Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Regina Ribeiro

O POVO

"Cirurgia suspeita?" copyright O Povo, 10/8/02

"Na última quinta-feira, 8, O Povo abriu a página 7 com a seguinte informação: ?Cirurgia sob suspeita?. A notícia estava nos noticiários de TV desde o dia anterior. Em todos os veículos a informação principal era uma só: a teóloga (Diário do Nordeste) ou pastora evangélica (O Povo), Mirian Alves Bezerra, 50, acusou o profissional Francisco Malcíades de Lucena de erro médico. Segundo o relato do O Povo, Mirian Bezerra diz que seu rosto ficou ?deformado? após ?uma cirurgia plástica para correção das pálpebras e para levantar a pele da face?. O DN apresenta algumas informações complementares afirmando que a cirurgia foi um ?lifting de fios – um procedimento no qual fios são infiltrados na pele para a retirada de expressões faciais?. O procedimento cirúrgico foi realizado no dia 2 de agosto último. A denúncia foi encaminhada ao Conselho Regional de Medicina (Cremec-CE) no dia 7.

O apelo para recebimento e ampla divulgação de denúncias desse tipo pelos veículos de informação é compreensível e tem a finalidade de alertar a população dos cuidados necessários que precedem qualquer tipo de cirurgia estética. As estatísticas mostram que as cirurgias plásticas estão em alta no Brasil. No ano de 2000 por exemplo, 350 mil pessoas submeteram-se a uma cirurgia plástica com função estética. A relação entre a quantidade de intervenções e a população chegou a um resultado de 207 cirurgias para cada 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos essa relação, h&aacutaacute; dois anos, era de 185 pacientes submetidos a cirurgias estéticas para cada 100 mil habitantes.

Denúncia e veículos

Os jornais ouviram a advogada do médico Malcíades de Lucena, Erinalda Escartela, e presidentes de entidades médicas. Os veículos cumpriram a sua função de dar a versão de cada um, e pronto. Certo? Errado. Essa é o tipo de matéria que precisa de informações complementares. Algumas perguntas, porém, se mantiveram sem respostas até sexta-feira no O Povo. Por exemplo: há a possibilidade da ?deformidade? apresentada pela paciente Mirian Alves ser passageira e fazer parte do processo normal de recuperação de uma cirurgia do gênero? É possível saber se o médico em questão é culpado por erro médico nesse momento em que a paciente ainda está em estágio pós-cirúrgico? Como se dá as questões legais envolvendo especialidades médicas e o direito que um médico tem de realizar qualquer intervenção cirúrgica?

Na quinta-feira, ao questionar o texto publicado no comentário interno, recebi retorno da Redação afirmando que a matéria estava sendo suitada, ou seja, haveria continuidade do assunto no dia seguinte. ?Nela – na matéria seguinte – deverão estar os peritos que examinaram ontem (dia 7) a paciente. Vamos procurar responder se a deformidade é efeito da recuperação ou resultado de imperícia. Sobre as outras informações, o Ciência & Saúde está trabalhando um material sobre cirurgia plástica, mas essa do ?lifting de fios? pode ter esclarecimento logo?, dizia o retorno da Redação. A suíte do dia seguinte praticamente não avançou.

Especialistas

Depois de conversar com dois especialistas afirmo aos leitores que existe a possibilidade de que a paciente Mirian Alves não tenha sofrido deformidade por erro médico. As explicações a seguir, dadas pelos cirurgiões plásticos, não são uma resposta específica ao caso citado nesta coluna. Elas valem, portanto, para toda as cirurgias. O presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), no Ceará, Edmar Maciel, afirma que após uma cirurgia plástica é normal que na região onde se deu a intervenção cirúrgica apareçam edemas (inchanços) na pele, que vão regredindo ao longo de 30 dias. Antes disso não é possível fazer um julgamento da operação.

Ele explicou ainda que o ?lifting de fios? é uma técnica de repuxamento que pode melhorar tanto a flacidez da pele quanto a dos tecidos mais profundos. É feito através da colocação de uma substância inerte na face. O cirurgião dá pontos internamente com o objetivo de repuxar as estruturas internas do rosto de forma que fiquem simetricamente iguais. Esse tipo de intervenção pode demorar até dois meses para que todo o edema regrida. Ele observa que essas informações são teóricas, porque a técnica é pouco utilizada por cirurgiões plásticos e ele, pessoalmente, não a utiliza.

O cirurgião plástico Edson Nóbrega, membro da Câmara Técnica de Cirurgia Plástica do Conselho Regional de Medicina (Cremec-CE) confirma que intervenções cirúrgicas plásticas produzem edemas (inchaços) e equimoses (manchas arroxeadas) que vão desaparecendo aos poucos. Dentro de 15 dias, o aspecto já é outro, com dois meses estará muito melhor e num período de até seis meses estará com contornos bem diferentes dos imediatamente pós-cirúrgicos, explicou o cirurgião.

Trocando em miúdos, um erro depois de uma cirurgia plástica não pode ser detectado num período de cinco ou seis dias, como foi afirmado na matéria pela denunciante.

Procedimento e crítica

Todos os veículos deram a informação, dentro dos procedimentos normais para divulgação de uma denúncia, ou seja, as partes foram ouvidas. Uma das informações consideradas mais importantes pelos representantes de entidades médicas é o fato de Malcíades de Lucena não ter registro nas associações que reúnem profissionais que fazem cirurgias plásticas, embora, legalmente, seja dado ao médico o direito de realizar intervenções cirúrgicas. A explicação para esse fato é que devem ser respeitadas as especialidades médicas, como observa o cirurgião Edson Nóbrega. Ou seja, um cirurgião plástico não deve fazer um transplante de coração, a não ser que tenha condições de fazê-lo; da mesma forma que um ginecologista não deve fazer cirurgia plástica de rejuvenescimento se não tem competência comprovada para tal.

Apesar disso, o fato é que o médico em questão, até o momento, não pode ser julgado por algo que mesmo os especialistas concordam: não é possível saber se houve ou não um erro médico neste momento, independente dos títulos e especialidades do senhor Malcíades de Lucena. O julgamento informal do médico, no entanto, começou no dia em que a denúncia foi divulgada. Quando alguém é acusado de algo, tem que se defender, mas a impressão do público sobre o fato, foge totalmente ao controle, tanto da acusação, quanto da defesa. Isso quer dizer que, mesmo se defendendo, uma pessoa pode ter sua imagem comprometida por causa de uma denúncia. O médico Malcíades de Lucena pode ter cometido o erro e vai ser julgado por isso pelo Conselho Regional de Medicina. Mas ele pode ter cumprido de forma adequada todos os procedimentos da intervenção cirúrgica estética. Para se saber disso será necessário esperar um pouco mais.

Considero porém, uma falha do O Povo não ter dado, com mais agilidade, maiores esclarecimentos sobre o tema. Perderam os leitores e perdeu o jornal que teve a chance de exercitar um jornalismo mais esclarecedor e mais crítico diante de uma denúncia."