Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Questão de ângulo (*)

Lira Neto, ombudsman de O Povo

“Estou para ver um problema, por mais complicado,
que, quando examinado pelo ângulo certo,
não se torne ainda mais complicado”

Poul Anderson, escritor

 

“Seca faz mortalidade infantil crescer 180%”, dizia título de reportagem de página inteira publicada, na segunda-feira da semana passada, pela Folha de S. Paulo. A matéria destacava números de municípios cearenses. Em Monsenhor Tabosa, por exemplo, o índice de mortalidade infantil saltara de 53,6 por mil nascidos vivos, no primeiro semestre de 1997, para 150 por mil, no mesmo período deste ano.

“Cai mortalidade infantil no Ceará”, afirmava dois dias depois, quarta-feira, a manchete do O Povo. Exatamente o contrário do que informara o título da reportagem da Folha. Quem estava falando a verdade? A Folha ou O Povo? Afinal, os índices de mortalidade no Ceará haviam crescido ou caído?

Por mais curioso que possa parecer, tanto a Folha quanto O Povo tinham em mãos os mesmos dados. Os números publicados pelos dois jornais eram idênticos. A diferença ficou por conta do enfoque dado aos mesmíssimos números, coletados pelo programa estadual de agentes de saúde. A matéria da Folha, assinada por Mario Vitor Santos, ex-ombudsman daquele jornal, destacava o aumento do índice de mortalidade infantil em municípios específicos do Ceará, como Crateús, Tauá, Crato e Monsenhor Tabosa. Regiões que estão sofrendo com a seca e que ainda apresentam taxas equivalentes à estimativa da ONU para Bangladesh e Nigéria. Em um quadro, ao lado do texto principal da reportagem, a Folha informava que a média geral da mortalidade infantil no Estado apresentou uma ligeira queda, de 47,2 por mil para 44,6 por mil, quando comparados os seis primeiros meses de 1997 e 1998.

O Povo fez justamente o raciocínio inverso. Depois de uma entrevista coletiva com o Secretário de Saúde do Ceará, Anastácio Queiroz, O Povo jogou o foco naquela queda discreta na média geral, colocando em segundo plano o grande crescimento da mortalidade infantil em municípios específicos. Ou seja: a Folha e os jornais cearenses utilizaram lentes diferentes para tratar de uma mesma situação. A manchete do O Povo fez uma leitura genérica e otimista dos números. A Folha preferiu um olhar particular e um ângulo mais crítico.

 

O que diz a Redação

Para nosso editor-executivo, Carlos Ely, O Povo teria feito a avaliação correta. “A partir dos números publicados pela Folha, mandamos imediatamente um repórter a campo, enquanto outro ficou encarregado de ouvir a Secretaria de Saúde”, diz. “Constatamos então que os números destacados pela Folha diziam respeito a situações específicas, e que, na verdade, na média geral do Estado, os índices de mortalidade infantil haviam caído no Ceará”.

Carlos Ely afirma ainda que a manchete do O Povo não foi contestada por nenhuma entidade da sociedade civil organizada. “Com os números que tínhamos, dizer o contrário do que dissemos seria apostar na visão apocalíptica e fazer o jornal assumir a função de arauto do caos”, argumenta. “É impossível brigarmos com os fatos”, completa Ely.

 

A ponderação do ombudsman

Ao analisarmos o quadro geral que mostra a mortalidade infantil no Ceará de 1994 até 1998, publicado pelo O Povo na edição de quarta-feira, é mesmo impossível deixar de constatar que, felizmente, nossa taxa de mortalidade infantil caiu de forma considerável, sendo reduzida, neste período, de 80 mortes por mil para algo em torno de 40 por mil. Essa é uma conquista inegável das autoridades de saúde no estado.

