Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quando a reportagem muda o rumo da história

WATERGATE 30 ANOS, O FILME

Rosa Nívea Pedroso (*)

All the president?s men, além de fazer a reconstituição histórica da investigação do Caso Watergate, conta como dois repórteres policiais, um de política, outro do setor local do Washington Post chegaram aos segredos do governo de Richard Nixon. O filme trata não só do papel de Carl Bernstein (Dustin Hoffman) e Bob Woodward (Robert Redford), os únicos repórteres-investigativos do jornal, mas também do papel de cada uma de suas fontes, de como as convenceram a falar, de suas hesitações e das hesitações da redação do jornal em publicar reportagens que na manhã seguinte estariam não só nas portas dos assinantes mas, principalmente, sobre a mesa do presidente Nixon e nas manchetes dos principais jornais diários do mundo.

A idéia de filmar na própria redação do jornal foi do ator Robert Redford, o Woodward do filme. Hoje, Todos os homens do presidente, vencedor de quatro prêmios Oscar em 1976, baseado no livro dos dois repórteres, é um clássico da cinematografia mundial.

Tudo pela Constituição

Num fim de semana de junho de 1972, quase por acaso, Bernstein e Woodward foram designados, pelo Washington Post, a cobrir um acontecimento policial aparentemente corriqueiro: a invasão da sede do Partido Democrata, em Washington. E, a partir daí, os dois repórteres-investigativos não abandonaram mais o caso. Investigaram as causas, as origens, as ramificações, os meandros, até revelar, em primeira mão, ao mundo todo, o rumoroso escândalo político que acabou na renúncia de Nixon e na posse do 38o presidente dos Estados Unidos, Gerald Ford.

Bernstein fuma, sua mesa de trabalho está permanentemente em estado de desordem, às vezes ele passa dias sem fazer a barba. Tem estilo talentoso e seguro. É elogiado pelos colegas. Woodward, ao contrário, é ordeiro, meticuloso, preocupado com a sua aparência pessoal, tem redação quase ilegível, destacando-se principalmente pela força de vontade, a tenacidade e a diligência no árduo trabalho de campo (entrevista, pesquisa, observação e verificação).

O filme mostra que as informações foram conseguidas uma atrás da outra e a duras penas (com muita entrevista, muita pesquisa, muita verificação, muitos desmentidos, muitos ataques, muita dúvida e depressão). E, quanto mais informações publicavam, mais pistas eram abertas. É uma história que começa como uma simples notícia policial e, com o tempo, transforma-se em caso mundial, o Caso Watergate. Tem início num simples plantão de fim de semana no jornal e acaba nos corredores da White House e nas manchetes dos principais jornais diários do mundo. É um quebra-cabeças, uma aventura de espionagem: juntando as peças, Bernstein e Woodward conseguem a lista dos funcionários da Casa Branca, do Comitê de Reeleição de Nixon e dos agentes do FBI que investigavam o caso. A partir dessa lista, os dois repórteres começam a visitar cada nome listado. O Comitê de Reeleição era uma operação super-secreta, com escritórios instalados em dois edifícios da Avenida Pensilvânia, a pouco mais de 100 metros da Casa Branca.

Bernstein e Woodward trabalharam com método. Pelo menos duas pessoas deveriam confirmar uma determinada informação para que ela fosse publicada. Eles não usavam gravador, às vezes nem podiam tomar notas. Por isso, o método era conversar, tentar registrar as informações novas na memória e conversar, conversar, pesquisar, pesquisar, verificar, verificar. Os desmentidos serviam para corrigir a rota das investigações. Bob e Carl levaram até às últimas conseqüências seu trabalho investigativo, transformando a aventura da reportagem investigativa no ideal do jornalismo, isto é, tudo está provado, tudo tem provas, tudo está checado, verificado.

