Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Repórter não é herói

CASO TIM LOPES

Martius Zargonis (*)

Em breve ninguém mais se lembrará dele, de sua carreira ou de sua morte estúpida? Repórter não é herói, repórter não é polícia. Tim Lopes morreu porque foi imprudente, porque não planejou sua ousada incursão no baile funk.

Façamos uma reconstituição:

Favela: local onde não há a presença do Estado, onde sobra injustiça e falta oportunidades. Morro do Alemão: região controlada pelo tráfico de entorpecentes, pobre, convulsionada, desassistida, um emaranhado de ruas apertadas onde todos conhecem a todos e qualquer nova cara é facilmente identificada. Não há privacidade nas favelas. Baile funk: opção de entretenimento para os jovens de baixa renda. Bode expiatório no final da década de 90; acusado e condenado pelos arrastões, roubos, seqüestros, tráfico, sexo etc.. A idade média dos freqüentadores gira em torno dos 17 anos.

A pergunta

"O que estaria fazendo um senhor de seus 50 anos, grisalho, rondando entre a gurizada, quem sabe fazendo uma ou outra pergunta?", deve ter sido o que os soldados de Elias Maluco se questionaram enquanto patrulhavam o baile. Tim Lopes se precipitou, talvez não tenha percebido que os morros cariocas vivem há alguns meses um processo delicado de troca de chefias. Diversos chefes de morro foram recentemente presos ou mortos, o que fez com que uma guerra insana tomasse toda a comunidade de traficantes, que está nervosa e paranóica. É pura batalha territorial, não tem nada de idealismo. A direção da TV Globo deveria estar mais bem informada e assim proteger seus empregados.

As ossadas

A morte de Tim Lopes em nada teve a ver com a liberdade de imprensa. Qualquer um que tentasse espionar o campo inimigo teria tido o mesmo fim: jornalista, médico, engenheiro, comentarista de futebol, prostituta ou policial. Como podemos (desgostosamente) acompanhar, diversas ossadas foram encontradas e, com um pouco mais de empenho, serão encontradas muitas mais, pois é assim que o tráfico age: prende, julga e condena. A única novidade é que agora foi um de nós. Por que nenhum jornalista até hoje denunciou verdadeiramente as execuções semanais nas favelas cariocas? Por que não houve uma passeata pelas praias da Zona Sul em favor das vítimas anteriores, daquelas ossadas que agora voltam à luz??

A corporação

Outro fato que me intrigou foram as demonstrações de união da classe jornalística. Este sentimento teve seu clímax na comovente roda de jornalistas, de mãos dadas, ao rezar um pai-nosso na suposta cova de Tim. Pena que a classe também não se una por outras boas causas. Salariais, por exemplo, ou por maior liberdade de expressão, outro exemplo. O certo é que impera o salve-se quem puder. Todos em busca do furo de reportagem, que garante a simpatia do chefe e o contracheque no final do mês. Vale tudo. Veículos minguam, outros fecham as portas. Enquanto isso, estagiários seguem explorados, fazendo o trabalho de profissionais nas redações de todo o país.

O esquema

O tema, que deveria ser tratado com profissionalismo e objetividade, virou uma grande novela mexicana, com lágrimas, luto e declarações passionais. Nada de analisar a questão pelo seu verdadeiro viés: o tráfico só existe pois existe o consumidor e a lei. Se você que está lendo já usou qualquer substância entorpecente, mesmo não tendo comprado (alguém comprou para você), é um cliente de Elias Maluco, seus associados e concorrentes. Outro é a lei, que insiste em classificar estas substâncias sob a marca do crime, e não do terapeuta, do médico, do orientador, da cultura. Não é assim que vamos vencer esta parada. Não é uma questão de polícia, é uma questão social. (cansados de dizer).

