Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quem conhece o Promotor de Justiça da Cidadania ?

Marcelo Vigliar (*)

 

D

iariamente, em cada uma das Comarcas do Estado de São Paulo, um Promotor de Justiça está atendendo o público.

O atendimento ao público é mais uma de suas funções institucionais (embora desconhecida por muitos de seus destinatários: os próprios beneficiários do atendimento, ou seja, o próprio público) cuja disciplina, ou seja, a obrigatoriedade de atender o público, pode-se afirmar, tem suas raízes na própria Constituição da República e, especialmente, na Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo (art. 121, inciso II, da Lei Complementar Estadual n. 734, de 26 de novembro de 1993) e em famoso ato conjunto da Procuradoria Geral de Justiça, Corregedoria Geral do Ministério Público e Conselho Superior do Ministério Público (art. 1, do Ato Conjunto n? 79/92- PGJ-CSMP-CGMP, Diário Oficial do Estado, Seção I, Edição de 2 de setembro de 1992).

Afirmo que tem sua disciplinada na própria Constituição porque só há uma maneira de dar efetividade ao inciso II, do art. 129 do Texto Supremo, aquele que prevê competir ao Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”, além da própria missão insculpida no art. 127: atender o público, conhecer os seus problemas e buscar uma solução para os mesmos.

Isso equivale a afirmar que o atendimento, ainda que não institucionalizado da forma que o é, existiria de fato, se imporia naturalmente, porque é a forma mais eficaz para o conhecimento de problemas, já que o desempenho dessa função faz o Promotor de Justiça conhecer os problemas dos indivíduos que, não raro, superam suas próprias esferas, traduzindo-se em interesses de várias pessoas, em todas as modalidades de interesses metaindividuais, principalmente aqueles conhecidos como coletivos e aqueles chamados difusos.

Forçoso reconhecer, contudo, que não se trata da mais agradável de suas funções, porque somos procurados, via de regra, por pessoas que, na maioria dos casos, sequer conseguem expressar quais sejam os seus problemas, diante da simplicidade de suas colocações, dos termos que usam, enfim, diante de suas limitações, sempre com raízes numa má distribuição da renda, que faz proliferar em nosso país a miséria, inclusive (e diria sobretudo) a miséria cultural. Por que, então, pouco agradável? Porque poucos gostam de passar o dia ouvindo reclamos tristes, graves e muitos de difícil ou impossível solução. Reclamos que pedem, na mesma proporção, providências graves, difíceis e muitas vezes criativas, porque o ordenamento não prevê solução.

Mas, é justamente no atendimento ao público que o Promotor de Justiça se sente útil à sociedade e se torna cem por cento Promotor de Justiça (ao menos com aquela configuração que desde a Constituição Federal ele recebe) .

Não há receio algum, tampouco exagero, de afirmar que foi justamente esse importante elo de comunicação com a sociedade que fez com que se pudesse conseguir tantas atribuições importantes para o Ministério Público.

Nesses encontros diários com o “povo” é que sempre se pôde e pode tomar conhecimento, sobretudo em Comarcas de pequeno e médio porte, de problemas que estejam a afligir a população, ensejando as medidas jurídicas possíveis, inclusive aquelas inovadoras, que muitos colegas, através de seus conhecimentos técnico-jurídicos e de seus talentos próprios puseram em prática, provocando a atividade jurisdicional do Estado, antes mesmo da previsão legal.

Ainda que também as nossas Leis Orgânicas pretendam emprestar uma configuração própria às atividades do Promotor da Cidadania, deixando mais ou menos evidente que apenas os interesses supra-individuais devam ocupar a atenção de seus integrantes, é na verdade raro que um problema apresentado por um cidadão não seja o de muitos. Assim, mais uma vez, fica evidente a necessidade desse contato com a população, para que as funções do Promotor de Justiça sejam exercidas na sua plenitude.