É o ideal do jornalismo informativo levado ao extremo, à radicalidade da razão informativa, da concretude, da realidade investigada. Tudo está sob a lei, sob a ordem do conhecimento e da objetividade. É o império da razão, a razão determinando cada passo, cada pergunta, cada fonte, cada detalhe. Emoção, só as emoções dos fatos. Todos os homens do presidente é uma obra sobre o real do jornalismo, sobre a realidade e a realização da prática da reportagem; uma afirmação da possibilidade da objetividade, da urgência da objetividade diante das acusações, das denúncias, das suspeitas, dos indícios, dos dossiês. Porque nenhum passo pode ser falso ou falseado. Pois quem perde é a democracia americana. A razão está com a democracia e com a Constituição americanas.

Muitos olhos nos detalhes

E o mais importante no filme, do meu ponto de vista, é que se trata de uma série de reportagens de denúncia. E em reportagem de denúncia devem imperar a verdade, as provas, os fatos, os detalhes, a comprovação da fraude, do roubo, do crime, da infração. Então, tudo tem que ser racional, real, numérico, objetivo. Nada de impressões, pois tudo tem que ser escrito/visto/mostrado como prova. Até as evidências e os indícios só podem aparecer na forma de prova documental ou testemunhal. Evidências e indícios têm que ser concretos, têm que ter existência física. O que é determinante numa reportagem de denúncia não é determinante em reportagens dos campos de batalha, por exemplo. Porque quem tem razão nos campos de batalha não são os generais, nem os soldados, nem os marines, nem a tecnologia dos mísseis, dos porta-aviões, dos radares. Quem tem razão são as vítimas, os refugiados, os prisioneiros, os famintos, as mulheres, as crianças, os idosos, os civis, as pessoas, a dignidade da raça humana. E, mesmo assim, as vítimas de agora podem ser algozes/vingadores de manhã: em se tratando de guerra, todos podem perder a razão em algum momento.

No emaranhado de informações que envolvem Bob e Carl, entretanto, existe uma fonte ao mesmo tempo misteriosa e inquietante, o Deep Throat (garganta profunda, inspirado no título de um dos mais famosos filmes pornográficos já produzidos nos Estados Unidos). Era um alto funcionário do governo, suspeita-se, com conhecimento do que ocorria na Casa Branca. Ele confirmava, indicava se o rumo das investigações estava certo. Os encontros eram marcados e realizados segundo métodos de romance policial: um vaso na janela, uma bandeira vermelha na sacada… Foi ele que confirmou a participação dos assessores de Nixon no planejamento da operação de espionagem na sede dos democratas, o prédio Watergate, a investigação da vida privada de opositores, a sabotagem contra os democratas. Foi ele que confirmou o nome de pessoas autorizadas a movimentar as contas secretas destinadas a financiar as operações ilegais. E, mesmo assim, Bernstein e Woodward continuavam a se dedicar às secretárias e aos contínuos como fontes. Pois as fontes oficiais sofriam pressões e intimidações da Casa Branca.

O filme Todos os homens do presidente é uma homenagem à prática da reportagem, à prática da investigação jornalística e à independência do jornalismo. Na verdade, é uma alegoria/alusão à democracia e ao jornalismo americanos.

Por que reportagem e independência? Porque é uma questão de liberdade. E porque reportagem é sinônimo de realidade. A reportagem mexe nas tripas da realidade. Para isto, é necessário liberdade, independência e espírito aventureiro. A reportagem exige do jornalista talento de repórter, isto é, gosto pelo "pé no barro", pelo "pé na estrada", o gosto pelo risco, o gosto pela aventura, a paixão pelo jornalismo no sangue e no coração, e olhos, muitos olhos nos detalhes.

