Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Área de sombra na imagem popular

ICONOGRAFIA DA BARBÁRIE

Antônio José do Espírito Santo (*)

Como um filme mal editado, a mídia no Brasil começa a sofrer, em muitos aspectos, as conseqüências da ausência de imagens que reflitam o que realmente acontece nas entranhas de nossas grandes cidades, principalmente no interior dos enormes bolsões de exclusão e miséria ainda hoje chamadas, com certo descaso semântico, de comunidades carentes.

Que efeitos estas circunstâncias produzirão, num futuro mais imediato, sobre o acervo de imagens da vida contemporânea de nossas grandes cidades, principalmente Rio e São Paulo, sobre a iconografia de nossa alma urbana em suma? Que falta estas imagens farão á compreensão de nossa realidade, aquela compreensão tão necessária à formulação de políticas que estimulem nosso desenvolvimento ?

Para início de conversa, pode-se supor talvez que, entre outras razões, a circunstância desta nossa carência de imagens reais do cotidiano foi recentemente instalada pela violenta e absoluta rejeição que os traficantes de drogas ? e as diversas outras modalidades de bandidos que hoje infestam o Brasil ? passaram a sentir pela imprensa em geral, principalmente por aqueles setores voltados para o registro de imagens, em coberturas jornalísticas que, por força do enorme aguçamento da violência urbana, passaram rapidamente a assumir a condição de cobertura de guerra.

Havia já na moderna iconografia jornalística do Brasil (na filmografia inclusive), por conta dos renitentes (embora sutis) mecanismos de afirmação do nosso elitismo, um certo manto de invisibilidade que encobria, por exemplo, a trágica vida nas favelas, invisibilidade esta encoberta pela criação de uma imagem, idílica, romântica, do favelado cordial, pitoresco e submisso, dominado por meia dúzia de contraventores fuleiros e desorganizados, imagem que talvez nada mais fosse do que uma espécie de projeção de como os intelectuais de nossa iníqua classe média gostariam que os favelados efetivamente fossem: seres miseráveis, porém, conformados, bem-humorados e inofensivos.

Na teletela de Orwell

Foi justamente quando este manto de hipocrisia jornalística parecia se dissipar que a síndrome Tim Lopes se abateu, de forma definitiva, sobre esta arriscada forma de se fazer imprensa no Brasil.

Produzindo sub-repticiamente o registro, flagrando os delitos, o modus operandis da bandidagem, num contexto que já poderia ser descrito, sem nenhum exagero, como típico estado de guerra, com dois lados empenhados em verdadeiras batalhas de morte, auxiliando (ou sendo utilizada) na produção de certo tipo de retrato do submundo que, por sua contundência, acabavam por se transformar em provas e atos de denúncia direta contra indivíduos de alta periculosidade, nossa imprensa talvez só tenha se dado conta dos enormes riscos ? jornalísticos e humanos ? contidos nesta sua temerária estratégia, quando Tim Lopes foi barbaramente trucidado por Elias Maluco.

O fato é que, no afã de cumprir, talvez açodadamente, sua função de caçadora de notícias, a imprensa de nossas grandes cidades passou a divulgar, de maneira muito sistemática, certos segredos estratégicos cruciais para a estabilidade do crime organizado, esquecendo-se de que estava envolvida na cobertura de uma guerra e que, neste caso, não poderia autorizar jamais que seus correspondentes penetrassem, sem apoio policial ou militar, nas linhas inimigas.

Esta ojeriza pela utilização judicial ou comercial de imagens de seu cotidiano foi crescendo lentamente no meio dos traficantes, ao mesmo tempo em que ia se formando no Brasil, a exemplo do que já ocorria no resto deste nosso globalizado mundo, uma espécie de sociedade "Big Brother", com a privacidade de cada cidadão (sempre em nome da segurança de todos) sendo controlada por milhares de câmeras e microfones ocultos, gerando em todas as pessoas de bem uma sensação de contraditória insegurança.

Apagão do viver

Perdendo o controle da situação e abandonado a imparcialidade (condição difícil mas, essencial á imprensa também em situações de guerra), os jornalistas (fotógrafos, principalmente) passaram a ser vistos como "xisnoves", espiões em potencial, se transformando em bola da vez, na ótica dos traficantes, vítimas preferenciais de mortes exemplares, assassinatos emblemáticos, quase culturais, como efetivamente aconteceu com o hoje mítico Tim Lopes.

