Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quem decide sobre os transgênicos?

Betch Cleinman

 

A concepção justiceira de que é imbuída a mídia brasileira ? tanto a chapa branca quanto a autodenominada independente ? explica as sistemáticas “bombas de grafite” lançadas sobre a sociedade: escândalos e condenações sumárias de agentes públicos e privados. Arvorando-se em único poder confiável da nação, autoriza-se, em nome da liberdade de expressão, a tudo exibir, até mesmo provas ilícitas. Entretanto, por terem sido obtidas ilegalmente, elas não têm a menor validade em um processo judicial, que é o foro previsto pela Constituição para administrar justiça a partir de valores que preservam garantias individuais e liberdades públicas.

A Constituição é a norma suprema do país, e não mera declaração de princípios ou propósitos. Ela condensa as regras do jogo que devem ser obedecidas, indistintamente, por todos os membros da sociedade. Sua força reside em seu caráter obrigatório para todos e no princípio ético que contém. Entre outros direitos, nossa Carta Magna consagra a livre expressão intelectual, artística, de comunicação, independentemente de censura ou licença. Assegura também o acesso à informação, resguardando o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. Em um Estado Democrático de Direito, todos ficam subordinados à lei. Até mesmo o Estado deve a ela submeter-se, não estando autorizado a cometer crime para desvendar um crime.

Ora, se a Lei Maior dispõe que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”, será que elas podem ser utilizadas em uma outra jurisdição que não a autorizada constitucionalmente? Mesmo em nome do interesse público? Aceitar o princípio de que a praça pública, que reage mais pela emoção que pela razão, constitui o espaço privilegiado de “julgar e condenar”, para além do Judiciário, não será admitir todos os tipos de interceptações e interferências? Não será desqualificar o Poder Judiciário como única instância legítima para reparação das violações jurídicas, substituindo-o pelo juízo privado dos “donos” da mídia? Pode a mídia ter mais poderes que o Poder Público e não se submeter às normas constitucionais?

Garantias constitucionais vs. compromissos mercantis

Um julgamento judicial é o momento em que uma situação de fato passa para a dimensão do direito. Nessa passagem, nossa Constituição garante aos acusados a presunção de inocência, o respeito ao contraditório e um amplo direito de defesa, além da não aceitação de provas ilícitas. Em um Estado Democrático de Direito é fundamental ainda a existência de um tempo para a compreensão do caso concreto, necessário à reflexão de um magistrado que deve decidir sobre as demandas a ele dirigidas. “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.”

Quais são os fundamentos e valores que regem um julgamento pela mídia? A concorrência selvagem existente entre os veículos de comunicação acirra a briga pela exclusividade dos “bens informacionais”. A informação tornou-se de fato um bem, e dos mais valiosos. Afinal, um milheiro a mais de consumidores significa milhões a mais na conta dos proprietários das empresas de comunicação. Para a vitória sobre o concorrente, todos os meios vêm sendo considerados legítimos pelos detentores do poder de fazer circular notícias e silêncios.

Mas será que vale tudo para aumentar o faturamento? Podem os meios de comunicação colocar-se à margem do pacto constitucional? Em nome de interesses mercantis privados, podem desrespeitar as normas convencionadas pelo e para o conjunto dos membros da sociedade? A lógica comercial predominante está impondo o preenchimento dos espaços não ocupados pela publicidade com a notícia-espetáculo. Na guerra pela audiência e pelo aumento da circulação, a emocionalidade, o sugestionamento e os princípios do show business estão substituindo o Direito, a Ética e a Constituição.

Vamos permitir escancararem as portas a arbitrariedades?

Um processo judicial só passa a existir quando uma das partes provoca o Judiciário. Ele se desenvolve em uma unidade de tempo e espaço, em que todos os participantes têm seus papéis fixados e suas falas enquadradas por regras conhecidas de todos. Já os bastidores de um escândalo têm sua origem ocultada, a partir da garantia constitucional de sigilo da fonte. O público toma conhecimento das manifestações da crise, mas tudo ignora de suas motivações. Se nesse processo de exposição pública de fatos privados alguém se sentir injustamente acusado, os jornalistas alegam existir o direito de resposta. Entretanto, diferentemente do contraditório, ele só é exercido após a acusação já ter feito os devidos estragos na honra, imagem e privacidade das pessoas.

Jornalistas acreditam que tudo podem e que tudo deve ser mostrado, pois agem como os únicos ocupantes dignos do espaço público. Essa “fé”, contudo, escamoteia os interesses comerciais e mercadológicos que regem as máquinas noticiosas em que trabalham. Diferentemente, um processo judicial busca conhecer apenas aquilo que foi estabelecido de forma legítima. Daí a importância e o sentido dos procedimentos institucionais, pois são eles que estabelecem a maneira contratual de se tomar conhecimento de um fato. Em um Estado Democrático de Direito, aquele que se embrenha por uma via ilícita processual desqualifica a si e a operação de desmascaramento.

Cultura da desilusão e da impotência

A mídia brasileira vem promovendo a desmoralização sistemática dos atores da esfera pública e privada. O resultado dessas denúncias constantes, ao lançarem a convicção na sociedade brasileira de que ninguém presta, tem sido o de gerar, em nome do interesse público, um público desinteressado, incapaz de distinguir ditadura de democracia. Ao enfocar equivocadamente que a qualidade da vida pública depende do caráter dos homens e das mulheres que ocupam os postos chaves no governo e na sociedade, a mídia acaba por desconsiderar que é a transparência dos procedimentos que importa.

Ao considerar leitores/telespectadores/ouvintes como meros objetos de uso e troca mercantil, fontes de faturamento publicitário, e não como sujeitos de direito, de desejo e da história, a mídia brasileira vai construindo uma cultura da desilusão política e da impotência. Até quando os anunciantes continuarão a associar sua imagem, sua marca, para financiar e sustentar esta concepção jornalística?

 



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