Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ratinho para mediador

CANDIDATOS NA TV

Nelson Hoineff (*)

Não dá para entender por que a Record escalou o Boris Casoy e não o Luiz Datena para mediar o debate dos presidenciáveis na noite de de segunda-feira, 2/9. Não só o Datena, mas o próprio nome do seu programa. Cidade Alerta ? ou melhor, País Alerta ? deveria ter sido o título da atração. Datena no meio, olhando soturno para os lados, e encorajando os candidatos a falarem todos ao mesmo tempo, abrindo generosamente seus microfones, fazendo apenas a cara de “não tenho nada a ver com isso”, expressão que só rivaliza com a de Ratinho, quando os casais de ex-amantes começam a brigar no seu programa.

Silvio Santos, aliás, tem a chance de fazer o óbvio quando chegar a sua vez. Escalar Ratinho como mediador, no próprio cenário de seu programa, com os tiros de canhão e tudo. As quatro poltronas multicoloridas onde os candidatos se sentarão; os magníficos tipos brasileiríssimos que povoam o estúdio ficarão girando em torno dos candidatos, a lembrar, como o fazem todos os dias, que isto é Brasil; todos os microfones abertos; Ratinho batendo as mãos tipo “tô fora”, o auditório delirando com o pega-pra-capar. E os MIBs apartando os mais exaltados, na hora da refrega, sob o incessante ruído das sirenes.

Recursos assim trarão grandes vantagens para os próximos debates. 1) Evitarão que outros mediadores paguem o mico de um experiente Boris Casoy quase perdendo o controle da situação e tendo que fracionar sua fala ante os berros dos candidatos, diante de um público telespectador que pouco entendia do que se passava porque não ouvia nada, exceto o próprio Casoy; 2) trarão às telas o debate real, porque é na sua amplitude que ele está sendo travado, e não nos limites determinados pelo engessamento das regras e das boas maneiras. O fiasco da Bandeirantes já havia deixado claro que quanto mais engessado, mais pueril se torna o debate.

Sutilmente, aliás, a Record tentara desde o início impor ao show o jeito Datena de ser, ainda que estabelecendo com isso um insólito confronto entre o que o mediador tentava dizer e a reportagem procurava fazer. Do lado de fora, a repórter Bianca Vasconcellos cobria obstinadamente a ação dos cabos eleitorais e a presença da PM, contabilizada em 130 soldados no primeiro bloco e 150, no segundo. Como a movimentação externa reiteradamente se mostrava “até agora sem vítimas” ? o que deve ter decepcionado a muita gente ?, o contingente policial não continuou a subir. Como no próprio Cidade Alerta, esperou-se em vão pela tragédia que não quis acontecer na hora marcada.

Quente estava no estúdio do Raul Gil ? embora as regras de boas maneiras tentassem evitar que isso acontecesse. Bobagem. Político deveria ser visto pelo eleitor fora de seu persona ? ainda que nem eles desejem isso nem as emissoras de TV tenham a coragem e muito menos a criatividade para tal (mesmo se tivessem, acabariam sendo barradas pela censura do Judiciário). O que os debates estão mostrando não é o que os candidatos dizem ou como eles de fato agem, mas os resíduos dos esforços que as emissoras fazem para domesticá-los.

As redes de televisão sentem-se no dever de apresentar todos os candidatos como bem-educados e serenos, coisa que eles não são; querem impingir modelos de comportamento e de postura ética que eles geralmente não têm. (Se os tivessem, aliás, dificilmente teriam chegado a disputar uma eleição para presidente.) Mas o pior é que essas emissoras, para as quais o conceito de realidade só evolui até o Big Brother, não cogitam em mostrá-los ao espectador como de fato eles são na sua essência.

Do ponto de vista do eleitor, isso poderia ser até fator de encantamento (não devemos nos esquecer que o eleitor brasileiro colocou Collor na presidência). Mas dá pena vê-los se esforçando para berrar, insultar, gesticular, gritar palavrões e sendo contidos por uma televisão que insiste em fazê-los se comportar como freiras, em criar uma imagem de bom mocismo que se encaixa muito mais no perfil de hipocrisia e mediocridade que está na grade de programação dessas emissoras do que na imagem que os próprios candidatos possivelmente admitem vender de si mesmos.

Admitir a própria truculência talvez tenha sido o único mérito da vida política de Collor. Hoje, todas as alianças sórdidas que as campanhas estão mostrando acabam sendo desmentidas, escamoteadas ou modificadas no dia seguinte. A TV aceita isso como normal e colabora para que os debates não tenham o propósito de deixar os candidatos dizerem o que realmente pensam, mas em descobrir onde estão as brechas das mentiras que todos estão aceitando.

Isso equivale a mostrar onde está a câmera num filme de ficção. Todo mundo sabe que ela existe e aceita esse fato, mas age como se não soubesse ? e por isso é capaz de se entreter com a ação ficcional que ela registra.

A TV deve tirar a imagem dessa câmera, que Godard às vezes colocava em seus filmes para lembrar que tudo o que estamos vendo é mentira. Temos que encontrar mecanismos de mostrar não a mentira, mas a verdade. Mas não será nesse formato que vamos conseguir isso.

(*) Jornalista e diretor de TV