Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Robert Fisk

GUERRA À VISTA

“Mídia se prepara para o front”, copyright Jornal do Brasil / The Independent, 26/1/03

“Parece uma reprise da Guerra do Golfo de 1991. Jornalistas americanos já estão lutando ferozmente para entrar no pool, para ser ?encaixados? entre os militares americanos, a fim de que possam ver a guerra em primeira mão – e, é claro, ser censurados… Há 11 anos, eles apareceram em Dhahran, na Arábia Saudita, já equipados com capacetes, máscaras contra gases e rações de chocolate. Metade dos repórteres queria usar trajes militares e um jovem repórter de TV do meio-oeste americano apareceu, lembro-me bem, com um par de botas de camuflagem. Cada bota era camuflada com folhas pintadas. Aqueles que já tinham estado no deserto – mesmo os que só tinham visto a foto de um deserto – ficaram imaginando o que significava aquilo.

Bem, na verdade simbolizava fantasia, imaginação, a qualidade em que se baseia agora a maioria dos espectadores quando vêem guerra ?ao vivo? – ou morte ?ao vivo? – na TV. Assim, nas últimas quatro semanas, equipes das cadeias americanas de televisão têm afluído ao Kuwait, para se achegar aos militares, conseguir aquelas posições cobiçadas no pool, provar seus uniformes do Exército ou de fuzileiros navais e se assegurar de que – se ou quando chegar o dia – terão o tipo de cobertura que todo repórter e todo general quer: alguns fatos, boas fotos e nada de sujo que faça espectadores vomitarem na mesa do café da manhã.

Lembro-me de como, em 1991, somente aqueles soldados iraquianos suficientemente amáveis para morrer em poses românticas – braço atirado para trás, para esconder formas em decomposição ou com o rosto anônimo enterrado na areia – apareciam ao vivo. Soldados transformados em pesadelo de crematório ou cujos cadáveres estavam sendo despedaçados por cães selvagens – eu realmente vi uma equipe da ITV filmar esta cena horrenda – não recebiam as honras da tela. O filme da ITV, claro, não podia ser visto – para que não convencesse o mundo inteiro de que ninguém jamais devia ir à guerra novamente.

Os americanos estão realmente usando a palavra ?encaixado?. Repórteres devem ser ?encaixados? em unidades militares. No Comando Central em Tampa, o receio é que Saddam cometa alguma atrocidade – um ataque com gás contra os xiitas, um bombardeio aéreo contra civis iraquianos – e depois ponha a culpa nos americanos. Jornalistas do pool, assim, podem ser enviados imediatamente à cena para provar que os assassinatos foram um trabalho covarde da Besta de Bagdá e não um ?dano colateral? causado pelos bravos jovens que estão tentando destruir o tríplice pilar dos ?eixo do mal?.

A relação de ?camaradagem? já começou. Tropas americanas no Kuwait estão oferecendo cursos sobre guerra química e biológica a repórteres que poderão acompanhar soldados ?no front?, ao lado de ?instrução? sobre a necessidade e de proteger a segurança durante operações militares. A CNN, claro, está apoiando entusiasticamente estes cursos aparentemente inócuos – esquecendo como eles permitiram ?estagiários? do Pentágono freqüentarem suas salas de redação e edição durante a Guerra do Golfo de 1991.

Então, aqui vai uma pequena lista de como se precaver contra mentiras e propaganda em sua tela assim que começar a Segunda Guerra do Golfo. Vocês devem suspeitar de:

Repórteres que usam artigos do uniforme militar americano ou britânico – capacetes, jaquetas de camuflagem.

Repórteres que dizem ?nós?, quando estão se referindo à unidade militar que estão ?encaixados?.

Aqueles que usam as palavras ?dano colateral? em vez de ?civis mortos?.

Aqueles que, respondendo a perguntas, começam com as palavras: ?Bem, realmente, por motivo de segurança militar não posso divulgar…?

Aqueles que, informando a partir do lado iraquiano, insistem em se referir à população iraquiana como ?seu? (isto é, de Saddam) povo.

Jornalistas em Bagdá que se referem ao ?que os americanos descrevem como abusos de Saddam Hussein contra os direitos humanos? – em vez da simples palavra ?tortura?.

