Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Renato Janine

UNIVERSIDADE ENCLAUSURADA

"?As universidades estão fechadas em si mesmas?", copyright Jornal do Brasil, 5/07/03

"O cineasta italiano Federico Fellini quase não assistia a filmes. Sua inspiração lhe surgia a partir de outras fontes: os livros e o mundo imediato. Para o professor titular de Ética e Filosofia Política da USP, Renato Janine Ribeiro, a metáfora é o inverso do que acontece no mundo acadêmico, onde professores e pesquisadores estariam ?vendo filmes demais?, ou seja, excessivamente concentrados em suas respectivas áreas, sem perceber o que acontece ao redor.

– A geometria no século 17 e a antropologia no século 20 tiveram papel decisivo ao inspirarem outras ciências. A abertura para o que está fora é importante, para que a pesquisa seja criativa – disse o autor em entrevista ao JB. A idéia faz parte de um dos vários artigos reunidos em A universidade e a vida atual (Campus, 216 páginas, R$ 44,90), livro que traz uma série de reflexões sobre o tema e propõe um novo olhar sobre graduação, pós-graduação, projetos de extensão, trabalhos científicos e o próprio saber acadêmico. Janine, que é também autor de A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (Companhia das Letras, Prêmio Jabuti de 2000), entre outros, montou, recentemente, um projeto para um curso experimental em Humanidades na USP. Sua idéia de universidade é bem mais ampla do que um espaço marcado pelo peso da burocracia e dos jargões. Para ele, a universidade deve ser um espaço de formação humana, o que as empresas – e o mercado em geral – jamais conseguiriam fazer sozinhos.

– O mercado muda muito depressa. Formar é dar a cada um profundidade interior que o capacite a enfrentar os desastres futuros, que podem acontecer tanto no campo profissional, com o desemprego, quanto no campo pessoal, com separações e perdas – explica. Por isso, Janine acredita que as universidades devam preparar melhor os indivíduos antes de incentivá-los à corrida por um lugar ao sol no mercado de trabalho. A frase ?Fellini não via filmes? é usada em seu livro como uma metáfora para ilustrar o que deveria acontecer no mundo acadêmico. O que você quer dizer com isso?

– Trinta anos atrás, Fellini disse que se inspirava, para seus filmes, no que lia – e não no que via. Mas hoje os cineastas vêem filmes demais. Eles dão importância demais a imagens já produzidas. Essa é uma boa metáfora para o mundo acadêmico. Não adianta criar se os pesquisadores se concentrarem demais no seu próprio setor. A geometria no século 17 e a antropologia no século 20 tiveram papel decisivo ao inspirarem outras ciências. A abertura para o que está fora é importante para que a pesquisa seja criativa.

– A universidade está mais voltada para o mercado profissional – há uma ansiedade crescente por parte dos estudantes quando vai chegando o fim do curso. Como é possível reverter este processo (o de se? clonar? ou ?duplicar? o mercado, como você escreve) em uma sociedade cada vez mais competitiva?

– Não adianta querer preparar para o mercado de trabalho. Ele muda depressa. Um jornal treina seus jornalistas em meses. Uma faculdade deve fazer o que a empresa nunca fará: formar as pessoas. Treinamento é com a empresa, formação é conosco. Formar é dar a cada um profundidade interior que o capacite a enfrentar os desastres futuros, tanto no campo profissional, com o desemprego, quanto no campo pessoal, com separações e perdas.

– O que mais o incomoda no modelo atual de universidade brasileira?

– Nossa universidade criou uma relação errada com o que está fora dela. Cada área do conhecimento é incitada a fechar-se sobre si mesma. A sociedade, fora do campus, é reduzida ao mercado, que é só uma parte das relações sociais. Há também os movimentos sociais e as relações humanas mais difusas, não institucionais. Proponho que o melhor do mundo acadêmico, que é a pesquisa, e o que é menos valorizado nas boas universidades, a extensão, tenham muito a aprender perguntando o que está fora do ângulo imediato de visão.

– A pesquisa ainda permanece reclusa dentro dos muros das universidades. Como fazer para que a atividade científica chegue mais perto da sociedade e para que o professor universitário não seja um profissional inacessível?

