também parente de Hárpago, este toma uma solução salomônica: incumbe-se de eliminar a criança, mas delega o serviço sujo ao pastor Mitridates. Este, cuja mulher acabara de dar à luz uma criança morta, substituiu-a por Ciro e o cria como se filho seu fosse. O menino cresce e, numa brincadeira, acaba denunciando sua ascendência real, não só por estabelecer regras a serem obedecidas mas, principalmente, por punir quem as descumpre.

Ciro saiu-se bem, não só por ser um bom argumentador, mas porque Astíages distinguiu nele os próprios traços fisionômicos. Tendo como certo que o menino era seu neto, descontou em Hárpago, servindo-lhe em banquete o filho deste. Hárpago engoliu mais esta de seu soberano, e Ciro foi enviado aos seus pais, Cambises e Mandane, na Pérsia. Certo da vendeta, Hárpago manda constantes presentes a Ciro. Chegado o momento, dá uma de jornalista araponga e envia uma lebre com uma carta escondida no ventre, contando a antiga pretensão de Astíages de matá-lo, e convidando-o à vingança. Ciro marchou em direção à Alta Ásia, derrubou Astíages, vingou Hárpago e estendeu seu poderio por toda a Ásia.

Deixemos de lado esta tal fatalidade que, depois de Santo Agostinho, ninguém mais se livra do livre arbítrio, e, por vezes, sequer do arbítrio, que "outra mudança faz de mor espanto", como diria Camões, pois "que não se muda já como soía".

O oráculo condena o leitor

Os oráculos atuais estão vaticinando que a opinião do leitor é questão menor. Um costume de "mor espanto" toma conta das redações. O espaço que serviria como uma espécie de ombudsman informal, não-remunerado, está sendo aviltado pelos jornais.

Entende-se a dificuldade de seleção, não só pela quantidade de cartas que devem chegar às redações, mas até pela (falta de) qualidade das manifestações. Alguns veículos estabelecem pequenas regras, como faz o Observatório, vetando certas expressões política e gramaticalmente incorretas. O Pasquim21 trabalha a informação do leitor, sem diminuí-lo, chamando-o ao debate.

Na grande imprensa, quando o missivista triunfa na triagem, resta-lhe apenas um espaço minúsculo para apresentar sua defesa. Por vezes, defende-se de algo que ocupou mais de uma edição do jornal ou revista. Esse mesmo leitor, que deveria ter sido ouvido pela reportagem, mesmo que na rubrica "o outro lado", não dispõe de espaço adequado para seu justo espernear. (Nunca ouvi dizer que alguém tenha pesquisado no espaço destinado aos leitores…)

E pode ser pior. E agora chego ao fulcro da questão. É praxe na imprensa: quando um missivista, diante de pesadas acusações que lhe são feitas, faz acusações tão ou mais contundentes, o veículo dá a última palavra com "o fulano de tal responde" ou "resposta da redação".

Do tempo do carteiraço

Recentemente, a Folha de S.Paulo fez uma série de reportagens sobre os números da reforma agrária. Deve ter entrevistado mais de uma vez o ex-ministro Raul Jungmann para confirmar e firmar a convicção e publicá-la. O que me chama a atenção é que, quando o ex-ministro ocupou o espaço Tendências/Debates (29/4, pág. A 3) tentando se defender das acusações, o jornal escalou os jornalistas que haviam produzido as reportagens para contra-atacar. Para consumo do leitor, eles ficaram com a última palavra.

Pode ser pior? Pode, sim, quando o jornal simplesmente ignora o missivista que o critica e só publica cartas dos "machões a favor". O leitor de Zero Hora sabe do que estou falando. Inventou até um Conselho do Leitor, que é uma forma de não ter conselho algum e muito menos manifestação de leitor. Não faz muito, o principal colunista político do grupo RBS, que administra a página 10 do jornal, atribuiu ao jornalista Willians Barros coisas que ele não disse, afirmando que este "não vê problemas na participação de Raimundo Rosélio Freire, um dos seqüestradores de Abílio Diniz".

Como resposta à retificação solicitada, o jornalista da RBS saiu-se com esta pérola: "Já o publicitário Willians Barros diz que foi mal interpretado no sábado na síntese publicada sobre o convite do Fórum ao ?companheiro Raimundo?. Com a gentileza e educação que lhe são peculiares, garante que não nutre simpatias por seqüestradores". A tréplica não chegou a ser publicada. Willians, que trabalha em veículos internacionais de informação, não encontrará espaço na RBS para se defender da acusação. Para todos os efeitos, continuará, após a fina ironia do administrador de recados, mesmo "com a gentileza e educação que lhe são peculiares", a pecha de "companheiro de Raimundo".

Quando relatei o expediente que a RBS teria usado para alavancar o Ibope de um programa local da RBS-TV, o Teledomingo, a RBS usou do editorial do jornal Zero Hora para se defender. Direito e poder dela. Mas convém atentar que ela não vê com bons olhos quem usa a internet! Esta forma incontrolável de as pessoas defenderem seus pontos de vista ou para darmos nossa versão das informações que possuímos. (Depois do contragolpe, a imprensa da Venezuela deve estar pensando a mesma coisa!) Além disso, usa um linguajar parecido com o dos "tiras" das peças de Nelson Rodrigues. O conceito de liberdade de expressão adotado pela RBS não poderia ser mais revelador: "multiplicada pela internet, que dá poderes incontroláveis e anônimos".

E, restos de um tempo que carteiraço funcionava, ainda ameaça: "A RBS, evidentemente, já está adotando as medidas judiciais cabíveis…" A conclusão foi pior que o soneto: "Além disso, o caso é exemplar no momento em que espertalhões procuram desacreditar os veículos de comunicação com o indisfarçável propósito de impor suas idéias e interesses sem a vigilância da sociedade." Que história é essa de "vigilância da sociedade"? Só faltou falar na defesa dos bons costumes, da família e da propriedade…

Não basta ter prepostos

Mesmo diante de um rei, um simples pastor pode e deve dar-se ao respeito. Mas, na verdade, ninguém quer se indispor. Quem ousa mostrar a nudez de rei-patrão? Como mostra aquela charge do patrão falando ao colunista, de outro proscrito da grande imprensa, o cartunista multipremiado Santiago: "Escreve aí na sua coluna. Nós, os colunistas independentes…". O rei pode até ter interesse em eliminar a verdade, mas cabe ao pastor escolher de que lado da história ele prefere ficar.

A matéria de capa da edição de abril da revista Imprensa traz a seguinte manchete: "Nocaute?" e o complemento "Rio Grande em pé de guerra". Trata da relação conflituosa entre a RBS e o governo do estado. Chama atenção a alegação, em defesa da RBS, de que a maioria de seus jornalistas é petista. Quem pensa assim deveria conhecer melhor a história da humanidade, as opções que os pastores têm, e, em especial, o livro Os carrascos voluntários de Hitler, de Daniel Jonah Goldhagen, da Universidade de Harvard.

O medo ? e isso não é trocadilho com os medos, da Média ? não é bom conselheiro. Provam as lendas de Édipo e de Ciro. Infelizmente, a bem da verdade, na defesa de seus reinos os poderosos são iguais em todos os tempos. Esquecem que a eliminação do outro pode não se revelar a solução mais adequada. Além disso, não basta ter prepostos de confiança, mesmo que familiares. Um dia a casa cai, e o proscrito apontará o dedo para a nudez do rei. A informação deve ser tratada como uma criança recém-nascida, cujo destino também nos interessa.

(*) Funcionário público federal; sítio: <http://www.crestani.hpg.com.br/>