Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Riscos de uma apuração capenga

COBERTURA DE POLÍCIA

Adriana Motta (*)

Uma reportagem, antes de ser publicada, deve seguir por uma romaria de aprovações até que seja feita sua manchete pelo "experiente" editor, fechador do caderno ou seja quem for o profissional responsável. Sei o quanto é desgastante a rotina diária de uma redação, ainda mais nos feriados de final de ano, quando a equipe é reduzida e as pessoas que assumem o plantão acumulam várias tarefas. Mas nada justifica uma pauta mal apurada. Tenho amor e respeito pela profissão que escolhi. Trabalhamos com a informação. Lidamos com dados e fontes; a vida das pessoas e a própria sociedade são influenciados pelas matérias que redigimos. Sei que muitas vezes o profissional é mal remunerado, mas isso não justifica um trabalho mal elaborado. Se o jornalista não está satisfeito com a profissão, se para este profissional é desgastante demais a rotina, se o salário é pouco, então por que não mudar?

A profissão exige seriedade e compromisso ético. Checar e checar novamente a veracidade das informações é da mais alta prioridade. As pessoas lêem nos jornais os fatos publicados e os personagens das matérias sofrem as conseqüências pelo que foi redigido. Tome-se o exemplo da Escola Base, cujos personagens tiveram suas imagens maculadas para sempre.

Recentemente, um episódio causou-me perplexidade. Refere-se ao Jornal da Tarde, de São Paulo, que publicou a reportagem abaixo [30/12/01, caderno A, página 6] sem realizar a devida apuração necessária.


Apanhou, foi preso, mas era inocente

José Luiz Iotti, de 20 anos, disse ter sido confundido pelo tenente Henrique Motta Neto com um dos ladrões que tentava roubar o toca-fitas de um carro na Rua Miguel Telles Júnior, na Aclimação. Iotti diz que apanhou do policial e depois foi parar na delegacia, de onde saiu após pagamento de fiança de R$ 400.

Quando ouviu o barulho de estilhaços da janela do carro, José Luiz Iotti Gregório, de 20 anos, pensou em correr. Antes, porém, percebeu que já estava na mira de um revólver. "Não fui eu. O cara saiu correndo por ali", gritou o rapaz para o homem que vinha em sua direção, o 1?. tenente do Corpo de Bombeiros, Henrique Motta Neto.

Acompanhado da cadela vira-lata Lila, que não parava de latir, Gregório tentava convencer que não tinha sido ele quem havia acabado de tentar roubar o aparelho de som do veículo estacionado na rua Miguel Telles Júnior, na Aclimação, zona sul. Mas uma coronhada ao lado do olho direito interrompeu suas argumentações. Prestes a desfalecer, ainda ouviu três tiros e o barulho da cadelinha agonizando. Eram 14h, do dia de Natal.

Duas horas mais tarde, Gregório acordou na maca de um hospital. Lembrou-se de dizer à enfermeira que sua boca e olho estavam doendo, e voltou a desmaiar. Só acordou no 6? Distrito Policial, onde foi acusado de ter sido pego em flagrante tentando roubar o carro da dona-de-cada Ligia Cristina Menezes Pires Correa.

No dia seguinte, o rapaz, que trabalha como manobrista e como entregador de doces, foi transferido para o Centro Provisório de Vila Prudente. De lá, só saiu ontem de manhã depois que seu pai pagou uma fiança de R$ 400.

Em casa, foi recebido pela chefe Solange Santos e pela namorada Ana Carolina da Costa, de 17 anos, que tratou de fazer um curativo no olho, na boca e no nariz, que pode ter sido fraturado. Depois do susto, pôde falar sua versão da história.

Contou que tinha saído de casa, no Cambuci, junto com a cadela para visitar sua mãe, na Aclimação. Ao chegar, foi avisado que não poderia entrar no condomínio, que não permite circulação de animais.

"Como ela era mansinha, nunca andava de guia. Então, resolvi voltar para casa do meu pai", disse. No meio do caminho, que costuma pegar quase diariamente, Gregório encontrou o vizinho Ricardo Moretti, de 19 anos. "Cumprimentei e atravessei a rua. Logo em seguida, ouvi um barulho e vi o Ricardo tentando entrar pela janela do carro para pegar o som". Ao ouvir os gritos dos moradores da rua, Ricardo saiu correndo. Gregório, que estava a 50 metros do veículo, foi acusado de ficar vigiando o amigo enquanto o carro era roubado.

Motta aproximou-se de Gregório e bateu com o cabo da arma em sua testa. Para proteger o dono, Lila avançou na perna do tenente que livrou-se das mordidas atirando contra a cadela. Três horas mais tarde, Ricardo foi encontrado andando pelo bairro, foi pego e confessou a autoria do crime. Ele continua preso no Centro Provisório de Detenção de Vila Prudente.

O JT esteve ontem na casa do tenente mas não o encontrou.


A matéria, que traz a versão oferecida por José Luiz Iotti, não encontra ressonância com o auto de prisão em flagrante lavrado pelo delegado de polícia do 6? DP, do bairro paulistano do Cambuci. Conforme pode ser verificado junto àquela delegacia, Iotti foi detido porque haviam indícios suficientes para tal.

A detenção de Iotti ocorreu quando ele corria junto com o outro indiciado, Ricardo Moretti, que foi visto dentro do veículo. No momento de sua abordagem, Iotti estava com um par de chinelos nas mão, chinelos que possivelmente pertenciam ao outro indiciado, que fugiu descalço (Iotti estava calçado).

Ricardo Moretti, o segundo indiciado, foi detido por cerca de uma hora ? e não três, como consta na reportagem. Ele estava em frente à delegacia observando a movimentação quando foi reconhecido pela vítima e pela testemunhas que se encontravam no local.

Outro equívoco da matéria diz respeito ao fato de o episódio ter sido classificado como roubo, quando na realidade se trata de furto qualificado.

Com relação ao número de disparos, cumpre salientar que houve somente um tiro. Disparo este dado após o tenente Motta ter sofrido vários ataques do animal, que se encontrava sem guia e acompanhando Iotti, conforme pode-se constatar no auto de prisão em flagrante e ou boletim de ocorrência.

Todos os pontos mencionados têm o condão de demonstrar a falta de diligência dos responsáveis pela reportagem, que apesar de não haver encontrado o tenente Motta em sua residência, tinham meios mais que suficientes para confrontar as alegações de Iotti. Ao contrário, preferiram, talvez por inexperiência ou acúmulo de tarefas, publicar uma manchete sensacionalista.

"Apanhou, foi preso, mas era inocente". Ninguém é inocente ou culpado até que o juiz decrete a sentença. No entanto, esta reportagem desabona a imagem do tenente Motta diante da sociedade e da corporação a que pertence.

(*) Jornalista