– A extensão – a transferência do conhecimento universitário para a sociedade – é a prima pobre da universidade. A cultura geralmente é associada a ela. As universidades priorizam a graduação e, se forem boas, a pesquisa e a pós-graduação. Mas não podemos pensar na extensão como diluição para uso externo do que fazemos de bom. Devemos falar para um enorme público que quer um saber científico, não como mera divulgação, mas para melhorar sua capacidade de escolha.

– Universidade cidadã: há bons exemplos do funcionamento deste modelo nos EUA e na Europa? Como é possível uma idéia como esta ser amplamente colocada em prática num país de excluídos como o Brasil?

– Não há como dar cursos na universidade a todos os brasileiros, mas podemos fazer com que ela sirva a todos. Uma universidade não é só a graduação, mas o resultado dela e da pesquisa. Se formarmos profissionais cônscios de sua responsabilidade social (o que hoje não é o caso), se nos cursos de direito dermos tanta importância aos direitos humanos quanto ao direito tributário e comercial, começaremos a cumprir esse papel. Não acabaremos com a exclusão integrando todos os brasileiros aos cursos universitários. A prioridade é mexer nos currículos para que atendam a duas metas diferentes, mas não contraditórias: serem criativos e socialmente responsáveis.

– Os professores universitários, de maneira geral, estão muito presos a seus jargões. Expressar-se de forma pouco inteligível virou sinônimo de sofisticação intelectual?

– Quanto mais imaturo o pesquisador, mais é tentado a igualar profundidade e obscuridade. O pesquisador maduro se liberta disso só porque já fez suas provas e perdeu o medo dos colegas. Mas nem toda profundidade é obscura, nem toda clareza é inteligente. Devemos nos perguntar, nós pesquisadores, o que em nossas áreas é rico para a sociedade. Os sociólogos desmontam muitos mitos reacionários sobre a segurança pública. Os médicos dão boas recomendações de saúde. A filosofia é chamada com freqüência a falar nos jornais. São exemplos bem-sucedidos.

– O Primeiro Mundo, como você escreve, é o modelo daquilo que funciona. Mas lá se vive uma realidade muito diferente da brasileira e nem todos os aspectos positivos podem ser incorporados aqui.

– Quando montei o projeto do curso de Humanidades para a USP (que saiu em livro pela Edusp: Humanidades, um novo curso na USP), que ainda não foi implantado, perguntaram: em que modelos estrangeiros você se inspirou? Nenhum. O que admiro no Primeiro Mundo, a começar pela França, é uma educação que forma todos para um conhecimento básico, mas aprofundado, do patrimônio cultural da humanidade. Entendo a cultura como experiência: tenho uma experiência cultural quando saio de um concerto diferente da de como entrei. Mudo um pouco minha identidade. O melhor das artes e da literatura é permitirem essa mudança, essa formação, que ampliam nossa liberdade de escolher.

– Como você escreve no capítulo ?Reféns e seqüestros?, são raros os cursos essencialmente de literatura. No que a literatura pode influenciar na criação de uma universidade mais humanitária?

– Para ler Dostoiévski, você não precisa saber russo. Perderá algo, porém perderemos mais se só ler Dostoiévski quem souber russo. Mas costumamos exigir, para que alguém estude um romancista, que conheça sua língua. Isso também acontece na filosofia. O que proponho é que soltemos esses reféns, ou seja, as grandes obras, daquilo que as seqüestra de um enorme público culto que teria muito a aprender com elas. Mesmo que não adotem como profissão a filosofia ou o russo, muitos serão marcados pelo melhor deles."

 

O CALDEIRÃO DAS BRUXAS

"Fragmentos de uma visão sobre a ditadura", copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 3/07/03

"A vida de um jornalista inspirado pelas idéias de Marx e Lenin, e simpático aos ideais de Trotsky, é retratada de formas distintas nessa obra. E por ele próprio. Em textos seus, reunidos.

