Wednesday, 17 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Regina Ribeiro

O POVO

"?Lulalau?. ?Que jornalismo é esse??", copyright O Povo, 10/11/02

"?A palavra lançada não pode voltar atrás.? Horácio, escritor romano do ano I a.C.

A primeira parte do título deste texto se refere à titulação dada a uma nota publicada pela Coluna Vertical no dia 30 passado. A segunda, um questionamento feito por uma leitora, através de uma mensagem por e-mail.

A informação que gerou as críticas e que foi intitulada ?Lulalau? dizia textualmente o seguinte: ?Democracia não rima com vandalismo ou coisa parecida. A Prefeitura contabiliza bancos quebrados, jardins prejudicados, pedras da fonte luminosa arrancadas e roubo de tampas de quadros de medição e relés da Praça do Ferreira. Efeito de comício ali realizados?.

Uma dos primeiros leitores a ligar para comentar a informação, observou que o conteúdo da nota não estava de acordo com o título. Este, segundo ele, passava a idéia de que o ?então candidato Lula, do PT, havia sido o responsável por toda sorte de ‘vandalismo’ ocorrido na Praça do Ferreira, por ocasião de comícios de campanha. ?A notícia sequer diz o que realmente aconteceu e o título tem uma carga pejorativa imensa?, conclui. Uma leitora afirmou que o título foi ?infeliz?. E argumenta: ?A nota dá margem a mil impressões. Liga o Lula ao que aconteceu na praça. Quem disse ao jornalista que estava tudo perfeito quando houve a concentração? Não foi o Lula que quebrou nada lá?, sentencia.

Uma outra leitora questiona diretamente a prática jornalística utilizada na informação em debate. ?Que jornalismo é esse?. O que é que o jornal quer informar?’. E persiste: ?Por que a notícia foi intitulada Lulalau? Por que associar Lalau a Lula? Em que o presidente democraticamente eleito tem a ver com a notícia? Qual a relação que, de fato, existe entre a notícia, Lula e Lalau?’ Em seguida a leitora vai à questão central da crítica: ?Lalau é sinônimo de ladrão, corrupto, que rouba o dinheiro público desavergonhadamente confiante na impunidade. (…) O que é mesmo que O Povo quer com esse neologismo? Em nome do rigor semântico e do meu direito de ser informada, reivindico a devida tradução?.

O poder do detalhe

Nessa nota, uma notícia de nove linhas, o que chamou mais a atenção dos leitores foi exatamente o título. Já chegamos a conversar sobre isso, e para mim não custa repetir. No jornalismo, nada é acessório. Tudo, na verdade, engravida de sentido depois de publicado. Tudo tem uma ordenação que orienta a leitura e depois que o jornal acomoda-se nas mãos dos leitores, a intenção do jornalista, seja o repórter ou o editor não acompanha o produto. Permanece na Redação.

A nota ?Pingo nos is?, publicada ontem pela Coluna Vertical, embora um tanto atrasada, deixa isso claro. O redator da coluna informa aos leitores que ?em nenhum momento houve intenção? de fazer qualquer ligação entre o presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva com o ex-juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto. O ex-juiz ?Lalau?, como ficou conhecido no País, está envolvido diretamente nas acusações de desvio de R$ 169 milhões dos cofres públicos, que deveriam ser empregados na construção da nova sede do Fórum Trabalhista de São Paulo.

Um exercício simples de comparação entre o ex-juiz Nicolau Neto (o Lalau ) com o ocorrido nas ?supostas depredações? da Praça do Ferreira, e o leitor perceberá que, nem de longe, é possível aproximar os fatos. Um abismo intransponível se faz quando o personagem fica diante do presidente eleito, Lula.

Será que o jornalista e O Povo, responsável pela coluna, não sabem disso? Sabem. E o erro desse título foi exatamente fazer essa ligação semântica de nomes sem atentar para o significado real do novo termo que estava sendo formado.

Além do título, a nota publicada tem ainda algumas informações faltantes que, da mesma forma, foram observadas pelos leitores do O Povo. Quantos bancos quebradas a Prefeitura contabilizou? De qual comício a nota se refere? Como saber que tudo estava em perfeita ordem? Como é feita a manutenção da praça?

É importante perceber que numa nota de coluna não é possível dissecar tal quantidade de informações, mas se não há espaço suficiente para dar a informação minimamente completa é importante reavaliá-la.

Leitores atentos

Aparentemente esse fato parece simples se colocado dentro de um contexto maior. No dia 30 passado, o Brasil ainda estava sob o impacto da eleição do novo presidente eleito. A manchete do O Povo daquela quarta-feira dizia: ?Lula quer iniciar Governo com mais dinheiro? e mostrava, numa ampla foto, o presidente eleito do PT, com o sorriso de sempre, abraçado ao presidente Fernando Henrique Cardoso. Das seis páginas de Política do jornal, quatro foram destinadas à política nacional. Dessas, três estavam diretamente voltadas para o novo presidente eleito, suas primeiras articulações para a transição, os primeiros passos para tentar mudar o Orçamento de 2003 a fim de ajustá-lo às novas metas de governo, e até para uma nova data de posse foi dada destaque na edição daquele dia.

E o que essa conversa toda quer dizer mesmo? Quer dizer que os leitores percebem e criticam o que eles consideram importante ou um ?desvio? por parte do jornal do qual são assinantes. E aí não precisa ser a manchete do jornal. Pode ser uma nota, com um título que passa a receber mais atenção do que uma edição inteira. É dessa forma que se comportam leitor e leitora. Eles têm uma expectativa do jornal, eles têm uma imagem do produto enquanto veículo de informação e divulgação de idéias, e o estranhamento se dá quando algo fere esses pressupostos.

Não é à toa que uma das leitoras tenha afirmado: ?não dá para entender por que O Povo deixa passar uma nota dessas?. E, aqui permita-me levá-lo, leitor, à frase que abre esta coluna. ?A palavra lançada não pode voltar atrás?, do escritor latino, Horário, que viveu no primeiro século a.C, em Roma, e foi um dos responsáveis pela orienta&ccccedil;ão e crítica dos novos escritores romanos da sua época. Na verdade, a orientação ?horaciana? valia para os textos que seriam lidos em voz alta, porque era assim que funcionava a leitura naquela época. Mas a perenidade desse método pode ser observado até nos dias atuais, quando a leitura é silenciosa, particular. E o jornal é um dos principais veículos de transmissão das palavras, transformadas em informação, análise e crítica."