Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Regina Ribeiro

O POVO

"Leitor e direito à informação", copyright O Povo, 24/11/02

"Desde o início de novembro, o Brasil inteiro acompanha o desenrolar dos fatos em volta do rapto e reencontro de um menino de 16 anos com os pais biológicos. No último domingo, 10, a TV explorou o reencontro que parecia uma história triste com final feliz. A realidade, porém, é dinâmica. O bebê Pedrinho, sumido do Hospital Santa Lúcia, de Brasília, praticamente dos braços da mãe, Maria Auxiliadora Pinto, se transformara em Osvaldo Júnior, 16, com residência em Goiânia. A mãe de criação chama-se Vilma e a Polícia confirma que ela o raptou. O pai de criação morreu há pouco e ao que tudo indica, nunca soube de história nenhuma. O pai biológico, o advogado Jayro Tapajós Pinto quer o filho de volta, ao mesmo tempo quer dar liberdade a ele para escolher, e reclama da exposição pública do menino.

É uma história curiosa? Sim. Desperta o interesse de qualquer pessoa? Certamente. Deve estar na imprensa para satisfazer o público, que por sua vez, tem direito à informação? A resposta tende a ser positiva tanto por parte da imprensa, quanto dos leitores.

No entanto nada é tão simples quanto parece. Até onde vai o limite do interesse público pela vida privada dos outros? O questionamento aqui feito não está ligado a aqueles que desempenham função pública: políticos e administradores ou representantes do poder público, cujas ações estejam diretamente voltadas às suas funções; ou artistas cuja exposição está intrinsecamente ligada ao trabalho que executam.

O debate pretende se desenrolar tendo como alvo pessoas comuns, que de uma hora para outra se vêem no centro do interesse coletivo nacional; envolvidas na desgastante (e quase impossível) tarefa de se esconder de repórteres e fotógrafos. E se essa pessoa for apenas um garoto de 16 anos que já desconhece pai e mãe e que vê a vida destrinchada diante de jornais, TVs e revistas?

Sensibilidade e discussão

Nós brasileiros somos muito sensíveis a qualquer tentativa de limitar informação pública. A memória histórica de períodos em que a censura impedia a liberdade de imprensa remonta à época do descobrimento – para citar o berço no Brasil – até mais recentemente aos anos ditatoriais de 60 e 70 do século 20. No entanto, um bom debate sobre o papel real da imprensa nos casos em que o cidadão comum é alvo do interesse público não seria desperdício de tempo.

Nesse caso do Pedrinho/Osvaldo, parece que ninguém lembra que ele é só um adolescente de 16 anos, no meio de um drama familiar/ético que envolve a própria mãe (de criação). De um momento para outro, a vida do menino virou um pandemônio.

Não estou aqui pregando uma legislação no sentido expresso de coibir a publicação da informação, e sim de se iniciar um processo de reeducação que envolva a mídia e a sociedade. É preciso se discutir até que ponto a vida privada das pessoas pode se transformar num show público com fins explicitamente comerciais. Uma das exigências dos produtos culturais é o atendimento ao mercado consumidor. O produto ?notícia? é dotado de uma efemeridade própria que exige a sua substituição praticamente de forma imediata. Mas é preciso observar os princípios éticos que devem governar as atividades de qualquer veículo no tratamento com a vida das pessoas que se tornam notícia.

Não sou ingênua a ponto de imaginar que todos os veículos de comunicação, no Brasil, vão definir, de forma simultânea, limites no tratamento das informações que avançam de forma estúpida sobre o direito à privacidade que todas as pessoas dispõem; ou mesmo que eles poderão disciplinar o excesso da exposição midiática de algumas pessoas, como é o caso do garoto raptado Pedrinho.

No entanto, estou certa de que algumas iniciativas já mostram que é possível tratar do assunto e levá-lo adiante por meio do diálogo e do incentivo à ética na informação.

Uma dessas iniciativas é o trabalho realizado pela Agência Nacional dos Direitos da Infância (Andi), que mobiliza profissionais de imprensa de todo o País e incentiva o tratamento ético de matérias envolvendo crianças e adolescentes. Este ano, a Andi e o Instituto WCF lançaram o Concurso Tim Lopes para Projetos de Investigação Jornalística e decidiu apoiar ?financeira e tecnicamente pautas inovadoras sobre o tema Abuso e Exploração Sexual de Crianças?.

O Instituto Ayrton Senna também premia a imprensa ética e responsável no tratamento das informações envolvendo crianças e adolescentes, tendo O Povo recebido prêmio nacional do Instituto.

Ética e proteção às vítimas

Existem também algumas decisões editoriais que são valiosas no tratamento de informações com pessoas que são vítimas de algum tipo de violência e que podem ser tomadas pelos veículos de comunicação.

O Povo está dando exemplo nesse caso ao cumprir com rigor a lei que protege crianças e adolescentes, e ir além destes. De acordo com a chefia da Redação, a decisão do O Povo ?é não expor, de nenhuma forma, criança ou adolescente em situação de constrangimento. Isso é fechado. Se acontecer o contrário, é falha e o editor está sujeito à punição?. O grupo de editores que comanda a Redação explica que o tema já foi alvo de discussão interna com todos editores. O entendimento é que o Estatuto da Criança e do Adolescente é claro e disciplina o tema. Quanto a outros episódios a decisão envolve ?uma avaliação caso a caso? e ?a tendência hoje é realmente proteger as pessoas?, reforça a Chefia. Se a informação tratar de acusados de algum crime, a orientação é que seus nomes sejam protegidos – com a publicação apenas das iniciais – até pelo menos a conclusão do inquérito.

Na última quarta-feira, o jornal publicou apenas as iniciais de pessoas envolvidas na prática de aborto, apesar de todos os indícios flagrantes pelos policiais da Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente. A não exposição dos nomes das pessoas não impediu que o leitor fosse devidamente informado. Nesse caso, a editora que estava acompanhando a apuração da matéria optou por não publicar os nomes porque o caso teve uma apuração demorada e não permitiu uma conversa entre ela e a chefia. O flagrante aconteceu à noite. ?Esse foi o critério. A gente tem um consenso: na dúvida, coloca as iniciais?, afirma a Redação.

A decisão do O Povo inclui também pessoas adultas vítimas de violência sexual. Seus nomes e os de seus familiares serão preservados. ?Nesse caso é decisão do jornal não expor a mais um constrangimento uma vítima de violência sexual. A lei é omissa, mas nós só damos as iniciais. Se escapar, também é erro?, informa a Chefia.

É louvável por parte do jornal essa disposição de preservar a imagem das pessoas que, vítimas de violência, podem sofrer dupla violação de sua dignidade. E dia-a-dia cresce o exército de violentados no País, seja pela doença social da violência, que todos podemos ser vítimas, seja, infelizmente, pela própria mídia."