Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quando privilégios se confundem com direitos

MÍDIA & MST

Cândido Grzybowski (*)

As notícias veiculadas recentemente sobre o MST (Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra) dão a clara impressão de que são eles os culpados pela violência no campo. Parece que querem nos fazer esquecer os séculos de latifúndio e do domínio dos donos de gado e gente. É bom lembrar que também o presidente Lula ? quando líder sindical ? foi considerado perigoso criminoso simplesmente por defender os direitos de trabalhadores e trabalhadoras.

Na verdade, movimentos sociais com suas ações participativas diretas ? sejam greves nas fábricas ou ocupações de fazendas ? nada mais fazem do que forçar o ritmo da democracia. Ou será crime reivindicar o direito a um pedaço de terra? É crime defender a partilha da terra, através de um programa de justiça e solidariedade, como o de reforma agrária? É crime fazer acampamento ao longo da estrada para se fazer notar pelas autoridades? É crime demonstrar com palavras e atos que alguém existe, e que para continuar existindo precisa de comida e de terra para trabalhar? Lamentavelmente, estamos num país onde privilégios se confundem com direitos, onde o poder está acima do direito, onde as elites hereditárias não admitem ser questionadas.

Só que esse tempo está chegando ao fim.

É triste ver quanto ainda está no coração da sociedade brasileira uma cultura pouco democrática. Falta-nos a consciência da radicalidade dos direitos iguais na diversidade. E aí nossa ainda frágil democracia patina. Diante da menor ameaça aos privilégios estabelecidos, monta-se uma reação orquestrada de defesa da ordem estabelecida, do estado de direito, das leis e até de uma tal "liturgia do poder presidencial".

Ponha o boné

Que falsidade ver rebaixamento na dignidade de um presidente ao receber amigavelmente lideranças dos sem-terra, mas elogiar bonés, gestos e sorrisos em festa típica de latifundiários e endinheirados do tal agrobusiness. Quer-se dureza do presidente Lula no trato com os herdeiros de séculos de escravidão e miséria, ao mesmo tempo em que se elogia sua capacidade em sorrir para aqueles que se sentem no direito de manter milícias privadas para defender o sacrossanto direito à propriedade privada.

É claro que não podemos ignorar a irresponsabilidade que muitas das ações dos sem-terra têm demonstrado. E não devemos jamais aceitar a violência. Ela agride a institucionalidade existente e, pior, leva à destruição, e não à construção de justiça social. Mas é óbvio que violência não existe no vácuo. É expressão de relações vigentes, onde a força é a regra. Ou a violência das milícias privadas dos proprietários é vista como legítima? E que dizer das polícias que sempre tendem a estar do lado dos poderosos? E as decisões do Judiciário, que sempre favorecem quem tem poder, e não quem tem direitos? Sem dúvida, precisamos desarmar o campo. Mas quem mesmo tem armas? Por que as mortes se contabilizam quase só de um lado? Não sejamos hipócritas.

Não se trata de fazer apologia dos sem-terra. Trata-se de pensar na oportunidade que temos de construir um país democrático. Pressões e contrapressões são fundamentos da democracia. Cabe extrair daí compromissos históricos entre as partes que nos levem para um mundo mais justo e participativo. Ou alguém acredita que haverá alguma mudança sem pressão política? São séculos de espera. Temos terra, muita terra. E temos sem-terra, muitos sem terra. Algo tem que ser feito.

Lula, ponha o boné dos sem-terra, sem medo, como é de seu estilo. E inicie de uma vez por todas um irreversível processo de reforma agrária, que traga liberdade e dignidade humanas, condições de desenvolvimento democrático e sustentável, enfim, a cidadania a quem quer simplesmente um pedaço de chão para se sentir parte deste Brasil. Não se deixe ofuscar pelos fantasmas do passado que rondam o Palácio do Planalto e agridem a cidadania através das falácias veiculadas pela imprensa.

(*) Sociólogo, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)