Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Regina Ribeiro

O POVO

"Intenção e interpretação", copyright O Povo, 27/1/02

"O Fato Real; nada melhor, quando se está grudado nele, contanto que você não se deixe estraçalhar. Não há sensação melhor na Terra. Salman Rushdie, escritor indiano.

Vamos voltar às meninas molestadas pelo frei Tomaz, de Santana do Acaraú hoje, mas antes permita-me discutir um pouco com você uma idéia do escritor italiano e semiólogo, Umberto Eco, autor de o Nome da Rosa e agora, do recém-lançado Baudolino, entre outros.

Num trabalho que data do início dos anos 90, Umberto Eco, decidiu movimentar o debate da crítica literária chamando a atenção para as possíveis interpretações que um texto publicado poderia ter, e até que ponto existiria, para uma obra autoral, uma leitura que pudesse ser considerada ?verdadeira?. Destacou também que a intenção do autor perdia totalmente o sentido depois que um texto se transferia das mãos do autor para as mãos do leitor.

É claro que a discussão de Eco tem como foco a literatura nos seus gêneros formais, mas eu vou ter a petulância de tomar emprestado o raciocínio do semiólogo para tratar de uma questão jornalística por excelência.

O caso

Na segunda-feira passada, 21, O Povo publicou uma entrevista com a adolescente de iniciais P.A.T. O repórter conta que a menina ia indicar o caminho da casa de uma amiga que havia sido vítima de abuso sexual por parte do frei Tomaz. Durante a carona ela decidiu contar a sua experiência. A conversa entre a garota e o repórter foi publicada no Jornal na íntegra.

Logo na segunda-feira, no comentário interno, afirmei que a entrevista era de um mau gosto intenso. Disse também que se O Povo queria mostrar a ignorância, a pobreza extrema, a falta de educação e informação da menina poderia muito bem ter feito isso num texto bem escrito com uma boa narrativa, contextualizada e ambientada no cenário precário em que as meninas do bairro Jericó, em Acaraú, vivem.

A repercussão

Na terça e quarta-feira recebi alguns e-mails criticando a publicação da entrevista. A maior repercussão se deu por conta do Núcleo de Ação e Valorização da Espécie Humana (Nave), que juntamente com outras entidades ligadas ao movimento de mulheres criticaram não só a entrevista, mas reivindicaram que se tornasse ?proibida a veiculação pela imprensa falada, escrita e televisada, de qualquer entrevista com elas (as meninas molestadas) contando os detalhes do abuso sexual acontecido em Santana do Acaraú?.

A intenção

Depois de publicada a entrevista, a intenção do repórter e da Redação deixaram de ser a coisa principal e começou a valer a interpretação do leitor. É assim que acontece na literatura e é assim que acontece, tudo indica, no jornalismo. Cabe ao leitor fazer o juízo de valor sobre o que ele lê.

Não considero legítima a idéia de deixar de publicar informações sobre o estado dessas meninas e até mesmo a experiência delas. O que não concordei ? e vou continuar não concordando ? foi com o formato da exposição íntima que a menina P.A.T. teve no O Povo. Pareceu-me chula, desproposital, não agregava valor à informação, que era a violência moral a que a menina foi submetida. Insisto que a informação poderia ter sido embalada de forma muito melhor. Isso está longe de ser omissão ou maquiagem da informação.

Da interpretação

Não tenho indisposição nenhuma diante da realidade. No Ceará, vivemos numa pobreza que agride. Estamos todos nós sendo violentados na nossa dignidade diante de opções políticas governamentais que têm tido como principais conseqüências o aumento e a atração da violência, a exploração da prostituição infantil, a manutenção e até o crescimento dos índices de pobreza. Nesse ambiente é difícil fechar os olhos para a sordidez de um frei. No entanto, O Povo não tem o direito de tornar essa realidade mais medonha principalmente quando se trata de crianças e adolescentes."