Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Retorno lento e controlado

MÍDIA NO IRAQUE

Marinilda Carvalho

A luz está de volta a parte de Bagdá desde segunda-feira, dia 21, quando voltou a operar a termelétrica al-Doura, na periferia da capital, com capacidade para prover eletricidade a 6 milhões de consumidores. Mas as páginas na internet dos jornais iraquianos continuam fora do ar. Afinal, pelo menos 10 pertenciam ou eram controlados diretamente pelo desaparecido Uday Hussein, o temido filho mais velho de Saddam ? como as três emissoras de TV e todas as rádios. Também não funciona o sítio da INA <http://www.uruklink.net/iraqnews/eindex.htm>, a agência de notícias iraquiana. Aliás, o governo iraquiano era o único provedor de internet do país, como informou Verdades e mentiras em Bagdá, documentário sobre a mídia no Iraque apresentado pelo programa Frontline World, da PBS (a TV pública americana), em novembro de 2002 <http://www.pbs.org/frontlineworld/stories/iraq/press.html>.

Críticas a Saddam eram punidas com morte. O Ministério da Informação do Iraque, além disso, é quem nomeava todos os jornalistas do país, que precisavam ser filiados ao Partido Baath, de Saddam Hussein, e ao Sindicato dos Jornalistas, presidido por Uday ? "eleito" com 100% dos votos. Por sinal, em abril de 2000 Uday também foi "eleito" Jornalista do Século pelo sindicato…

A última edição do Babel, o maior jornal do Iraque, chegou às ruas na manhã de 9 de abril, quando os tanques americanos entraram em Bagdá. Trazia na primeira página editorial dizendo "o grande Iraque vai resistir com firmeza".

Na ausência dos antigos senhores da mídia, a imprensa, aos poucos, volta ao país. Domingo, dia 20, uma multidão se acotovelou para conseguir um exemplar de Caminho do Povo, jornal de oito páginas do Partido Comunista Iraquiano, distribuído de graça em Bagdá. Uma pequena contrariedade para Washington, que vem procurando estimular o retorno da mídia, mas segundo seus critérios de segurança. "Queda de um ditador", dizia a manchete da primeira página, publicada sob o emblema da foice e do martelo, seguida de um artigo criticando os abusos do "reino terrorista e sangrento de Saddam". "O jornal fala de Saddam e como ele prejudicou nosso país", disse Khudair, de 27 anos. "É claro que já sabíamos disso, mas nunca antes o vimos escrito num jornal", cita matéria da Reuters de 20/4.

No dia 15/4, a agência Reuters já anunciara com muita pompa, sob o título "Jornais, não bombas, agora atingem as ruas de Bagdá", que estava de volta o diário Azzaman <http://www.azzaman.com/> (em português, Tempos), com 20 páginas e fotografias. Mas é um jornal editado em Londres, financiado pelos britânicos, criado em 1997 por exilados iraquianos para distribuição no Oriente Médio. Bagdá, Basra e Safwan foram as primeiras cidades a receber o jornal, que é grátis. "Somos o primeiro jornal livre e independente a ser distribuído no Iraque", disse o editor-chefe, Saad al-Bazzaz, que vive fora do Iraque há 10 anos. "Sentimos que o Iraque precisa de valores novos, moderados, para as pessoas neutras, e vamos tentar promover esses valores." O jornal, informou ele, evita o fundamentalismo nacionalista e temas islâmicos, destacando pontos de vista liberais.

Bazzaz garantiu que não há interferência dos ingleses no conteúdo. Mas a repórter da Reuters, Christine Hauser, não segura a ironia. A mídia iraquiana chamava de "corvos negros" os aviões anglo-americanos que bombardeavam o Iraque a partir das zonas de exclusão de vôo; agora, diz a matéria da Reuters, os iraquianos podem ler no Azzaman artigos "em que um major britânico jura que não lhes quer causar dano". Dano em inglês é "harm" ? e a repórter faz um sutil jogo de palavras com o HARM (High-speed Anti-Radiation Missile, ou míssil anti-radiativo de alta velocidade), o míssil ar-terra usado pelos caças F-16.

Luxo inútil

O Azzaman, conta Christine, também publica um resumo do noticiário de jornais israelenses, com uma nota do editor: "As opiniões nestes artigos não expressam as do Azzaman. Nós os publicamos apenas para explorar o pensamento israelense". O conteúdo é otimista, diz a repórter. Uma das edições contém duas fotos de iraquianos acenando para os tanques, duas da estátua de Saddam sendo derrubada, outra de um médico britânico socorrendo um iraquiano ferido pela milícia pró-Saddam, além de crianças sorridentes em Basra. Também havia notícias sobre o casamento do ator australiano Russell Crowe e sobre atrizes egípcias, um quebra-cabeças para descobrir o nome de um porto "na Palestina ocupada" e horóscopo. Muitos iraquianos corriam atrás dos tanques britânicos, cuja tripulação atirava exemplares ao povo, para pegar seu Azzaman. "Precisamos de água e eletricidade, não de jornais", comentou um iraquiano zangado em Basra, ao ver a multidão atrás do jornal.