A Promotoria de Justiça da Cidadania da Capital paulista, que tenho o prazer de integrar e que aqui servirá para ilustrar o que pretendo com as presentes considerações, quero crer, vem cumprindo o seu papel de forma satisfatória, mas somente no que tange à repressão da imoralidade administrativa, seguida ou não do efetivo prejuízo aos cofres públicos, por atos de agentes públicos. Várias são as demandas ajuizadas e, vencidos alguns preconceitos isolados do próprio Judiciário, bons têm sido os resultados, conforme a imprensa vem noticiando quase que diariamente. Mas "cidadania" não se resume ao direito de ver os recursos públicos aplicados de forma legítima e legal. Essa expectativa do cidadão é absolutamente legítima. Repito: essa parcela de nossas atribuições vem sendo desempenhada muito bem, com uma grande qualidade (do ponto-de-vista técnico jurídico) de trabalhos levados ao judiciário, sempre veiculando teses de cunho social.

Mas creio que não deve se resumir a isso a expectativa de uma plena "cidadania", tampouco a esse ponto deva se resumir a atividade do Ministério Público nas promotorias da cidadania, sob pena de transformá-lo em verdadeiro advogado do Estado, para a defesa dos seus interesses. Para abandonar a função de advogado dos interesses do Estado, sempre lutou o Ministério Público, tanto que na Constituição Federal de 1988, ficou evidente a proibição da representação do Estado. Mais: conta o Estado com um excelente corpo de procuradores, que realizam e devem, primordialmente, realizar essa tarefa.

Estou convicto que a legitimidade conferida ao Ministério Público para a defesa do patrimônio público é subsidiária, complementar e explicada para que: (a) tenha o patrimônio público e a moralidade administrativa mais uma Instituição defensora; uma Instituição que recebeu do próprio constituinte uma série de prerrogativas para os seus membros, justamente para que possam exercer tal função isentos de ingerências externas; (b) para que possa cobrar do próprio administrador o zelo pelo patrimônio que ele deve, antes que todos, curar, sob pena de responder pela omissão. A legitimação concorrente, assim, veicula indisfarçável cunho didático: a Administração deve curar de seu patrimônio; se não o faz, pode o Ministério Público substituí-la para fazê-lo, postulando, ainda, a punição do desidioso administrador.

Mas, voltando para as atribuições do Promotor de Justiça da Cidadania, entendo que seja de todo recomendável uma (nova) reflexão sobre suas funções, talvez até mesmos desmembrando a promotoria: os serviços essenciais (saúde, comunicações, fornecimento de água etc.), revelam os jornais, são desrespeitados diariamente, porque, quando fornecidos, o são de forma absolutamente deficitária; garantias individuais são objeto de constantes afrontas (desde o direito de ir e vir, até constrangimentos odiosos como torturas e mal-tratos das própria autoridades concebidas justamente para o atendimento e segurança do cidadão); o eterno problema das moradias; o desrespeito dispensado às crianças e adolescentes (que na Capital paulista conta com Promotoria própria, mas que na essência tem como alvo o cidadão em desenvolvimento), enfim, inúmeros problemas que, embora também tratados na Promotoria da Cidadania, ficam num segundo plano, porque o volume da corrupção oficial redunda num sem-número de casos que nos são endereçados e que merecem atenção.

Impossível, neste momento, não abordar a intenção que assalta o legislador, fruto de pressões externas, para que as atribuições do Ministério Público sejam tolhidas. Ouve-se a todo o momento que as atribuições do Ministério Público serão e devem ser retiradas, uns até alegando que o Ministério Público não as utiliza a contento. Resta saber quem ganharia se as atribuições institucionais do Ministério Público fossem retiradas, diminuídas ou amesquinhadas.

A resposta é simples e óbvia: todos aqueles que se sentem incomodados com o exercício de nossas atribuições. Todos aqueles que não integram o “povo” e jamais necessitaram da atuação/orientação do Promotor de Justiça; ou os contumazes adversários processuais que, diante de suas condutas pouco recomendáveis, sempre estão no pólo passivo das demandas que ajuizamos.

(*) Promotor de Justiça em São Paulo.

 



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