Porém, uma análise mais demorada dos números vai mostrar também que a velocidade desta queda arrefeceu ano a ano. Uma prova disso é a leve redução, de 46,7 por mil para 44,6 por mil, na comparação entre os seis primeiros meses de 97 e 98. Portanto, em vez de “queda”, nesse momento poderíamos falar de “estabilização” nos índices gerais de mortalidade infantil. Há uma oposição semântica forte entre “estabilizar” e “cair”, principalmente quando essas palavras são utilizadas, de forma taxativa, em pleno período eleitoral, em manchete de primeira página. Além do mais, o crescimento nas taxas de mortalidade infantil em áreas do sertão cearense representa um evidente sinal de alerta. Creio que tais ponderações deveriam ter sido feitas pelo jornal antes de nos decidirmos pelo tom marcadamente otimista, expresso na manchete do O Povo da última quarta-feira. Sem falar que uma taxa de mortalidade de 44,6 por mil ainda está acima da média brasileira, que é de 42 por mil. Nos Estados Unidos ela é de 7, e, em Cuba, de 9 por mil, segundo dados da ONU.

 

Entrevista

Na tarde da última sexta-feira, conversei por telefone com Mário Vitor Santos, ex-ombudsman da Folha de S. Paulo e autor da reportagem que denunciava o aumento nos índices de mortalidade infantil em determinadas regiões do interior cearense. A seguir, leia alguns trechos da conversa:

Ombudsman – Como o Sr. analisa a contradição entre a reportagem da Folha e a manchete do O Povo sobre a mortalidade infantil?

Mario Vitor – Os números utilizados por mim são os mesmos que os jornais cearenses tinham em mãos. A diferença está mesmo na forma de abordagem. Considero essa uma boa oportunidade para discutir qual o verdadeiro papel da imprensa e qual o sentido público da missão do jornalista. Entendo que a imprensa deve sempre optar pelo olhar crítico, pois tem um papel fundamental de fiscalizar e cobrar o desempenho dos que estão exercendo funções públicas.

Ombudsman – Mas então o Sr. seria adepto da velha máxima de que “o jornalista é essencialmente de oposição”? Para o Sr., a imprensa deve dar prioridade às más notícias?

Mario Vitor – O jornalismo é, essencialmente, oposição. Não no sentido menor, político partidário, do termo. Não se trata de dizer que a imprensa deva procurar sempre a má notícia. Dizer que o jornalismo é oposição significa dizer que o jornalista tem que cultivar, necessariamente, o espírito crítico. Respondendo a sua pergunta em outras palavras: o que o jornalista não pode ser é de situação. Isso sim perverteria sua missão.

Ombudsman – Como ex-ombudsman, qual análise que o Sr. teria a fazer do comportamento da imprensa cearense nesse episódio?

Mario Vitor – O leitor cearense teria o direito de saber que a coletiva do Secretário de Saúde foi convocada para rebater uma denúncia, publicada pela Folha. Isso os jornais cearenses não disseram. E por que só agora se sabe que em fevereiro houve um pico na mortalidade infantil no Ceará? Que outras informações tão graves quanto essa podem estar sendo sonegadas agora à opinião pública cearense? Não estamos falando de números, mas de vidas humanas. Pelo que pude acompanhar em outras coberturas, constato que a imprensa cearense, nesse caso, ficou muito aquém do que se podia esperar dela. Não há dúvidas de que a imprensa cearense ficou devendo a seus leitores.

(*) Copyright O Povo, 31/8/98.

 

 

Lira Neto

 

Na semana passada, depois de ter sido quase triturado por denúncias na imprensa, Luís Inácio Lula da Silva resolveu partir para o contra-ataque. Acostumado à posição de estilingue, incomodado com a situação de vidraça, Lula disparou munição pesada em direção à mídia. Afirmou que os meios de comunicação têm uma visível preferência pelo presidente-candidato FHC. Para Lula, a imprensa tem demonstrando um fernando-henriquismo explícito.