Jornalistas que, passando informações dos dois lados, usam a terrível e desagradável expressão ?autoridades dizem?, sem designar, especificamente, quem são estas autoridades.

Fiquem ligados.”

 

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“A estrela, os pampas e o novo imaginário”, copyright Folha de S.Paulo, 26/1/03

“Bandeiras vermelhas agitadas por ?manifestantes? diante de um carro de luxo que tem uma estrela como marca. A campanha do Étoile, da Citröen, carro que custa R$ 42 mil, já se adequou à nova imagem do Brasil, se apropriando do vocabulário e da iconografia da esquerda. ?Enfim a socialização do conforto e da beleza! Tome posse? é o slogan do comercial.

A conversão mágica dos valores aconteceu. Estamos bem distantes dos anos 90, quando um cartão de crédito se apresentava como ?o cartão de quem não precisa?, tendo como símbolo um jovem casal no verão de Paris, tomando champanhe no café da manhã. Passamos do esnobismo ao populismo. Faz realmente diferença?

Além do alvoroço publicitário com os signos da esquerda, estamos assistindo a uma outra conversão mágica dos valores, na geografia televisiva.

Depois de superexpor a zona sul carioca e os Jardins paulistas, palcos privilegiados das novelas, a ficção televisiva foi se estendendo para o Brasil rural dos coronéis em conflito com a plebe rude. Criou uma Bahia cenográfica, chegou aos sertões, passou pelo Pantanal e recentemente descobriu a favela (?Cidade dos Homens?).

Com ?A Casa das Sete Mulheres?, minissérie da Globo, a televisão finalmente chegou aos pampas gaúchos, tirando o Rio Grande do Sul da sua exclusão simbólica. É que Estados, culturas e regiões inteiras vêm sendo lentamente ?anexadas?, via TV, ao imaginário da nação. Curiosamente, a Amazônia, lugar mítico da nacionalidade, rendeu uma única novela (na Manchete, um fracasso) e incontáveis e repetitivos ?Globo Repórter?, que parecem condenados ao fascínio morno do olhar turístico-ecológico.

Os pampas agora entram para a ?estória?. Em ?A Casa das Sete Mulheres?, a Revolução Farroupilha segue o modelo hollywoodiano do cinema histórico e vira pano de fundo para o folhetim, o grande espetáculo visual e a encenação das tradições. A geografia, hipervalorizada num paisagismo de cores e efeitos visuais, concorre com o melodrama. A encenação das tradições rivaliza com a trama novelesca de sempre, histórias de amor impossíveis, frágeis e fortes donzelas que lutam por garanhões de capa e espada.

Definitivamente, a TV concorre com a história, e os autores de TV têm status de novos historiadores, com todas as ambiguidades que vêm daí. Hollywood já fez a conversão há muito tempo, e, desde então, ficou difícil achar que Cleópatra não tinha a cara de Elizabeth Taylor.

Esse nacional-publicitário-brasileiro, mais folclore, mais povo, mais Brasil, já vem sendo capitalizado há algum tempo pela TV. Neonacionalismo que vai aplainando as diversidades e radicalidades regionais: integrando todas as diferenças a essa identidade nacional fossilizada, como vimos na comemoração oficiosa dos 500 anos do Brasil, que tentou, sem sucesso, convencer que as nações indígena e negra tinham o mesmo status da nação branca brasileira.

A TV absorveu e popularizou certo nacionalismo retrógrado, o velho nacional-popular, graças a uma linguagem moderna e eficiente. Um avanço! Muita gente vai dizer. E, sem dúvida, devemos nos orgulhar da nossa TV-Nação, quando ela busca propostas mais autorais.

Mas é preciso desconfiar desse nacional-popular televisivo descoberto pelos publicitários. Neste exato momento, acontece, em Porto Alegre, o Fórum Social Mundial, onde se agitam bandeiras internacionalistas, de todas as cores. A diversidade cultural desloca todos os nacionalismos fundamentalistas e dá novo sentido à identidade nacional.

Quantos anos serão precisos para a TV incorporar esse outro imaginário? [Ivana Bentes, 38, é crítica e pesquisadora de cinema, audiovisual e novas mídias, além de professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ]”