Mas os iraquianos estão ávidos por notícia, sim, pelo que se depreende de outra matéria da Reuters, de 17 de abril: "Iraquianos correm atrás do fruto proibido: antenas de satélite", de Edmund Blair. Em Bagdá, a loja de Jassem al-Saadi não dá conta dos pedidos de satellite dish, a antena que permite o acesso a canais de TV do mundo inteiro. "Vendi 30 ontem e 100 hoje, talvez venda 500 amanhã", disse, contando seu bolo de notas. O equipamento sai por US$ 300, que poucos no Iraque podem pagar: a maioria ganha US$ 10 por mês, e faz bicos para sustentar a família. "Mas a antena é o prêmio pelo fim da informação e do entretenimento censurados, após 24 anos do regime de ferro de Saddam, e as pessoas não hesitam e gastar suas economias", diz a matéria.

Tempos atrás, ter uma antena parabólica era pecado punido com multa equivalente a US$ 150, e até com seis meses de prisão. Ultimamente, a repressão iraquiana apenas confiscava o equipamento. Agora, para muitos, o disco é um luxo inútil, pois falta eletricidade em muitas áreas. Os mais abastados têm geradores, e alguns se beneficiam dos geradores instalados em prédios públicos de alguns bairros.

Rádios no ar

A população com acesso à energia pode ver uma seleção de canais árabes e ocidentais: CNN, al-Jazira, BBC e até um canal de filmes libanês. Sem contar o novíssimo canal americano Toward Freedom (rumo à liberdade), operado do aeroporto de Bagdá. As tropas dos EUA usam as freqüências da mídia estatal de Saddam para transmitir programas americanos e britânicos. Um avião especialmente equipado, o Commando Solo, voa sobre o Iraque transmitindo TV e rádio.

Há outras rádios no ar. O serviço de monitoramento de sinais de rádio da BBC identificou movimento nas seguintes freqüências:

** Uma rádio em árabe identificada como Iraq Media Network, em 1170 kHz. O Wall Street Journal informou em 16 de abril que os EUA estariam patrocinando uma nova radio AM chamada Voice of the New Iraq (Voz do Novo Iraque), marcando o nascimento de uma Iraq Media Network (rede iraquiana de mídia), que incluiria jornais, rádio e TV, dirigida pelos exilados iraquianos repatriados.

** Uma estação em árabe identificada Radio Voice of the Mujahidin (Rádio Voz dos Mujahidins) foi captada na freqüência 720 kHz em 17 de abril. A programação sugere que a rádio é afiliada ao Conselho Supremo da Revolução Islâmica no Iraque, baseado em Teerã.

** Al-Mustaqbal (O Futuro), rádio do Acordo Nacional Iraquiano, foi captada em 17 de abril em 1575 kHz.

** Voice of the Liberation of Iraq (Voz da Liberação do Iraque), estação que se acredita pertencer a vários grupos de oposição a Saddam, baseados em Suleimaniah, foi monitorada em 18 de abril em 657 kHz, freqüência antigamente usada pelo Serviço Curdo da Rádio República do Iraque.

Armas da informação

George Bush vem dizendo, desde antes da invasão, que seu desejo é ver no Iraque não só um governo, mas também uma imprensa livre. Reza Ladjevardian, no artigo "Mirando no Irã? Use a TV, não os mísseis", publicado na revista americana Counterpunch <http://www.counterpunch.org/>, conta com isso. Ele comenta que os mulás conservadores do Irã torcem para que os EUA persistam na idéia de implantar um regime democrático no Iraque. Primeiro porque deixaria os americanos ocupados e os fariam esquecer de seus próximos objetivos ? o Irã estaria no alto dessa lista.

Segundo porque com democracia é mais fácil trabalhar na "contra-revolução". Ladjevardian tem certeza absoluta de que os mulás iranianos tudo farão para minar uma eventual democracia no Iraque, que levaria à provável queda do próprio regime de Teerã, já abalado pela desilusão com a autocracia de grande parte da população e mesmo do clero reformista. O autor sugere então que os americanos partam para o combate aos mulás. Não o da força, mas o das idéias. "A América deveria usar sua tecnologia e dinheiro para promover uma imprensa livre no Irã, incluindo um canal profissional por satélite em persa."

É uma boa solução, caso com ela concorde o complexo industrial-militar americano. As armas da informação e do entretenimento costumam vitimar apenas governos autoritários. Sem efeitos colaterais e resultados inesperados. O problema é que os ares que atualmente sopram sobre Washington não parecem estimular tal esperança. A experiência no Iraque dirá.