E o Estado? Gastar milhares de reais na colocação de bloqueadores de celulares lembra a história daquele pai que toda noite tirava o sofá da sala para que a filha não transasse com o namorado… Melhor seria construir Escolas. Se perderem os celulares, os traficantes passarão bilhetes pelos parentes e advogados. Eles sempre encontrarão uma alternativa. Por serem ilegais, por aparentemente não existirem, são flexíveis, sem raízes, ao contrário de nós. O tráfico só será vencido com uma única solução: a gradual, responsável e controlada legalização destas substâncias. Não confundindo aí, legalização com anarquia ou baderna geral. Quem sabe podemos adotar o mesmo procedimento que mantemos com o tabaco e com o álcool? Seria um começo. A repressão pela força já mostrou, em fracassadas e fracassadas tentativas, que não tem efeito.

Os homens de bem

Fora Thomaz Lima, quem são os homens de bem que o Estado tem o dever de proteger? Quais são as qualidades de um homem de bem: não matar e não roubar? Então, queria que alguém me ajudasse a melhor definir estes seres imunes, vencedores de alguma prova de um Big Brother planetário. O homem de bem pode sonegar imposto (como fazem quase todos os comerciantes (caixa dois! caixa dois!)? E nós que não pedimos a nota fiscal depois de uma compra, e todos os que no fim de cada ano buscam fazer continhas que favoreçam a declaração? Lembrando, são os impostos que alfabetizam as crianças, financiam a pesquisa de novos medicamentos e compram mais carros de polícia.

O homem de bem pode dar dinheiro ao guarda naquela infraçãozinha de trânsito? O homem de bem pode deixar as fezes de seu animal na calçada? O homem de bem pode estacionar seu veículo sobre esta calçada? O homem de bem pode enviar e-mails indesejados? Ops… O homem de bem pode usar software pirata? Ops ops ops. Cidadania, irmãos, cidadania em primeiro lugar. Nosso telhado é de vidro, não é de ozônio! É fundamental uma faxina em nossa postura, uma faxina em nossa cidadania, tão pouco praticada. Sabemos cobrar dos outros, quem sabe podemos agora cobrar um pouco de nós mesmos, pois tudo está interligado.

A vida como ela é

E só para não perder a viagem, podemos falar aqui sobre a distribuição de renda neste país. Tim Lopes morreu dentro de uma das mais de 600 favelas do Rio. Fora os traficantes, as favelas são o lar de milhões de pessoas, comunidades de quase nenhum poder aquisitivo. Lá moram as empregadas domésticas (a quem pagamos não mais que R$ 300 para lavar nossas calcinhas e higienizar nossas privadas), pedreiros (a quem pagamos não muito mais que às empregadas, para construírem nossas piscinas) e biscateiros em geral, camelôs, por exemplo, onde compramos as nossas capas para celulares, por um preço mais em conta, é claro (ignorando o fato de que estamos financiando a pirataria).

Mas nenhum jornal falou sobre nada disso. Todos preferiram cobrar a vingança, a prisão rápida dos suspeitos e sua execução sumária (assim como fizeram com Tim?). Como se isso fosse resolver o problema, como se não existissem outros milhares de Elias Malucos por aí, que de tantos não haveria prisão que bastasse. Outro dia pudemos presenciar Ratinho e Hebe Camargo, ao vivo em cadeia nacional, defendendo justamente esta proposta: olho por olho, dente por dente, assim mesmo: "Tem que matá!" O empresário Abílio Diniz, dono do Grupo Pão de Açúcar, soltou também sua pérola: "Atiramos primeiro e perguntamos depois", aplaudido que foi por uma platéia de empresários de instituições financeiras em São Paulo.

Quem sabe o Sr. Diniz fizesse uma diferença maior persuadindo os seus pares de que é preciso pagar um salário melhor ao povo brasileiro, quem sabe alguém o possa convencer de que a diferença entre o que recebe o presidente de uma empresa e o empregado mais raso no Brasil é 40 ou 50 vezes maior do que na Europa ou nos EUA. É, parece que a morte de Tim Lopes foi mesmo em vão.

(*) Jornalista