O Caldeirão das Bruxas, primeira parte do livro, é um romance sobre um rapaz (Paulo) que acaba envolvendo seus hospedeiros (uma senhora italiana viúva e seu filho operário) com a Polícia Especial, no final dos anos 30, após a insurreição de 1935 (governo de Getúlio Vargas) – os colaboradores da obra têm certeza de que a história é sobre o próprio Saccheta.

Mesclando fatos e nomes reais com supostamente fictícios, Saccheta intercala os capítulos (nove ao todo, nesse romance inacabado) contando a história de Paulo e da família com que vivia.

As situações com os outros membros do Partido Comunista Brasileiro (do qual Saccheta fez parte) demonstram a pressão que um militante que não aceitava muito as idéias da cúpula sofria. Era constantemente chamado de trotskista, no sentido pejorativo.

Ao mesmo tempo, questões morais são colocadas em evidência. O personagem não aceita o sofrimento dos hospedeiros, causado por seus ideais. Mas vê a necessidade de fugir. E de esconder-se. Deixa a viúva e seu filho à mercê dos policiais que o procuravam. O rapaz acaba sendo torturado para dar informações sobre seu paradeiro.

O personagem de Saccheta sofre permanentemente o conflito entre o partido e as emoções. Suas e de seus entes queridos. Questiona, inclusive, o porquê de muitos de seus camaradas terem-se tornado comunistas, já que estes não demonstram tanta afinidade com as teorias em que o partido se baseia.

O fim é um só: a Revolução. Um problema, porém, é a dificuldade em aplicar as regras de Moscou no Brasil. Certos camaradas de Paulo acham que nada funciona no Brasil. Histórias diferentes, povos diferentes, culturas diferentes. Estes seriam os maiores empecilhos. Mesmo assim, para Paulo (ou Saccheta), o comunismo teria vez no país (mais adiante, na coletânea de editoriais publicados pelo jornalista em impressos do PCB, percebe-se sua forte inclinação à formação de uma frente-única proletária para instalar a revolução no Brasil).

O capítulo 8, como um aparte do romance, retrata o pensamento da burguesia, preocupada com suas empresas e com a eleição para rainha do Carnaval de 1936. O comunismo, para estes, poderia ser contido com a instalação da legislação trabalhista, tornando dóceis os trabalhadores.

Em sua Carta Aberta a Todos os Membros do Partido, texto que parece, ao mesmo tempo, fazer parte do romance e ser uma manifestação do jornalista contra as críticas que recebia nas reuniões do PCB, Paulo (ou novamente Saccheta) desabafa, criticando a política da ?guerra das guerrilhas? da linha de Bangu, ao norte do país.

Surge, então, a crise no partido. Em 1937, Paulo/Saccheta chega a chamar o ?banguzismo? de ?adaptação passiva ao fascismo, o reboquismo de toda ação política prática e, no terreno ?teórico?, a negação de tudo o que os mestres do socialismo científico escreveram até aqui? (p. 66). O que ele pretendia era a discussão política. O argumento. E não a guerrilha pela guerrilha.

Jacob Gorender elaborou um epílogo à revelia do autor, presente na obra, publicado no livro Combate nas Trevas: A Esquerda Brasileira das Ilusões Perdidas à Luta Armada (São Paulo : Ática, 1989).

Começa então outro momento do livro, com textos do jornalista. O primeiro – Jorge Amado e os Porões da Decência (publicado em 1954) – é uma resposta a Os Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado, obra na qual Saccheta é claramente retratado com o nome de Sachila, bem como outros membros do partido e algumas figuras políticas da época têm seus nomes apenas ?parodiados?. Características e situações foram mantidas inalteradas. E Saccheta defende, irritado, o socialismo científico criticado por Amado.

Na segunda parte de O Caldeirão das Bruxas e Outros Escritos Políticos, intitulada ?Outros Caminhos na Esquerda Brasileira?, depoimento de Florestan Fernandes e testemunho de Michael Löwy delineiam o homem que Hermínio Saccheta era. E como agia e pensava. E o que representara para o comunismo brasileiro nas décadas de 30, 40, 50 e 60.

