Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quem são esses jornalistas?

EXERCÍCIO PROFISSIONAL

Chico Sant?Anna (*)

As eleições se aproximam e os potenciais candidatos vão buscando formas criativas de obter visibilidade. As iniciativas se voltam para os meios de comunicação. O Correio Braziliense , por exemplo, publica em duas páginas a reportagem "Viagem ao Brasil seco" (12/8/01). O texto jornalístico, recheado de entrevistas, é assinado pelo engenheiro mecânico e professor de economia da UnB Cristovam Buarque.

A iniciativa do CB, com a concordância de Cristovam, é uma espécie do quadro do Fantástico, "Repórter por um Dia", quando pessoas se travestem de jornalistas. A idéia visava outras experiências semelhantes. Uma reportagem sobre o vale do rio São Francisco já estava em fermentação. Esse tipo de procedimento já é moda em São Paulo. Lá o Sindicato estadual deu início aos processos administrativos e jurídicos para coibir o exercício ilegal da profissão. Os artistas e modelos são os principais irregulares.

Pouco antes de renunciar, o ex-senador José Roberto Arruda negociava a veiculação permanente de um programa sobre as bandas de rock de Brasília, na Rádio Senado. Uma edição especial chegou ir ao ar, com nítidas demonstrações eleitoreiras. O médico e deputado federal Agnelo Queiroz comanda o programa de entrevistas Saúde e Companhia, na TV Apoio. No mesmo canal, o ex-tucano e hoje socialista Regufe tem o Entrevista com Regufe. O programa convive com um similar, nas mãos da linha de Roriz. Wigberto Tartuce veicula sistematicamente seus editoriais nas rádios Jovem Pan e Atividade, de sua propriedade. O Recado do Wigão não é um caso isolado. O jornalismo tem navegado pelos mares da chamada espetacularização da notícia. Não basta o conteúdo, o fato. É preciso aplicar uma fórmula de marketing. Quem sabe botar a entrevistadora na cama? Não há melhor exemplo do que o noticioso que Pelé comandará na PSN: Show dos Esportes. O nome já diz tudo.

A iniciativa não é privilégio dos políticos locais ? o não-jornalista deputado Márcio Fortes (PSDB/RJ) também aparece em rede nacional, na telinha da TV Educativa. As nossas personalidades públicas parecem querer buscar para si próprias um pouquinho dos dividendos dessa espetacularização da notícia. Não há preocupação com a qualidade da informação. Da mídia, eles querem a visibilidade comum aos comunicadores de sucesso. Alguns chegam a trabalhar de graça ou, pior, compram espaço na programação.

Se a moda pega também no Distrito Federal, teremos em breve Joaquim Roriz sendo repórter de cidade, cobrindo os assentamentos, Luis Estevão setorista do Judiciário e, quem sabe, Wigberto Tartuce repórter de educação, acompanhando os cursos profissionalizantes. Essa, nem o peão segura.

Uma vitrina

Não se trata apenas de luta pelo respeito à legislação profissional, que exige capacitação profissional específica e de nível superior para ser jornalista. Esta prática é nociva à sociedade. Pessoas que deveriam ser o exemplo do respeito à lei não se envergonham em publicamente atropelá-la. Informação que deveria ser transmitida com qualidade, chega ao público impregnada de interesses maiores de seus redatores. O país tem mais de 60 mil brasileiros que atendem ao requisito legal para o exercício profissional do jornalismo. Desses, uns 7 mil moram em Brasília. Essa prática, que conta com a conivência das empresas, não é decorrente da falta de mão-de-obra e os profissionais do DF estão entre os melhores do país.

Para a sociedade, o aspecto mais nocivo é o verdadeiro motivo que leva tais pessoas a se travestirem de jornalistas, colocando em risco a qualidade da notícia repassada à opinião pública. Nenhuma delas está proibida de expor seus pensamentos nos veículos de comunicação. A lei não veda a redação de artigos e análises a não jornalistas. Nem mesmo na TV, mas dificilmente as emissoras, que são concessão pública, abrem espaço para o cidadão expor seu pensamento. Nos jornais, em todo o país, diariamente empresários, acadêmicos, políticos, lideranças sindicais escrevem artigos de opinião. Por que um político teria interesse em possuir um espaço nobre e, se possível, permanente na mídia? Certamente é o mesmo que o leva a pleitear a manutenção do horário político eleitoral: uma vitrina. Se a visibilidade é o que importa, como fica a fidelidade da informação?

Interesses estranhos

O jornalista, ao investigar um fato, ao entrevistar as pessoas, ao transmitir suas impressões ao leitor e espectador deve atentar a um dos princípios éticos mais importantes da profissão: "compromisso com a verdade dos fatos". E o candidato? Que compromisso teria ao assumir irregularmente a função de repórter? Por que as impressões do acadêmico Cristovam sobre a seca não se limitaram aos artigos e livros que ele rotineiramente escreve? Não seria o espaço maior que assume uma reportagem nas páginas de jornais, com fotos e ilustrações?

Estão errados e agridem o direito do cidadão em receber informaç&otildotilde;es de qualidade todos aqueles que sem habilitação passem por jornalistas, sejam famosos ou anônimos. Estão errados Agnelo, Regufe, Fortes, Cristovam, Adriane Galisteu, Luciana Gimenes, Pelé, Monique Evans… e tantos outros. Ser jornalista é praticar uma das profissões mais importantes, capaz de provocar mudanças sociais profundas. Jornalismo não é espetáculo, embora muitos insistam em transformar a notícia em show.

O Sindicato dos Jornalistas do DF já tomou a iniciativa de notificar as autoridades sobre os casos irregulares conhecidos, sejam eles famosos ou anônimos. As empresas ? em especial o Correio Braziliense, a TV Apoio, o Jornal da Comunidade e o JBr ? e os pretensos jornalistas também o estão sendo. Mas o debate que se traz aqui é mais amplo do que o exercício profissional. Queremos pautar a análise do comportamento ético ao se utilizar pessoas com interesses estranhos ao jornalismo para desempenhar uma profissão estratégica que, por isso mesmo, deve cercar-se de preocupações que garantam a sua fidedignidade.

(*) Jornalista em Brasília

    
    
                     

Mande-nos seu comentário