É por esta, entre outras razões, que hoje existem apenas lendas, relatos orais do que acontece realmente no interior de um complexo de favelas.

Circula também, a bem da verdade, um certo tipo de imagem bem próxima do real (talvez um tanto glamourizada demais) que anda sendo expressa por aí em bons filmes e telefilmes como Cidade de Deus e Cidade dos homens. Desde que o controle violento dos traficantes sobre os espaços mais carentes da cidade se agudizou, no entanto, rigorosamente nenhuma imagem real ? principalmente noturna ? pôde ser gerada ou trazida para fora do contexto onde foi produzida.

Outro aspecto importante é que, ao mesmo tempo em que a enorme popularização de máquinas, meios e equipamentos para o registro de imagens virava um fenômeno de consumo no Brasil, o crescente interesse das agora escaldadas empresas jornalísticas (principalmente emissoras de TV) pela aquisição das impactantes imagens desta guerra passou a ser orientado no sentido de racionalizar, ou mesmo anular, todos os custos operacionais e humanos diretos, comprando imagens geralmente produzidas por outro interessante personagem de nossas selvagens cidades: o bravo e indefectível "cinegrafista amador".

É com efeito esta conjuntura que acaba por estimular se não o surgimento pelo menos a afirmação deste tipo de "profissional" de imprensa, safo, ágil, clandestino, biscateiro especializado na documentação de solenidades comunitárias, batizados, festas de casamento, bailes funk etc., indivíduos que, transformados numa espécie de paparazzi de mazelas e tragédias urbanas, logo se transformaram em incansáveis caçadores de qualquer imagem inusitada que tenha interesse jornalístico especial (e o conseqüente valor comercial) ? exceto é claro aquelas cuja obtenção signifique o risco da vida ou a certeza da morte.

Ninguém sabe…ninguém viu.

Está se criando por conta disso tudo uma extensa área de sombra na iconografia de nossas grandes cidades, um apagão provocado pela falta de registros gráficos (fotografia, cinema, TV) retratando o dia-a-dia, o bem e o mal-viver dessa gente, ou até mesmo o que acontece nos espaços públicos onde vivem ou circulam estes milhões de pessoas que o Brasil rico e remediado, hoje já meio apavorado, teima em esconder.

Tarefa urgente

Infelizmente este vazio, muito provavelmente, só poderá ser preenchido um dia pela pesquisa ou coleta de imagens privadas, registradas por aqueles mesmos cinegrafistas amadores em festas comunitárias, casamentos, álbuns de família, imagens aleatórias, cifradas, censuradas por severíssimas leis do silêncio, geradas que serão pelas mais vagas motivações e interesses fortuitos, sobre as quais não podemos ainda sequer prever a estética e os conteúdos, porque serão reflexo da visão estreita, da visão possível, obtida através de um ângulo bem fechado, de dentro destas comunidades, que se tornaram trágicas cidadelas da invisibilidade.

Parece óbvio, pelo menos nos aspectos abordados até aqui, que esta situação só poderá provocar, a curto prazo, a confrontação na mídia brasileira de duas iconografias contraditórias mas não excludentes: uma hegemônica, que voltará a ser imaginada ou idealizada pelos habituais profissionais criadores de imagens (fotógrafos e cineastas principalmente), segundo sua exclusiva visão estética e ideológica, alimentada por seu interesse comercial evidente e aquela outra, produzida pelos próprios habitantes das tais comunidades carentes (inclusive os traficantes), anárquica, espécie de iconografia autofágica, movida por códigos de linguagem e conteúdos absolutamente imprevisíveis mas de valor sociológico muito maior.

Não é difícil se concluir portanto que, na falta de outras, estas imagens quase endoscópicas ou tomográficas de nossa sociedade serão essenciais à compreensão de nossas doenças sociais mais graves, pistas vagas, porém, quiçá únicas para almejarmos talvez alguma cura no futuro.

Extrair e compreender as imagens retidas no interior destas nossas cidadelas de invisibilidade será uma tarefa jornalística urgente daqui para a frente. Quem viver verá. O pior cego é mesmo aquele que não quer ver.

(*) Músico e pesquisador da Uerj