A obra apresenta uma aula de Saccheta sobre ?Trotskismo?, proferida em 1946 no curso de Doutrinas Políticas da Universidade Popular Presidente Roosevelt. Lendo o texto, é virtualmente possível assistir à aula, tal a convicção do professor e a riqueza de sua fala. Aula sobre Marx & Engels, Lenin, Trotski, Stalin (hoje, mais de 40 anos depois, o texto é de uma atualidade impressionante, face aos problemas que o país ainda apresenta). As citações dos mestres do socialismo forçam à análise da atual situação brasileira.

Inflação, influência do mercado externo, imperialismo e muitos outros problemas ainda discutidos no país pela esquerda brasileira foram a tônica dos escritos de Saccheta dos anos 50 aos 60. Sempre com as teorias de Marx & Engels, Lenin e Trotsky como pano de fundo para seus argumentos.

Fornecendo dados significativos sobre a miséria no Brasil, o jornalista publicou Frente-Única Burguesa e Golpe Bonapartista, editorial da Ação Socialista, órgão da Liga Socialista Independente (dezembro de 1958).

O desenvolvimento regional desigual do país aparece em Nem Lott, nem Jânio: Por uma Política de Classe, editorial da Ação Socialista de julho de 1959 (no texto, as palavras de Saccheta chegam à agressividade).

Projeto de Programa do MCI (Movimento Comunista Internacionalista) prega as teorias de Marx.

É a partir de Primeiro Passo: Frente-Única Proletária, editorial do Bandeira Vermelha, órgão central do MCI (janeiro de 1967), que Saccheta insiste em sua proposta de uma frente-única do proletariado capaz de vencer a ditadura. Fazendo um retrato do Brasil como pasto e campo de colheita para os países desenvolvidos, o jornalista questiona a ação da esquerda brasileira.

Frente-Única: Ações de Massas contra a nova ?Lei Monstro?, editorial do Bandeira Vermelha (fevereiro de 1967), reflete sobre a necessidade de a população mobilizar-se contra a Lei de Segurança Nacional decretada por Castelo Branco. Nesse texto e em Liberalismo Econômico: Nova Máscara de Capitalismo de Estado (publicado no mesmo órgão também em fevereiro de 1967), Saccheta fala sobre privatização, liberalismo econômico, prevendo já a ?venda? do país aos investidores estrangeiros e à ?burguesia?.

Em abril de 1967, também no Bandeira Vermelha, publicou o editorial Comissões de Empresa e Oposições Sindicais como Tarefas Imediatas, ?dando nome aos bois? causadores da fome e do arrocho no país. Contra isso, em julho do mesmo ano, foi escrito o editorial Frente-Única Proletária: Espinha Dorsal de Ações de Massas (Às Direções dos Partidos e Organizações Revolucionárias), texto em que discute os ?objetivos táticos? e ?estratégicos? da frente (pp. 132 e 133).

1967 foi o ano em que Saccheta mais reforçou a idéia da frente-única proletária. Em agosto, no Bandeira Vermelha, publicou Combinar Combates Democráticos com Ações Socialistas. Em novembro, Resposta Proletária: Frente-Única de Classe. Em 1968, continuou a fazê-lo, com Basta de Confusão: Frente-Única Proletária como Primeiro Passo.

O último texto do jornalista presente na coletânea é Constituinte, Antes do Mais, publicado no jornal Em Tempo, em novembro de 1979, no qual defende a abertura da Assembléia Nacional Constituinte à população brasileira, sem restrições inclusive a analfabetos.

Isto nunca aconteceu.

Hermínio Saccheta faleceu em 28 de outubro de 1982 sem ver seu sonho tornar-se realidade.

Cláudio Abramo e Maurício Tragtenberg, após sua morte, publicaram, respectivamente, Mais um Amigo e Hermínio Saccheta, Uma Perda de Todos em 1? e 2 de novembro de 1982, na Folha de São Paulo (textos presentes na obra), confirmando seus ideais e sua importância para o Brasil não só como jornalista, mas como defensor férreo das idéias comunistas no país.

* O Caldeirão das Bruxas e Outros Escritos Políticos / Hermínio Saccheta – Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1992.

(Jornalista, mestre em Educação e doutoranda em Multimeios na Unicamp.)"