Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quem tem medo da transparência?

Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz (*)

 

M

atéria publicada em jornal de grande circulação em São Paulo, no dia 19 de julho de 1998, menciona projetos de lei que o Governo pretende aprovar no Congresso retirando “vantagens” dos Procuradores da República e proibindo divulgação de opinião e documentos relativos a processos ou inquéritos em curso.

Iniciativas como essa, comuns ultimamente, não têm revelado propósitos saudáveis, mesmo porque tomadas no momento em que o Ministério Público do Brasil, cumprindo expressos comandos constitucionais, atua como nunca em nossa história em defesa do interesse social, da infância, do patrimônio público, do meio ambiente, do consumidor, da ordem jurídica e do regime democrático (artigos 127 e 129 da Constituição Federal).

É óbvio que essas medidas, inéditas em nosso sistema jurídico e político, incomodam, e incomodam exatamente aqueles que detêm o poder político e econômico, ainda desacostumados com mecanismos livres e independentes de controle democrático!

Daí as inevitáveis reações…

A grande questão que se coloca, então, é a seguinte: quais os interesses em jogo, nesse embate? Como deverá a lei arbitrá-los?

Sim, porque o Direito pode ser encarado como sistema de organização de interesses: em cada uma das infindáveis situações de conflito que caracterizam a vida em sociedade, ele diz qual o interesse socialmente mais relevante deve prevalecer em face de outro, considerado menos relevante!

Na situação analisada, temos em disputa, de um lado, o interesse dos administradores públicos e, de outro, a meu ver, o interesse de toda a sociedade.

Os administradores públicos evidentemente gostariam muito de estar sujeitos ao menor controle possível no exercício de suas funções: é natural que procurem aumentar ao máximo o grau de liberdade de suas ações e, por outro lado, reduzir ao mínimo o risco de serem eventualmente responsabilizados por algum equívoco, ou de terem exposta negativamente sua imagem pública.

Para a sociedade, entretanto, certamente interessará sempre a maior dose possível de transparência e os mecanismos mais eficazes de controle da coisa pública.

Lamentavelmente, é muito frágil a consciência de nosso povo acerca desse conceito fundamental.

A coisa pública (res publica), entre nós, é mais freqüentemente considerada coisa “de ninguém” (res nullius) do que coisa “de todos” (res omnium): não sofremos tanto diante de um rio poluído, de uma praia privatizada, de ruas, praças e estradas deterioradas, de escolas e hospitais em colapso pois não os consideramos propriedades nossas (de cada um)! Não nos revoltamos diante de constantes notícias de malversação do dinheiro público, porque esquecemos que esse dinheiro é nosso, arrecadado na forma de pesados e múltiplos tributos!

É exatamente nessa falha cultural que vislumbro a origem de iniciativas como as do projeto mencionado na notícia, que caminha no sentido oposto ao das necessidades da imensa maioria do povo brasileiro.

Não precisamos de censura ou intimidação. Precisamos, sim, de publicidade, de transparência no trato das coisas públicas.

Punir delegados, juízes, promotores e procuradores por “vazamento” de informações é pretender retornar ao tempo das investigações secretas; é impor, ainda que por via reflexa, o cerceamento da imprensa ou restringir o princípio constitucional da publicidade dos atos públicos.

É claro que não estou a pregar a irresponsabilidade ou a desconsideração do justo e relevante interesse de qualquer pessoa na preservação da própria imagem.

Reconheço ainda que excessos são por vezes praticados. Para eles, porém, a legislação em vigor já prevê mecanismos mais do que suficientes de correção e reparação dos abusos.

O Ministério Público, ao que parece alvo principal do projeto, não pune ninguém. Não poderia fazê-lo, mesmo que quisesse. Impede-o um bom sistema que o obriga a deduzir todas as suas pretensões perante o Poder Judiciário, onde ao acusado são asseguradas as garantias da ampla defesa, da presunção de inocência e do contraditório!

Mesmo uma investigação, que careça de fundamento, pode ser sumariamente trancada por habeas corpus.

Toda e qualquer exposição desnecessária do investigado pode e deve ser coibida com rigor.

O que não parece razoável é inibir a proteção da coisa pública, de interesse de toda a sociedade, em homenagem apenas ao interesse individual do investigado. Isso seria, de resto, tecnicamente impossível: toda investigação causa, inevitavelmente, algum dano ao investigado e, vencidos os tempos da inquisição, e salvo hipóteses excepcionais de sigilo, previstas na lei, todo procedimento administrativo ou judicial é hoje, por exigência da Constituição, público (art. 37).

Mas, deixemos de lado o tecnicismo para cuidar de argumentos que qualquer pessoa entenderá.

Os projetos que, segundo o título da matéria comentada, “restringem a ação de procuradores”, se preocupam, claramente, com a imagem e com o interesse dos políticos e administradores públicos eventualmente investigados.

Será razoável essa preocupação?

Num país em que, comprovadamente, os pobres e miseráveis tendem a se tornar, em número crescente, cada vez mais pobres e miseráveis e em que os mais ricos tendem a ser cada vez mais ricos, ninguém se animará a sustentar que o dinheiro público (aquele que deveria estar sendo utilizado, prioritariamente, para dar, por exemplo, educação, saúde e emprego a quem mais precisa) tem sido administrado eficientemente entre nós…

A nação tem testemunhado, ao longo do tempo, incontáveis e graves casos de corrupção, malversação, desperdício ou dilapidação do dinheiro público.

Pois bem, diante de tantos e tão freqüentes desmandos, o que revela nossa história? Temos presenciado punições, investigações e condenações em demasia, excessivamente rigorosas, ou, ao contrário, temos tido como regra absoluta a impunidade?

A resposta pode ser facilmente encontrada em outras perguntas: Quantos políticos ou administradores públicos importantes foram exemplarmente punidos? Quantos, hoje, cumprem pena nos superlotados presídios brasileiros? De que casos, no passado, podemos lembrar em que isso tenha ocorrido?

Retornando ao ponto de partida deste comentário, reitero assim minha repulsa ao espírito das mudanças pretendidas.

Num país em que tem sido historicamente difícil ou mesmo impossível defender os bens públicos dos maus administradores, o que a imensa maioria da população precisa (sobretudo a dos excluídos, para os quais o dinheiro público, na área social, representa a única esperança de vida com cidadania) é a ampliação – e não a inibição – dos meios de controle.

O que reclama o interesse social é mais publicidade no trato dos bens públicos e mais liberdade de imprensa.

A quem, afinal, incomoda a transparência?

(*) Procurador de Justiça em São Paulo e membro do Conselho de Administração do Instituto de Estudos “Direito e Cidadania”.