Bush, verdade esquecida

E impõe ao jornalista, no mínimo, três desafios: o desafio da apuração (pesquisa, investigação, observação, entrevistação), o desafio do relato (narrativa clara e adequada dos acontecimentos, isto é, o desafio de contar/ narrar com clareza o que viu, o que descobriu (no filme, podemos notar que Woodward não era bom de redação, não sabia escrever tão clara e precisamente quanto Bernstein) e o desafio da separação (capacidade de distanciamento, controle/autocontrole, distinção entre estilo e informação, entre fatos e valores, entre fatos e sentimentos, coincidências, impressões, hipóteses, conjeturas, ameaças e provas, dados, números, estatísticas, indícios fortes e indícios fracos). Daí a demasiada proximidade da reportagem com a realidade. Nas reportagens de Bernstein e Woodward não é o estilo do texto ou o estilo do repórter que prevalecem mas as informações. As informações, os dados, as declarações, as revelações é que são soberanas. Não existem meias palavras. Só a palavra inteira, certeira, precisa. Os dois repórteres encenam o ideal do jornalismo informativo diário, em busca da palavra total, do sentido sem resto, sem ambigüidade. Por esta tentativa de mostrar o ideal da objetividade, este filme é paradigmático porque realça as qualidades e os pré-requisitos do jornalismo informativo diário.

Furio Colombo diz que a Guerra do Vietnã propiciou à "história americana um distanciamento sem precedentes entre a informação, ou seja, o trabalho dos jornalistas, e a alma do país que eles sempre julgaram representar". Por quê? Porque a guerra demorou muito e os jornalistas passaram a ser testemunhas dos horrores da guerra e começaram a fazer "contatos com o inimigo, ou seja, com fontes dos vietcongues, das aldeias, da resistência" (p. 47). F. Colombo vai mais longe e escreve que sem o Vietnã não teria havido Watergate, em 1974.

E é da democracia e o jornalismo americanos que o filme Todos os homens do presidente trata. Como se liberdade e independência jornalísticas iguais só fossem possíveis nos Estados Unidos. E é dessa possibilidade que o filme trata. Do grande legado do jornalismo americano ao jornalismo mundial: o princípio/a lei/o farol da objetividade. Por que o farol da objetividade? Porque o jornalismo americano criou um "princípio de respeitabilidade" (F. Colombo, p. 46) em relação à opinião pública. A coincidência entre povo/leitor/verdade e democracia.

Mas isso não poderíamos hoje aplicar ao pleito do ano 2000 que elegeu George W. Bush. Quando não convém, o princípio da respeitabilidade à opinião pública e à verdade é esquecido pelos jornalistas, pelos governantes e pela própria justiça. Por algum motivo não convinha Al Gore como vencedor na contagem manual dos votos. Mas esta já é outra história.

Farol no nevoeiro

Bernstein, em entrevista à revista Veja, disse que Woodward conhecia Deep Throat antes de Watergate e que recorria a ele para confirmar informações. Referindo-se à entrada do informante secreto de Woodward, F. Colombo diz que "o aspecto mais inquietante (…) reside no fato de alguém, sem rosto (…) participar da trama do trabalho jornalístico, de uma fonte anônima e interessada (…) contrariar o objetivo, o ponto de vista, o passo seguinte da investigação" (p. 48).

Na verdade, podemos interpretar a entrada em cena do informante secreto como uma metáfora ideal de um jornalismo sem intenções, sem propósitos e sem compromissos subjetivos. De um jornalismo não-solidário com o poder. E, por isso, diz F. Colombo que o jornalismo "percorre caminhos a descoberto e deverá estar constantemente atento ao perigo de ser usado". O que o filme nos revela é uma investigação corajosa e solitária. Assim tão igual a tantas outras investigações jornalísticas que mudaram o curso da história, o curso do poder/do contrapoder. É o repórter só com a sua investigação, com a sua cisma em continuar apesar de todos os perigos que toda reportagem investigativa contra o poder/contrapoder implica.

A rede de averiguações que a investigação jornalística impõe aos dois repórteres, em relação às suas fontes, é algo extraordinário porque os fatos são ambíguos. São ambíguos os fatos sem "evidência física" (F.Colombo, p. 49), escondidos, secretos, não-vistos, sem testemunhas e, por isso, necessitam "de interpretações credíveis e, portanto, de fontes" (p. 49).

F. Colombo escreve que "em situações de ambigüidade e incerteza é a multiplicação dos fatos e das fontes… Tal como o geômetra que mede os terrenos, o jornalista, que se move entre fontes traiçoeiras e constatações imprecisas, procurará constantemente a triangulação entre os elementos disponíveis, para não se render à interpretação que lhe é proposta" (p. 50).

