Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Retrato sem retoques de um nazista

PARA NÃO ESQUECER


O depoimento do SS Altmann=Barbie, de Ewaldo Dantas Ferreira, 128 pp., Editora Rio, Rio de Janeiro, 2003; tel. (21) 2503-7302; R$ 25,00


Na quinta-feira, 20/11, às 19h30, o jornalista Ewaldo Dantas Ferreira será homenageado com uma sessão solene na Câmara Municipal de São Paulo (Viaduto Jacareí 100, 8o andar, Centro), por iniciativa do vereador Carlos Giannazi (PT/SP).

Logo após a homenagem, ocorre o lançamento de nova edição do histórico livro O depoimento do SS Altmann=Barbie, uma série de reportagens publicadas em maio de 1973, simultaneamente pelo Jornal da Tarde, O Estado de S.Paulo, France Soir e um pool de jornais internacionais, repercutindo em toda a imprensa mundial por ser o primeiro depoimento do procurado nazista Klaus Barbie Altmann, o “Carrasco de Lyon”, que Ewaldo descobriu e entrevistou na Bolívia. Trata-se de uma reportagem histórica que vai despertar o interesse de jornalistas, historiadores, pesquisadores e estudantes de todos os níveis, especialmente os universitários de Comunicação, História e Letras.

“O jornalismo não seria uma profissão decente no Brasil sem a luta comandada por Ewaldo no final dos anos 50 e início dos 60. Só isto já bastaria para lhe conceder um lugar de honra na história do jornalismo brasileiro e no coração dos jornalistas. Mas, além disso, Ewaldo foi um dos maiores repórteres do Brasil em todos os tempos. Com seu exemplo, sua garra, sua ética, sua competência, sua energia incansável e seu poder agregador, ajudou, como repórter, a formar duas gerações de jornalistas. Agora, como professor, está ajudando a formar outra. Conviver com ele como colega e amigo, e trabalhar tendo-o como chefe foi para mim um privilégio e um constante aprendizado.” (R.A.S.)

 

Há alguns anos, nem tantos anos assim, reportagem e “bico” eram sinônimos: praticamente não havia o repórter profissional, dedicado exclusivamente à profissão. Havia gente que trabalhava em outras profissões e reforçava o orçamento passando noites na redação; havia o repórter que vivia nos gabinetes dos governantes, e, numa associação perfeita, promovia os governantes pelo jornal em troca de um bom emprego público.

Em grande parte, quem mudou tudo isso foi Ewaldo Dantas Ferreira. Ele foi provavelmente o primeiro repórter brasileiro a viver exclusivamente de sua profissão e, dentro dos baixos níveis vigentes, sempre recebeu os mais altos salários pagos pelas empresas. No começo de sua carreira profissional, Ewaldo aceitou cargos de chefia, já que não havia outro jeito de ganhar um pouco mais: foi chefe de reportagem ou redator-chefe nos Diários Associados, TV Tupi, Folhas (era o nome da época, em que a empresa editava a Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite), Organização Vitor Costa (rádio Nacional, rádio Excelsior, TV Paulista, Canal 5). Todo esse tempo lutou pela valorização da carreira de repórter. E, quando conseguiu valorizá-la, voltou à reportagem.

Em 1961, depois de cobrir a Guerra de Suez, a queda de Perón, o desembarque americano no Líbano, de atravessar a terra-de-ninguém entre a Jerusalém jordaniana e a Jerusalém israelense, Ewaldo pela primeira vez em sua vida de jornalista deixou as redações. A ala que tradicionalmente controlava o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo se cindiu, e Ewaldo conseguiu, pela oposição, eleger-se presidente. O Sindicato, até então distante da classe, sem qualquer atuação, mobilizou os jornalistas e acabou organizando uma grande greve, em 1961.

Antes da greve liderada pelo Ewaldo, o jornalismo era um; depois da greve, outro. Foi a primeira vez que se conseguiu, no Brasil, a instituição do salário profissional. Foi nesta greve que o jornalismo se transformou, de verdade, em profissão.

Com Ewaldo, os jornalistas lutaram contra os falsos privilégios que mantinham baixos os salários da classe (como a isenção do imposto de renda, pagamento de meia passagem nas viagens aéreas a serviço, e outras vantagens que não serviam a ninguém ? afinal, com os salários que ganhavam, jornalista estava isento de Imposto de Renda, e a meia passagem aérea, a serviço, só beneficiava a empresa), e venceram: o jornalismo é hoje uma profissão como qualquer outra, sem privilégios ou tratamentos especiais. E, mesmo com salários ainda baixos, tornou-se possível viver exclusivamente do trabalho jornalístico.

A rápida e brilhante carreira de Ewaldo: nasceu em Catanduva, em 9 de fevereiro de 1926. Sua mãe vem de famílias tradicionais, os Dantas e os Ramalho; seu pai, índio legítimo da tribo Maku (Alto Rio Negro, a noroeste de Manaus), foi para o Rio, passou pela Politécnica e fez carreira no Banco do Brasil. De vez em quando, Ewaldo recebe visitas de parentes mais jovens (aliás, sem maldade, hoje em dia quase todos os seus parentes são mais jovens) que vêm para São Paulo e Rio falando línguas indígenas.