Já o candidato do PPS à Presidência da Rep&uacuuacute;blica, Ciro Gomes, há várias semanas também vem denunciando que estaria sendo alvo de discriminação por parte da grande imprensa brasileira. Para Ciro, a imprensa estaria boicotando sua candidatura, minando seu poder de fogo, reservando-lhe minguados espaços na cobertura jornalística sobre as eleições. Ciro Gomes puxa números do bolso do paletó para comprovar a tese de que há uma simpatia da grande imprensa por FHC. Todas as semanas, a assessoria de Ciro divulga balanços periódicos da cobertura da mídia sobre as eleições. Os dados dos últimos levantamentos feitos pela equipe de Ciro mostram que, entre os candidatos à Presidência, FHC chega a abocanhar, sozinho, quase 60% do volume total de matérias dos principais jornais, revistas semanais e redes de televisão do País. Lula, que esteve semana passada no Ceará, diz que nunca viu a imprensa tão submissa ao poder quanto agora. “Para a imprensa, esta parece mais uma campanha de candidato único”, reclama. Ao cobrar imparcialidade da mídia, o candidato petista indaga por qual motivo a seca, que continua matando no interior do Nordeste, sumiu completamente dos noticiários dos jornais, revistas e canais de televisão. Está aí uma boa pergunta para a imprensa responder. Ainda não conseguimos esboçar nenhuma resposta convincente para ela.

 

Relações perigosas

As críticas de Ciro e Lula à imprensa são dirigidas, é verdade, principalmente aos grandes veículos de comunicação situados no eixo Rio-São Paulo. No caso da mídia impressa e diária, por exemplo, os números levantados pela assessoria de Ciro Gomes são obtidos a partir do material veiculado nas páginas dos quatro maiores jornais brasileiros: Jornal do Brasil, O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de São Paulo.

Bom lembrar que alguns desses jornais, assim como outros grandes grupos de comunicação no País, estiveram diretamente interessados na privatização da telefonia brasileira. Integraram consórcios que concorreram nos leilões das teles e, coincidentemente, enfronhados nessas relações perigosas, tornaram-se adeptos incondicionais do projeto de privatização do governo federal, uma das principais bandeiras do candidato-presidente.

E é justamente a grande imprensa do Sudeste que acaba pautando o resto da imprensa brasileira. Nos chamados “jornais regionais” – ou seja, aqueles que estão fora do eixo Rio-São Paulo – o noticiário sobre a campanha presidencial é abastecido quase que exclusivamente pelas matérias compradas das quatro grandes agências de notícias do País. Agências que são ligadas exatamente aos quatro jornalões do Sudeste:

Agência Estado, Agência Globo, Agência Folha e Agência JB.

(?.)

Lições do caso Lula

As denúncias contra Lula, iniciadas na TV Bandeirantes, foram repercutidas com mais vigor pela imprensa regional a partir de material distribuído pela Agência Folha. Em 15 de agosto, um sábado, a Folha de S. Paulo noticiava, em manchete de primeira página, que conseguira um documento do Detran que comprovava que o candidato do PT havia vendido um automóvel para uma empresa doadora da campanha petista em 94. Mas, na quarta-feira, a própria Folha reconhecia que tal documento continha um erro de informação, o que descredenciava as denúncias do jornal contra Lula. Ou seja: o PT havia sido vítima do denuncismo, a doença infantil do jornalismo, sarampo ideológico que o próprio partido sempre ajudou a disseminar na imprensa brasileira.

Em meu comentário interno de quinta-feira, chamei atenção da Redação para a retificação feita pela Folha. No dia seguinte, O Povo publicou uma notícia, de pouco mais de 20 centímetros, informando também a seus leitores que Lula não havia vendido o carro à Barault, doadora da campanha petista, como o nosso jornal havia publicado a partir do material comprado da Agência Folha.

Mesmo acanhado, o mea-culpa do O Povo pode nos servir como lição. O material vindo de agências de notícias para a imprensa regional, principalmente diante das circunstâncias atípicas desse período eleitoral, precisa ser devidamente peneirado em suas intenções.

(**) Copyright O Povo, 24/8/98.

 

O que é a ABO

Estatuto

Código de ética do Ouvidor/Ombudsman

Diretoria da ABO

Email: jcthomps@uol.com.br