Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Produção de conteúdo, eis a questão

TV DIGITAL
(*)

Nelson Hoineff (**)

O debate sobre a escolha do padrão de televisão a ser adotado no Brasil vai ganhando novos contornos à medida em que fica claro que o ministro das Comunicações, Miro Teixeira, pensa mesmo no desenvolvimento de uma tecnologia própria e não tem pressa de chegar a uma decisão. De sua parte, as redes de televisão e os fabricantes de equipamentos eletrônicos acham que o país já esperou tempo demais.

O governo apóia-se no fato de que a televisão digital ainda não decolou nem mesmo nos EUA ? onde até agora foram vendidos apenas 300 mil televisores ?, enquanto os empresários sustentam que um atraso ainda maior na decisão brasileira (o próprio ministério prevê pelo menos mais quatro anos) pode ser fatal para a indústria do entretenimento e de equipamentos.

No meio desse debate, pouca importância está se dando à questão do conteúdo. É ele, no entanto, o fim de tudo. A televisão digital não é uma questão de escolha de padrão tecnológico ? até porque todos são cada vez mais parecidos e se tornarão iguais em pouco tempo ?, mas do desenvolvimento de softwares e conteúdo.

O Brasil é hoje um dos maiores consumidores de televisão do mundo e um dos menos ativos produtores de programação. O brasileiro vê mais televisão do que quase todos os outros povos, mas se reconhece muito pouco nela ? ao menos de uma forma autêntica, não perfumada ou estilizada. A estreiteza do volume de produção, e sobretudo da diversidade dessa produção, é responsável pelo triste quadro que se vê hoje em relação à qualidade da nossa televisão. Há exceções, claro. Na televisão aberta, o índice de nacionalização da produção é alto nas maiores redes. Em outras, no entanto, o nível da programação é tão vulgar, tão ruim, que mesmo quando o apresentador de uma atração é brasileiro, gostaríamos que ele não fosse.

Calcanhar de Aquiles

Em toda a televisão aberta, mesmo as poucas que exibem um nível satisfatório de produção nacional, essa produção limita-se quase que inteiramente ao que é feito em seus próprios estúdios. O impacto da produção diversificada, independente, é quase nulo ? e menor ainda o da produção regional.

A razão poderia estar na falta de produto de boa qualidade disponível. E é aqui que essa relação se torna mais irônica. O Brasil tem hoje uma das maiores e melhores produções espontâneas de audiovisual do mundo. Uma produção que depende das leis de incentivo fiscal para existir ? e da disposição das empresas em aplicar ali o seu imposto de renda. Da produção terceirizada nada se sabe, porque ela não é acionada. O que se sabe é que um produto televisivo de qualidade não tem a menor chance de ficar abaixo das minguadas fatias de público que o mercado está reservando a quatro entre seis redes de TV.

Na televisão por assinatura, a situação não é melhor. A maioria esmagadora das quase 200 redes que trafegam pelos satélites domésticos brasileiros é estrangeira. É um quadro típico da TV por assinatura em todo o mundo, mas o fato é que nos 12 anos que se passaram desde a implantação da TV paga no Brasil não fomos capazes de montar uma grande rede independente, uma só programadora brasileira, com exceção da Globosat. Nesse imenso mercado de conteúdo que é a TV por assinatura, onde há uma oferta diária de mais de duas mil horas de programação, a produção brasileira independente participa com menos de 2% ? e a produção regional se aproxima do zero.

Esse cenário acena para o fato de que a implantação das políticas para a TV digital no Brasil não se restringe à política para a implantação dos padrões. Esse é apenas o primeiro passo de uma caminhada muitíssimo mais ampla. A certeza é que temos de traçar agora esse caminho e não depois dos primeiros passos, ou ficaremos vagando perdidos durante muito tempo. O calcanhar de Aquiles da questão digital não está na opção pela tecnologia, mas na opção sobre o que fazer com o conteúdo que essa nova televisão ? podemos quase dizer esse novo meio ? vai consumir.

Multiplicado por mil

As capacidades mais importantes da televisão digital, no que diz respeito ao conteúdo, repousam, em primeiro lugar, no extraordinário aumento da portabilidade de sinais ? portanto da demanda de conteúdo. Em segundo, na criação de formas narrativas originais, que não signifiquem a multiplicação do conteúdo como ele é elaborado hoje, mas na criação de novos modelos, novas formas, que levem em conta os potenciais interativos, por exemplo; ou estéticas próprias para a TV de alta definição, que se seguirão ao standard digital; ou, ainda, à construção de conteúdos multifacetados.