Ewaldo estudou no Seminário Jesuíta de Nova Friburgo, e saiu de lá para trabalhar como revisor no jornal A Vanguarda, do Rio. De repente, mudaram a direção e a ideologia do jornal e Ewaldo saiu de lá. Começou a freqüentar o primeiro curso de jornalismo do Brasil, o da Faculdade Nacional de Filosofia. Em seguida, transferiu-se para São Paulo, para a Escola de Jornalismo da Fundação Cásper Libero, e abandonou o curso no ultimo semestre do ultimo ano. De lá para cá, só entrou em faculdades para dar aulas. Nunca se formou.

A carreira verdadeiramente profissional de Ewaldo começou em São Paulo, nos Diários Associados, em 1950. Entrou com o menor salário da redação daí a um ano tinha o maior. Explica-se: para ele, jornalismo não era “bico”, não era reforço de salário, não era um passatempo. Para ele, o jornalismo era a vida. Um dos repórteres mais versáteis da impressa brasileira, foi capaz, por exemplo, de revelar em 1972 os novos rumos de internacionalização econômica do Brasil, um ano depois de comer mutum moqueado com os antropófagos Pacaás-Novos. Foi o primeiro repórter brasileiro de TV, voltou ao jornalismo impresso, esteve no ponto mais avançado da Amazônia até então atingido pelos civilizados, passou quatro dias no Harlem, acompanhado por lideres panteras-negras, numa das explosões raciais dos EUA.

Por varias vezes Ewaldo inovou a reportagem. Lá por 1958, na Folha e no Jornal do Brasil, criou aqui a reportagem abrangente, que aborda os vários aspectos de um assunto, sob diversos títulos. Logo depois, numa campanha de educação de base, promoveu a Operação Ubatuba, a primeira experiência brasileira de mobilização de estudantes, que mais tarde inspiraria o Projeto Rondon.

Ewaldo foi convidado, em 1953, para correspondente da revista Oggi, com apreciável salário. Foi informante (stringer, no jargão jornalístico) do Time e do Life na década de 60. Dirigiu o telejornalismo da Rede Bandeirantes, ganhando os prêmios da APCA, Associação Paulista de Críticos de Arte, em todos os programas, todos os anos.

Em sua carreira no Jornal da Tarde e no O Estado de S.Paulo, onde foram publicadas as reportagens que deram base a este livro, Ewaldo cobriu os mais importantes acontecimentos brasileiros. No dia em que o presidente Costa e Silva ficou doente ? teve o derrame que o inutilizaria e posteriormente o mataria ? ele avisou vários ministros, altos chefes políticos e um general sobre a crise que estava começando. Na segunda-feira seguinte, enquanto todos os jornais se limitavam a algumas linhas de especulações, o Jornal da Tarde publicava toda a história da crise, e o processo de sucessão.

Nos tempos do primeiro presidente militar, o marechal Castello Branco, Ewaldo publicou uma reportagem revelando o sistema de exercício de poder no Brasil (foi a primeira vez que se falou em “segurança nacional” como motivação e ideologia de governo), com gráficos, nomes, endereços. Quando o terceiro presidente militar, general Emílio Médici, viajou aos Estados Unidos, revelou a parte secreta dos entendimentos havidos na Casa Branca, e além disso publicou, com 24 horas de antecedência, a essência do comunicado conjunto brasileiro-americano. Enquanto isso, os cinqüenta jornalistas da comitiva presidencial descreviam o programa oficial e especulavam sobre o que estaria acontecendo. Uma semana depois, Ewaldo estava na Irlanda do Norte, na guerra entre protestantes e católicos.

Para o Jornal da Tarde, Ewaldo cobriu também o lançamento da Apolo-11, que levou o primeiro homem à Lua.

Essa movimentação toda não era novidade para Ewaldo: viu o bombardeio da Casa Rosada, na Argentina, pela frota do almirante Isaac Rojas, na revolta que culminaria com a deposição do ditador Juan Domingo Perón; o general Alfredo Stroessner, recém-chegado à presidência do Paraguai, fez poses especiais para sua Leica. O filho de Mussolini, o ditador que levou a Itália a se aliar aos nazistas, lhe deu uma entrevista exclusiva, que obteve a contracapa da revista italiana Época. Quando trezentos presos armados da Ilha Anchieta se revoltaram, Ewaldo e o fotógrafo Henri Ballot entraram lá, no meio das balas.

Há outras histórias de reportagens, em duas oportunidades, mostrando as condições de vida dos internados no Hospício do Juqueri (a opinião pública se levantou, revoltada). Também esteve nos campos de refugiados palestinos, mostrou o que ocorrera nas Universidades logo após o movimento militar de 1964.

E conseguiu, com exclusividade internacional, entrevistar o criminoso de guerra nazista Klaus Altman, codinome Klaus Barbie, o carrasco da França na Segunda Guerra Mundial, foragido na Bolívia. (C.B.)