Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quanto valem nossos empregos? Imprensa esquece valor do trabalho

Ana Maria de Oliveira Nusdeo(*) e Carlos Alberto de Salles (**)

 

G

reve de cobradores e motoristas, saques no Nordeste, os embates entre polícia e camelôs dominando o centro de São Paulo. Dos recentes conflitos que têm tomado campo e cidade, a imprensa leva às manchetes apenas a ponta do iceberg. A crise subjacente a esses embates é bem mais profunda e endêmica do que permite supor o calor do noticiário. Lamenta-se a ausência de matérias de fundo, capazes de fornecer aos leitores mais elementos de análise e reflexão sobre o que realmente está em andamento na sociedade.

A questão da reforma agrária, como a dos recentes levantes de alguns setores profissionais urbanos, está associada, fundamentalmente, a uma crise de emprego, para a qual o noticiário tem dado pouca ou nenhuma atenção.

O Brasil passa por um período de radical adaptação funcional dos modos de produção industrial. No campo a questão é mais antiga, mas há muito tempo deixada sem solução. A mecanização da lavoura e mudanças de escala e qualidade na produção agrícola, desde meados dos anos cinqüenta, vêm fazendo estragos na fonte de trabalho e sustento de milhares de famílias.

Nas cidades o fenômeno é mais recente. Em uma economia crescentemente globalizada, a competitividade internacional não se limita à equação preço e qualidade dos produtos nacionais. A disputa estende-se também às tarefas que o país exercerá, importando saber se realizará funções centrais, geradoras de mais recursos, com maior retorno para o capital e menores custos sociais, ou se ficará apenas com aquelas atividades periféricas no sistema mundial de produção. A questão, então, adquire mais um ingrediente, restando saber não somente quantos empregos a economia gera, mas quais empregos estão sendo gerados.

Não há dúvida de que na corrida por um espaço no mercado globalizado, o Brasil paga o preço dos longos anos de protecionismo estatal gerador de incompetência privada. O Estado brasileiro por muitos anos, além de poupar nossa indústria da competição externa, financiou através de subsídios, diretos e indiretos, a vida mansa da indústria nacional, adormecida no berço esplêndido de acertos oligopolistas jamais combatidos. Agora, no desespero em busca do tempo perdido, a eficiência empresarial parece o único caminho possível, não importando o preço a pagar.

A geração que amargou a dolorosa versão tupiniquim dos eventos que marcaram o ano de 1968 ganhou cabelos brancos ouvindo o discurso de que era preciso esperar o bolo crescer antes de distribuir as fatias. Primeiro crescimento, depois distribuição. Enquanto isso os generais presidentes torravam o dinheiro público no patrocínio da incompetência de nossa classe empresarial, assumindo riscos ou distribuindo benefícios. Para eles, os milhares de excluídos que perderam o bonde do desenvolvimento podiam esperar.

Como dívida social não se resgata no banco, os sucessores civis dos ilustres generais também nada fizeram por aqueles que pagaram com seus empregos e bem-estar o preço da transição da economia rural para a industrializada. A história se repete e, hoje, a fatura da internacionalização de nossa economia e dos ajustes estruturais dela decorrentes é paga, como antes, à custa de empregos, ampliando ainda mais a exclusão social.

Por trás dos conflitos recentemente noticiados pela imprensa, sem qualquer preocupação por suas verdadeiras causas, está uma aguda disputa social pela manutenção ou pela conquista de fatias do crescido bolo de nossa economia. Ideologias à parte, o que está em jogo para sem-terra, camelôs ou cobradores de ônibus é um espaço de sobrevivência numa economia que, embora em expansão, está enxugando empregos e, com isso, novamente patrocinando um perverso movimento de exclusão social.

Recentemente foi anunciada a inauguração de uma nova montadora de automóveis no interior de São Paulo: apenas 250 novos empregos! Foi-se o tempo que um empreendimento desse porte empregava alguns milhares de trabalhadores. Não é só isso. No caminho da competitividade também as empresas estabelecidas cortam seus quadros, automatizando suas linhas e reestruturando sua organização. Em setores de elevada automação, como o bancário, a máquina suprime milhares de postos de trabalho.

O paradoxo, portanto, está colocado. Para crescer a economia tem de conquistar eficiência. A busca de eficiência, no entanto, elimina postos de trabalho. Logo o crescimento econômico colocado nessas bases não gera empregos e, pior, coloca milhares de pessoas para fora do mercado de trabalho.

Não se trata de negar a necessidade de ganhos de produtividade ou desconhecer os prometidos benefícios de longo prazo. Mas se quer chamar a atenção para o fato do debate público, impulsionado pela imprensa, dar exclusiva atenção para um lado da moeda. Nesse sentido, atacam-se abundantemente os custos impostos às empresas nessa reestruturação produtiva, reclamando-se auxílios, cortes fiscais e até subsídios às empresas nacionais. Rejeita-se o Estado, mas sua presença é cobrada no processo de aumento da competitividade dos agentes nacionais.

Independentemente do grau de acerto dessas reivindicações, percebe-se uma lacuna na veiculação de reivindicações correspondentes ao outro lado da moeda. É preciso atacar os problemas decorrentes dos ajustes impostos pela globalização em todas as suas dimensões, não sendo justo ou razoável esquecer a questão do emprego e de outros custos sociais deles derivados.

A par de políticas capazes de gerar e induzir eficiência empresarial, há um espaço a reclamar a adoção de políticas públicas de emprego, através, por exemplo, do estímulo a setores de maior absorção de mão-de-obra, paralelamente ao incentivo à competitividade nos setores de maior automação. No quadro atual, o mínimo que se espera do setor público – isento da pressão da competitividade internacional – é o compromisso de desempenhar o papel de absorver mão-de-obra e criar mecanismos de inclusão social, como a renda mínima e um seguro desemprego efetivo. Um compromisso fundamental do Estado, nesse momento, deve ser com a manutenção e expansão de postos de trabalho, criando oportunidades e gabaritando a mão-de-obra.

Não se pretende fazer uma defesa de qualquer das medidas mencionadas, mas apontar a necessidade dessa discussão vir a público, trazendo consigo os graves problemas ainda silentes por trás das manchetes de jornal. O debate dessas idéias é a única forma de permitir aos cidadãos o entendimento do conjunto de questões envolvidas e de sua dimensão política, capacitando-os a avaliar as reações governamentais aos dilemas aqui esboçados e as alternativas eleitorais que lhes são apresentadas. A imprensa, detentora de um papel fundamental na formação desse debate, deve ir além da simples manifestação visual dos fatos, pondo a público suas causas e os interesses neles envolvidos.

(*) Advogada em São Paulo, associada do Instituto de Estudo "Direito e Cidadania"

(**) Promotor de Justiça em São Paulo, associado ao Instituto de Estudo "Direito e Cidadania"

 

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Ministério Público e tutela da liberdade de informação, Heloísa Vieria de Mello

 



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