Um admirável mundo novo se abre para a construção de conteúdo. Temos que definir agora se seremos produtores e exportadores de imagens brasileiras, de um conteúdo diversificado, plural e original, ou se simplesmente ampliaremos nossa já enorme capacidade de importar programação, de rezar por cartilhas culturais que nada têm a ver com a nossa cultura, e nos manter mais subservientes do que já somos a essa unidirecionalidade do trânsito de informações, produzindo cada vez menos e com pior qualidade.

Se um padrão tecnológico estritamente brasileiro será conseguido, como pretende o ministro das Comunicações, ou se isso ficará restrito ao desenvolvimento dos middleware, programas que controlam internamente o sistema, é uma questão polêmica. É importante que se examine quais os benefícios, em economia de royalties, que isso trará para a indústria. Muito mais importante, no entanto, é examinar o impacto do cronograma de implantação do sistema sobre a elaboração de uma política para o desenvolvimento de softwares e de conteúdo brasileiros.

Essa é uma dúvida que não pode ser escamoteada. Montar um padrão digital brasileiro é sem dúvida motivo de grande orgulho e fonte de divisas para o país. Mas devemos nos perguntar se o turning point não está um pouco mais adiante. O fato é que o desenvolvimento e exportação de sistemas de gerenciamento e conteúdo digital próprios multiplica por mil esse orgulho e essas divisas. Gera centenas de milhares de empregos. Gera também autoconhecimento, auto-estima. Gera nacionalidade, que não existe sem uma consistente produção cultural. Gera cidadania.

Produção e invenção

Esse deve ser um motivo de grande preocupação ? porque é uma oportunidade que não se repetirá em muitas décadas. A construção do conteúdo na nova realidade digital tem importância análoga ao do desenvolvimento de softwares quando o mercado de informática começou a migrar das grandes empresas para o consumidor. Quem desenvolver conteúdo digital adequado vai sair na dianteira quando o sistema for implantado. E "conteúdo digital" não quer dizer programação gravada e finalizada digitalmente; significa, isto sim, conteúdo que reconheça as peculiaridades do sistema (formas interativas, entre outras) e crie a partir daí.

É isso que significa a implantação de políticas para a TV digital: ação continuada sobre o fim e não a simples interferência sobre o meio. Não se pode negar a competência de técnicos brasileiros para desenvolver padrões digitais próprios. Muito pior, no entanto, seria negar a capacidade dos criadores brasileiros para desenvolver conteúdo próprio e original para o universo digital que se aproxima.

Sobre esse universo sabe-se ainda muito pouco. É costume imaginá-lo como uma simples extensão da produção de conteúdo para distribuição analógica ? mas esta é uma visão rudimentar. Seria como imaginar a televisão como extensão do rádio, ou a internet como uma extensão das revistas. Não falta quem confunda, por exemplo, capacidade interativa com um roteiro de Big Brother Brasil. O que existe, no entanto, é um vasto mundo inexplorado pela frente, tanto no desenvolvimento de softwares para as aplicações nas plataformas digitais de televisão, quanto no de conteúdo específico para essas plataformas.

O Brasil pode e tem que se transformar num grande produtor e exportador de plataformas e conteúdos. Tem que garantir que o espectro digital seja ocupado por imagens brasileiras, pensamentos brasileiros e por aplicações originais desenvolvidas por pesquisadores, criadores e laboratórios brasileiros.

Ou uma política de comunicações passa por aí ou não existe política de comunicações alguma. E para que ela leve isso em consideração é preciso que esteja sintonizada com outras políticas de produção e de distribuição de conteúdo, que no momento transitam pelo Ministério da Cultura e, ainda que temporariamente, pela Casa Civil, onde ainda se abriga a Agência Nacional de Cinema.

Comparar o desenvolvimento de tecnologias próprias para os padrões de televisão digital e a telefonia celular é, na nossa visão, reduzir o debate sobre a digitalização aos seus aspectos mais simples. O que há para ser feito neste momento é a construção de uma política para a televisão digital que tenha como alicerce a chance única que temos agora para migrar de importadores para exportadores de conteúdo ? para desenvolver a vocação brasileira de produção e invenção. Para estar na primeira linha dos que pesquisam o desenvolvimento de conteúdos originais para a era digital e não continuar aceitando o jogo dos que acreditam que o Brasil possa ser um eventual produtor de hardware e que fique por aí ? e permaneça como um eterno consumidor de idéias e de informação.

(*) Texto adaptado do pronunciamento do autor durante audiência pública sobre TV digital no Senado Federal, em 24/6/03

(**) Jornalista e diretor de TV