Atitudes de cautela e objetividade caracterizam os movimentos dos dois repórteres em decifrar a trama sobre a reeleição de Richard Nixon. Bersntein e Woodward dão um testemunho profissional incontestável aos aspirantes ao jornalismo porque o jogo furioso do poder é ao mesmo tempo transparente e opaco, de evidentes intenções de trapacear e ocultar/revelar a verdade. O poder (aí personificado por Nixon, seus assessores etc.) joga pesado com a informação/contra-informação, e resta aos dois repórteres confiarem nos faróis do profissionalismo para não se deixarem cair nas malhas/tramas/mãos das partes sob suspeita/investigação. O árduo trabalho de averiguação empreendido pelos dois repórteres para alcançar a verdade/revelação é comparável à sobreposição de "fato a fato como na construção das catedrais" (F.Colombo, p. 54).

A obstinação de Bernstein e Woodward, em não dar um fato ou uma declaração por acabada, diante de evidências ou suspeitas de ocultação de fatos, pode ser considerada, seguramente, como um dos melhores exemplos simbólicos do legado do jornalismo americano à compreensão do significado de objetividade para o jornalismo: ser o farol no nevoeiro, a pedra sobre a pedra até a decifração/revelação final.

Outras histórias a contar

Bernstein e Woodward não são super-heróis, são dois profissionais que trabalham com método, com emoção e razão. O filme faz uma homenagem à missão do jornalismo de informar e de fiscalizar os poderes. E reifica a objetividade como um valor pragmático a ser buscado pelos jornalistas. A mensagem profissional do filme é que a reportagem e a objetividade, mais do que úteis, são necessárias à democracia e à liberdade.

O fascínio pela cultura americana e o orgulho pela democracia americana impedem que autores (Carl Bernstein e Bob Woodward) e diretor (Robert Redford) admitam a impossibilidade do todo da objetividade e da verdade toda. No caso, Richard Nixon personificava apenas um sistema eleitoral possivelmente corrupto que hoje, no ano 2000, mostrou-se também defasado tecnologicamente pelo uso do voto manual, em vez do voto eletrônico que democracias muito mais recentes, como o Brasil, já adotam há alguns anos com pleno êxito.

A impossibilidade do todo da objetividade e da verdade toda, diante da paixão pelo mundo referencial dos dois repórteres-investigativos do jornal Washington Post, faz do filme de Robert Redford não uma negação, mas uma declaração de amor aos Estados Unidos e uma afirmação do ideal do jornalismo informativo diário: ética, profissionalismo, transparência, liberdade, independência e democracia.

Sabemos que o ideal da objetividade, no entanto, cai por terra e liberta o jornalista do compromisso com a razão, com o bom senso, com a realidade verificável, com a concretude física dos fatos (tão bem reproduzido pelos dois), quando as vítimas das guerras (da fome, da miséria, do abandono, do ódio racial, do fanatismo religioso) têm razão… me pergunto como Bernstein e Woodward agiriam diante dos horrores das guerras americanas em território estrangeiro. Jornalismo e cinema ainda estão a nos dever uma grande reportagem filmada sobre a Guerra no Golfo Pérsico, empreendida no dia 17 de janeiro de 1991. Seria possível aliar identidade nacional e profissionalismo (objetividade) na cobertura dos campos de batalha? Acho que não. Apesar de todo o fascínio que o aparato tecnológico, hoje disponível aos correspondentes de guerra, aos espectadores de televisão de tela plana e aos soldados monitorados via satélite, possa oferecer e seduzir. Mas esta também é outra história. Ainda a ser contada por cineastas, jornalistas, historiadores, escritores, sobreviventes, testemunhas…

Referências bibliográficas

COLOMBO, Furio. Conhecer o jornalismo hoje; como se faz a informação. Lisboa: Presença, 1998. 230p

VEJA. Na pista de Watergate. São Paulo, 29 de maio de 1974. P.3-6. Entrevista: Carl Bernstein e Bob Woodward por Roberto Garcia.

(*) Jornalista e professora-adjunta do Curso de Jornalismo do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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