Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Proteção servil e autonomia relativa

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JORNALISMO DE CRISE
(*)

Bernardo Kucinski (**)

Num sábado recente, final de uma semana de pesadas acusações de ACM contra FHC, O Estado de S.Paulo publicou nas duas colunas centrais de sua primeira página uma foto do procurador Luiz Francisco, curvado como um Quasímodo, sob o peso de suas deficiências físicas. Outra foto de Luíz Francisco, ainda mais constrangedora, estava na página 5 da mesma edição. O jornal quis transmitir, através da força da imagem, a idéia de que o procurador Luiz Francisco é também um deformado mental.

Lembrei-me da decisão dos editores norte-americanos de nunca publicar uma foto do presidente Franklin Delano Roosevelt em cadeiras de rodas, por respeito à sua imagem e à dignidade de seu cargo. Sempre o retratavam da cintura para cima. Isso foi há quase 60 anos, quando ainda nem havia a consciência coletiva do respeito aos portadores de deficiências físicas e próprio conceito de "portador de deficiências físicas", que dissocia a deficiência da pessoa que a porta.

As fotos envergonharam-me. Mostraram que a crise do jornalismo político ? manifesta desde o início do movimento dissidente de ACM, pela incapacidade de explicar o que estava acontecendo ? saiu do plano estritamente funcional e atingiu a esfera moral. O Estadão não hesitou em usar o recurso da injúria, que também é o recurso do preconceito, para desqualificar Luiz Francisco porque o considera condutor de uma campanha contra o presidente e contra o projeto neoliberal, dentro da Procuradoria. Um "ex-petista", como apontou Veja em tratamento anterior semelhante. O semanário da Editora Abril, pelo menos, explicou que a postura e os tiques de Luiz Francisco são seqüelas de um acidente automobilístico.

Num momento de crise generalizada do condomínio de forças que vem sustentando o projeto neoliberal no Brasil, é natural que o jornalismo político também entre em crise, já que os principais veículos de comunicação apoiaram essa aliança de forma tão irrestrita que pode-se dizer que eram parte do condomínio. Por isso, a mídia formou uma blindagem jornalística de proteção a FHC, considerado o grande avalista do projeto. E apoiou incondicionalmente e acriticamente as privatizações.

Quando a aliança começou a rachar, há mais de seis meses, sob a pressão crescente de ACM, os jornalistas sentiram-se perdidos. Muitos jornalistas estavam comprometidos com o bloco de poder. Com qual das metades ficar? Em qual delas apostar? O que se seguiu foi um jornalismo declaratório que ao mesmo tempo explorava e era explorado pelos conflitos pessoais. Em política, as declarações são sempre de conveniência; servem para encobrir e não para elucidar. Mas tudo o que tínhamos eram páginas e páginas de declarações e mais declarações. Um jornalismo denuncista, mas sem reportagem, alimentado apenas pelo recurso fácil das fitas gravadas e dos dossiês.

Sem respostas

Deu-se muita editorialização travestida de reportagem. Parece ter havido até uma certa especialização. IstoÉ com fitas gravadas, Veja com textos venenosos contra Jader Barbalho e o procurador Luiz Francisco.

Numa segunda etapa, ficou a impressão de que a mídia, mais do que apenas explorar as contradições para obter informações, passou a fazer parte da própria disputa. Envolveu-se na briga como se fosse parte dela. Poucas foram as crises em que o cenário da batalha foi tão claramente o espaço mediático. Muitos dossiês, inclusive um dos últimos contra Michel Temer, são publicados sem a mais básica precaução jornalística de ouvir o que o acusado tem dizer.

Até hoje, não temos dos repórteres políticos (e a rigor nem mesmo da maioria dos analistas políticos) uma explicação mais substancial das causas e conseqüências do racha. Algumas explicações têm sido dadas por políticos que escrevem em jornais. Para os jornalistas é tudo um grande entrevero pessoal.

Obviamente, um político frio e profissional como ACM não briga por motivos estritamente pessoais. Também não briga por motivos morais. A bandeira da honestidade em suas mãos é apenas isso mesmo: uma bandeira de luta. Luta contra quem? Com que objetivos? Essas perguntas ainda não foram respondidas de modo convincente. Sempre se pode supor que ACM decidiu disputar a presidência da República e diagnosticou que só teria chance se se desvinculasse da imagem do governo. É uma hipótese sensata e simples, mas nem essa hipótese a mídia explorou em profundidade.

Fissuras à mostra

O padrão provisório que emerge da cobertura, das manchetes e do tratamento da primeira página é o de manutenção de uma blindagem de proteção ao presidente, mas somente ao presidente. E com crescentes fissuras. Em geral, desqualificam-se os que ameaçam a posição de FHC ? seja ACM, Luiz Francisco ou políticos da oposição ? ou privilegiam-se outros casos de corrupção que não o de Eduardo Jorge. Também se dá ênfase despropositada às manobras de ocupação de espaço pelo governo, tais como anúncios de mirabolantes planos de investimentos. Destoam dessa postura, mas de modo comedido, a Folha de S.Paulo, que continua perseguindo o caso Eduardo Jorge, e Veja, na medida em que ficou presa à sua aliança com ACM.

Nas últimas semanas, as fissuras na blindagem ? especialmente nas revistas semanais ? tornaram-se mais acentuadas e mais espalhadas, mostrando um maior peso do fator concorrência. Época mostrou que não pode ficar à margem. Valor Econômico também está assumindo um papel mais ativo com coberturas exclusivas do caso Banpará. Emergiu um padrão de competição jornalística que pode fazer avançar o processo de dissolução do bloco do poder. A mídia começa a ganhar autonomia e desvincular-se do papel de instrumento dos conflitos, para ser o repórter dos conflitos. O que é natural, porque se fazia parte do bloco de poder e esse bloco se fragmenta, não há por que a mídia não recuperar uma autonomia relativa.

(**) Jornalista, professor da ECA-USP, autor de Jornalistas e revolucionários (Scritta), Jornalismo Econômico (Edusp) e outros.

(*) Publicado originalmente no mensário Unidade (n? 230, março/2001), do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, com o título "Jornalismo em tempo de crise".

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