Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Regina Ribeiro

O POVO

"Copa e autocrítica" copyright O Povo, 7/7/02

???O Brasil foi… vencendo, vencendo, vencendo e vencendo?.

Um garoto de mais ou menos 7 anos numa entrevista pela TV no dia 30

Domingo passado, o leitor lembra muito bem. O País estava grudado em frente à TV esperando a hora do jogo e os gols que garantiriam a vitória do Brasil e a taça de pentacampeão mundial. Tempo sofrido para quem gosta de futebol e mais sofrido ainda para quem não entende do traçado. Estando perfeitamente integrada na segunda opção, a minha Copa particular teve lances extremamente complicados tentando driblar o noticiário e fazer pelo menos um gol: decifrar a linguagem do futebol, incluindo as críticas acirradas contra a seleção brasileira e o técnico Felipe Scolari.

Expectativas

Tive de avaliar o noticiário esportivo produzido pelo O POVO, ler outros jornais para ampliar as bases de referência, ver TV com seus analistas dizendo as mesmas coisas sempre durante vários dias. E como fazer tudo isso sem entender patavina dessa ciência esportiva?

Jogo e representação

No final de cada jogo e a repetição exaustiva dos gols, lances e comemorações, ainda havia os textos sobre o desempenho da seleção brasileira, marcação, técnica, técnico, zaga, erros táticos, informação, crítica, análises e mais análises, probabilidades, estados de espírito, ódio ao Felipão, fraqueza dos times adversários. Copa inédita pela qualidade (ruim) das equipes; Copa em que o Senegal avançou até o limite do inesperado. E o que dizer da Coréia? Expectativas aumentando por causa da baixa qualidade dos adversários. Ótimo. A marcação continuava errada. Felipão não sabia escalar de jeito nenhum. Tinha de ser 4-3-2 e nunca 5-2-3. (Os números são hipotéticos). Pois sim, esse homem quase matou milhões de torcedores do coração. ?Desse jeito não agüento?, bradavam articulistas e comentaristas expostos na mídia com suas ricas observações.

Perguntas

Por que o Brasil com um futebol tão ruim não perdia um jogo? São os outros que são piores. Foi passando, goleou a China. Mas, e chinês joga futebol? Eles conseguem ver a bola? Não conseguem. Levaram cinco gols do Brasil e só não levaram mais porque o time brasileiro ?ainda? era ruim demais. A tática estava errada. A ?Família Scolari? tinha um ?cabeça de bagre? na liderança. Turrão, não ouvia ninguém, só fazia o que queria e ainda respondia mal aos jornalistas. Esses sim, tinham respostas para as asneiras do futebol brasileiro.

Nada sei

Como é bom não saber nada de futebol. Ficar observando e caminhando entre as informações como quem anda no meio de uma plantação. Tudo igualzinho. De longe. De perto, as diferenças, as particularidades.

Conversão

Aos poucos fui vendo essa imprensa inteira se converter à ?Família Scolari?. Veio aos poucos. Primeiro, foram as jogadas individuais a invadir o noticiário, que passou a ver a ?beleza do futebol? nacional voltando. Depois, as revelações, os jogadores passaram a surpreender os analistas. O ?Fenômeno? Ronaldo mostrou e provou que estava recuperado da cabeça e do joelho. E o ?cabeça de bagre?? Esse virou herói. Sem dúvida nenhuma. Jeito simples, humilde, firme, não abriu mão do que acreditava. Acertou quando manteve a equipe junta, unida, concentrada. É bom não esquecer das críticas ferozes que vieram a público após a decisão do técnico de optar pela concentração e deixar os jogadores sem sexo durante um período. O tempo fechou. Toda a imprensa saiu para socorrer os jogadores das garras do censor de Eros. Terrível. Imaginem deixar os homens sem essa atividade tão vital para o bom desempenho de todas as outras funções.

Mais dúvidas

Refletindo o que li e ouvi antes e o que fui lendo e ouvindo depois, achei tudo estranho. O que era defeito se transformou em qualidade? O que traria a Seleção humilhada para casa, de repente a levou a ser considerada a melhor do mundo? Não teria alguma coisa errada com essa seleção? Não. O Felipão é que passou a ouvir a imprensa, os analistas e os comentaristas.

Paixão

Será que a imprensa e seus analistas esportivos não exageraram? Será que a imprensa esportiva não se assemelha aos analistas das agências que medem o risco-Brasil, que só observam o que está ali, no momento, na hora para dar uma resposta imediata ao mercado? Não. É muito diferente. Futebol é paixão. É emoção. É a mais pura verdade. Mas, o jornalismo esportivo não precisaria ser menos apaixonado? Não seria justamente ele que deveria ir mais fundo na plantação e verificar as diferenças?

Diário

Li o diário do técnico Luis Felipe Scolari nos primeiros dias de concentração com os jogadores, uma semana antes de começar a competição mundial e que foi publicado pelo O GLOBO no dia 2 de junho. Vejam o que ele escreveu no dia 29 de maio: ?Estamos no caminho que tracei e o rendimento me agradou. Acho que nosso primeiro objetivo deve ser o de passar a primeira fase, muito perigosa, e depois, passo a passo, chegaremos entre os quatro. Vamos pensar com calma em como conquistar esse título. Mas o caminho vem sendo cumprido.?

No dia 31, o técnico explicou: ?Ter atenção, disciplina, espírito de luta, entrega e seguir a orientação do treinador é fundamental num grupo vencedor. A vitória do Senegal foi um grande sinal de alerta para todos?.

No dia 1 de junho Scolari tascou no diário: ?A Copa vai começar para nós e todos devem estar cientes do que ela representa não só para eles como também para o Brasil. Confio neste grupo (…).

Autocrítica

É claro que tudo isso parece tão óbvio hoje. Mas seria bom admitir que toda a imprensa abusou da hostilidade e do descrédito. A maior lição que esta Copa me deixou, enquanto leitora e profissional, foi reconhecer o quanto nós jornalistas somos tão arrogantes, algumas vezes, a ponto de não conseguirmos perceber até onde alcança a nossa possibilidade de representar a realidade com base no que nós vemos e percebemos e achamos e acreditamos."