Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Pulitzer no Pátio dos Milagres

Alberto Dines (*)

 

N

a usina de fragmentação em que se converteu o jornalismo subsiste, intacta, uma rubrica. Longe de ser uma bússola norteadora em direção do conhecimento, funciona como um propagador de ignorâncias. E ansiedades.

O que antigamente era designado como “noticiário científico” ou “médico” converteu-se num pátio de milagres. Diariamente são despejadas em cima dos leitores, telespectadores e ouvintes as mais disparatadas novidades fabricadas nos escritórios de marketing da indústria farmacêutica, nos departamentos de pesquisa de universidades (sempre carentes de recursos) e mesmo nas publicações científicas generalistas (doidas para conseguir anunciantes regulares).

Como essa fábrica de ilusões está montada no exterior, mais precisamente em Nova York – mãe e madrasta de todos os modismos -, sua produção ganha automaticamente a chancela de verossimilhança e verdade. Para se ter idéia das dimensões do processo de prestidigitação científica hoje em curso basta dizer que a maior empresa européia de relações públicas deslocou sua divisão de saúde de Paris para Manhattan, onde fica mais fácil atender ao circuito mundial de credulidades que ali tem sua santa sé.

Não se deve esquecer que a história da medicina confunde-se com a história da quimera da imortalidade. Até o Renascimento médicos eram também astrólogos e, às vezes, também astrônomos, caso do grande Abrahão Zacuto, Pai dos Descobrimentos (1425-1515, autor do Almanach Perpetuum). O elixir da longa vida da antiguidade, a pedra filosofal dos alquimistas medievos e, mais tarde, a busca dos afrodisíacos perfeitos (da qual foi vítima d. João V, que abusava das cantáridas) são exemplos da perigosa vizinhança entre a produção de conhecimento e a insaciável necessidade de enganar-se com promessas de poções mirabolantes.

Nos últimos cem anos, a desconcentração do saber, o racionalismo e a especialização produziram um certo rigor nos procedimentos de divulgação médica. Até o fim dos anos 70, conseguiu-se manter sob controle a curiosidade mediática. Pesquisas demoradas e amplas eram chanceladas em congressos, seus resultados veiculados em publicações de circulação restrita e, quando chegavam ao estágio da popularização, cercadas de cuidados e reservas.

Não estão muito longe os tempos em que nas redações os chefes da reportagem tinham na gaveta uma lista de médicos especializados para ler as matérias e opinar sobre sua validade. Inclusive dos telegramas internacionais. O que não impediu, nos anos 80, o famoso episódio do “boimate” (combinação genética de boi com tomate, engenhoso 1º de abril de uma revista científica inglesa engolido por um de nossos semanários).

A transferência da equação “Você Decide” para o campo do jornalismo em que o profissional, teoricamente competente e responsável, entrega aos leitores a escolha do que deve ser publicado, permitiu, entre outras coisas, o desvirtuamento do jornalismo dito científico.

Efeito colateral da “pesquisite” ou “pesquisótica” – a obsessão das sondagens de opinião pública – converteu a sociedade democrática num mercado de impulsos de venda. Diante da pergunta “Você gosta de notícias sobre saúde e avanços da medicina?”, é claro que 99% dos entrevistados responderão afirmativamente. O resultado é a dramatização e espetacularização do trabalho laboratorial, intrinsecamente questionador, mas não necessariamente conclusivo.

Num curto lapso de tempo a vitamina C foi apresentada como mágica e como vilã. Sua companheira, a vitamina E, teve dias de glória, foi derrubada e agora está em processo de reabilitação. De uma cartola de truques um grupo de pesquisadores tira a conclusão que as lésbicas têm deficiências auditivas e, de outra, que os carecas não são tão viris como se pensava. O Almanaque do Biotônico Fontoura virou paradigma jornalístico. Isso sem falar nas sucessivas promessas de que a Aids pode ser controlada, a cura do câncer de mama e da próstata está próxima, o infarto é evitável e a velhice adiável.

A atual fórmula de sucesso jornalístico não se vende em farmácias, mas passa necessariamente por elas. Nos telejornais de horário nobre os pobres repórteres nova-iorquinos, como preço do privilégio de morar no umbigo do mundo, são obrigados a produzir uma comoção médica ou científica por dia. Nesse clima excitado, não teve destaque a informação de que dos 2 milhões de americanos internados anualmente por reações medicamentosas morrem 100 mil (dados da Associação Médica Americana). Não foi avaliado o percentual de erros profissionais, de automedicação e, sobretudo, da pressão de pacientes para que lhes seja receitada a “última geração” de remédios noticiada no jornal.

No Brasil ainda não se estudou o que aconteceria com o atual surto de dengue se a mídia, ao invés de celebrar tantas miragens científicas, ocupasse metade do tempo e do espaço com cruzadas jornalísticas para erradicar o peçonhento mosquito. Mobilização contra a dengue faz-se por meio de publicidade paga pelos órgãos oficiais. Saúde pública só vira notícia quando endemia ameaça virar epidemia.

O que nos conduz a uma questão recorrente nesta coluna: a vibração jornalística não poderia dirigir-se também à antecipação e à prevenção? Em algum momento da escalada marqueteira não poderia a mídia lembrar-se do seu compromisso social?

O que nos leva à última edição do prêmio Pulitzer, anunciada na última terça (jornais de quarta, 15/4/98). O mais importante laurel jornalístico do mundo oferece galardões simultâneos para ficção, poesia, teatro, história e biografia. Não é casualidade: seu criador, o húngaro-americano Joseph Pulitzer (1847-1911) começou sua vida como repórter de diários americanos em língua alemã e, ao longo da sua vida, sempre colocou a profissão no mesmo patamar das artes e da cultura (embora seu jornal também cometesse alguns deslizes).

Essa visão superior de uma atividade até então encarada como menor levou Pulitzer a fundar a mais importante escola de jornalismo americana, na Universidade de Columbia (em nível de mestrado para graduados de outras áreas).

Um dia antes do anúncio do Pulitzer de 98, o majestático The New York Times (13/4) fez importante revelação: a comissão julgadora havia recebido cinco queixas para invalidar matérias selecionadas para a premiação. E isso não é novo: desde 1994 o júri vem acolhendo reclamações e invalidações prévias da parte de media-critics (críticos da mídia) ou de eventuais prejudicados pelas matérias selecionadas.

Significa que uma das mais altas instâncias jornalísticas americanas, informal, mas de grande peso moral, admite que o trabalho da imprensa é liminarmente questionável. E deve estar sujeito ao permanente escrutínio público.

Esse milagre sequer foi noticiado. Merecia.

(*) Copyright Folha de S. Paulo, 18/4/98.