Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Reflexão ética e crítica diária

SEMINÁRIO VEIGA DE ALMEIDA

Maristela Fittipaldi (*)

Em geral, quando se fala em ética no jornalismo, associa-se a questão a dilemas que, sem dúvida, são de cunho ético, como invasão de privacidade, conflito de interesses, ofertas grátis, viagens patrocinadas, troca de favores, envolvimento pessoal entre o jornalista e suas fontes. Mas, além ? ou até mesmo antes ? destas questões, há aspectos e características particulares da atividade noticiosa que abrem caminho para desvios de natureza ética e que dizem respeito aos jornalistas no seu trabalho cotidiano. Eis um dos desafios da comunicação: reconhecer a necessidade de reflexão e questionamento ético ao longo de todo o "fazer jornalístico", na medida em que há opções éticas (mesmo quando o jornalista disto não se dá conta) nas decisões de cada dia ? aquelas que precedem e presidem a seleção das pautas, a escolha das fontes, a abordagem do assunto, a execução da matéria e a construção do texto.

Não resta dúvida de que informação já é processamento, e que não há narrativa eticamente neutra. Antes de chegar às páginas do jornal e às mãos do leitor uma matéria jornalística aciona uma complexa engrenagem e engendra um múltiplo processo de decisões. Há princípios que regem o fenômeno jornalístico e a comunicação coletiva, há variáveis inerentes ao processamento da notícia, há critérios técnicos, éticos e ideológicos que orientam a seleção de pautas. Desde o primeiro momento de concepção da notícia, o jornalista já está às voltas com toda esta rede complexa.

Não é segredo também que todo jornalista, do repórter ao editor, seleciona e dá pesos diferentes aos elementos de informação que passam por suas mãos. O estilo, o vocabulário e o próprio nível da linguagem já traduzem uma atitude. É sempre necessário cortar, reunir passagens interrompidas, dar uma forma ao texto. Podemos dizer que uma declaração é uma declaração, e que só é preciso reproduzi-la, ou que um fato é um fato, e basta levá-lo ao conhecimento do público. Mas sabemos que não é assim. É sempre preciso fazer escolhas. Também quanto aos relatos dos fatos, existem tantos quanto são as testemunhas, com pontos de vista díspares ou mesmo divergentes. Isso significa que, ao falar do que aconteceu, o profissional da imprensa já fala de algum modo. E, a partir do momento em que há um recorte da realidade por determinado sujeito (o jornalista), há sempre uma ou muitas opções em jogo ? isso é inevitável, pois não há outra maneira de trabalhar ? e, portanto, há uma ação ética em curso.

Esta complexa peneira semântica e cultural que o jornalista é obrigado a realizar diariamente marca a matéria-prima do jornalismo e representa o exercício de considerável poder: o de decidir como determinado aspecto da realidade será apresentado. Pois a primeira necessidade ética que se impõe ao jornalista é ter a noção exata e a consciência crítica do poder que tem nas mãos. Esta posição crítica é tão indispensável à informação quanto os próprios dados factuais da notícia. Não se pode, sob qualquer que seja o pretexto, engolir todos os discursos e aceitar prontamente todos os relatos. É preciso que o jornalista efetue constantemente exames críticos, sem os quais ele não será capaz de expor as muitas dimensões e a complexidade do fato.

A complexidade de nossa sociedade reforça o caráter indispensável de uma atividade informativa diversificada e atenta. E o papel ético do jornalista é, justamente, ser um facilitador para reflexão. Para que o trabalho do profissional da mídia possa remeter o leitor a refletir (ou seja, a realizar avaliações críticas segundo mérito pessoal) sobre mudanças nos comportamentos e nos modos de compreender a vida e vivê-la, do agente da imprensa exige-se que, além de competente no desempenho de rotina, seja capaz de avançar, de ir além, de criar. Evitar que suas escolhas se enrijeçam e que seu discurso se cristalize: eis duas importantes premissas éticas para o profissional da comunicação.

O máximo de elementos

Embrionária ou minuciosa, a atitude ética e crítica consiste (ou deveria consistir), entre outras coisas, em o jornalista não considerar a versão institucional como verdade absoluta; buscar elementos factuais; checar fontes e informações; utilizar conhecimentos e depoimentos meticulosamente; desmascarar outras dimensões da realidade; usar com precaução as informações, após haver testado e avaliado a consistência; estar atento às escalas culturais que presidem a construção da notícia. O que acontece nas redações dos jornais é que, em geral, o profissional está tão habituado a realizar uma ou várias opções por dia que, muitas vezes, se entrega à tarefa de comunicar de forma rotineira, sem uma reflexão consistente, o que já de antemão coloca em cena sérios riscos de desvios de natureza ética.

Não existe, é claro, método infalível para a perfeita confecção de uma matéria. Mas quando o jornalista percebe que o questionamento ético está ? ou deveria estar ? presente em todo o processo de produção de uma notícia, desde a elaboração da pauta até a edição da matéria, um grande passo para uma imprensa mais ética está sendo dado. No jornalismo, do momento em que qualquer seleção jornalística acontece, não somente é preciso refletir criticamente sobre esta operação para compreender sua importância, seu impacto e, portanto, seus resultados, como também este processo não pode ser realizado às cegas. Interrogar-se sobre as modalidades e os critérios desta opção é uma regra ética básica, pois a retomada do real só pode ser modestamente tentada se houver um exame crítico das opções iniciais e dos diversos métodos e condições do relato jornalístico. A escolha, a forma e a apresentação da notícia exigem uma atividade crítica que é, na verdade, a essência do jornalismo.

O jornalista ciente disso cerca o acontecimento de vários modos diferentes; multiplica os testemunhos contraditórios; utiliza as melhores e mais qualificadas fontes; não se satisfaz com informações, mas as avalia, as compara, na procura de outras que possam complementar e desenvolver seu exame. No esforço para restituir ao acontecimento suas dimensões, sua complexidade, suas implicações, ele coloca o fato acontecido como inesgotável. Diante da realidade, sempre complexa, não cabe ao jornalista nem ser neutro (ilusão que o jornalismo alimentou por muito tempo) nem interpretar os fatos (o que significa compromisso fechado com um sentido), mas processar os dados e oferecê-los ao leitor de tal maneira que ele também possa processar as informações que recebeu.

Ter uma atitude ética corresponde a uma postura empregada pelo jornalista que produz informações contextualizadas, apreendendo diferentes nuances dos acontecimentos para permitir ao leitor uma compreensão sua da realidade em que vive ou em que transcorre o fato noticiado. Caracteriza-se por fornecer sobre um assunto o máximo de elementos, uma atitude que pode e deve se manifestar em todos os níveis da informação ? da seleção de pautas e fontes de informação à criação do suporte textual. Trata-se de não se contentar com as questões propostas, mas de buscar outros aspectos, outras dimensões, outros elementos factuais. Trata-se de uma necessidade imposta, por assim dizer, pela realidade, e que conduz, inevitavelmente, a um jornalismo mais comprometido com a ética.

(*) Professora universitária e doutoranda da ECO/UFRJ