Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Roberto Maciel

O POVO

"A guerra diária", copyright O Povo, 23/3/03

"As agências noticiosas vendem para jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão informações sobre fatos nacionais e internacionais. Boa parte são empresas jornalísticas devidamente estruturadas, com redações e outros departamentos comuns à atividade, mas sem veículos próprios. Algumas, como a France Press e a Reuters, têm clientes ? e público, portanto ? no mundo todo. Em rápidas palavras, é essa relação comercial faz que chegar aqui, por tecnologias várias, notícias sobre política, economia, esportes, segurança pública, moda, cultura, saúde e outros assuntos do Brasil e de outros países. Notícias sobre a guerra, também. É nesse ponto específico que quero colocar o foco desta Coluna. Afinal, não há nada que vincule os princípios editoriais, filosóficos, ideológicos e empresariais das agências de notícias aos de quem paga pelo material que oferecem e o publica.

Em um conflito como o que envolve hoje os Estados Unidos e o Iraque, ganham relevos mais nítidos as convicções das agências. As principais seguem uma ótica que se convencionou chamar de wasp (sigla em inglês para branca, anglo-saxônica e protestante, a base dominante da cultura norte-americana), expandida por toda a nossa civilização ocidental, cristã e capitalista. É natural, ressalte-se, levando em conta, sobretudo, que essas empresas são constituídas de acordo com os conceitos desse meio. Têm, assim, a mesma leitura de mundo que tem um dos pólos do confronto. Do outro lado, sabe-se que é oriental, mulçumano e socialista ? pelo menos é esse o fundamento teórico da economia sob Saddam Hussein. São dois mundos absolutamente diferentes, separados por conceitos e preconceitos, valores, conveniências e crenças. E por uma guerra que desde o nascedouro é questionada.

O enfrentamento de Bush e Saddam não é uma luta do bem absoluto contra o mal absoluto, como pinta o governo dos Estados Unidos e repetem algumas agências. Não é uma correlação maniqueísta, mas um complexo jogo no qual interesses políticos se submetem a estratégias comerciais. À imprensa, assim, está imposta a missão de mostrar quais as regras os jogadores seguem, buscando a isenção máxima e o respeito à diversidade. Não se acusa aqui todas as agências de estarem integradas a um esforço de propaganda de guerra, mas é certo que uma parcela não reflete com precisão a violência de um conflito em que um dos oponentes é o poderoso Tio Sam.

A produção local tem sido uma solução eficiente para se contornar a ditadura das agências de notícias. Já faz alguns anos que O Povo investe em matérias sobre assuntos internacionais feitas por sua Redação. Mais do que isso. Traz semanalmente artigos da professora Luciara Aragão e tem uma coluna, ?Mídia pelo Mundo?, publicada aos domingos. Faz, desse modo, um contraponto à cômoda postura de alguns veículos de simplesmente repassar aos leitores o que compram das agências. E desde a edição de sexta-feira passada ? com algum atraso, admita-se ? o jornal intensificou a produção própria, trazendo naquele dia e no sábado cadernos de excelente qualidade. Pode ser que ainda não esteja aí a fórmula final, pronta e acabada, mas é certo que isso tem significado ganhos para os leitores.

O mal, nosso obstinado parceiro

Sábado passado, a manchete da página 3 do O Povo era um desastre em termos de sensibilidade: ?Último boletim ? Dengue hemorrágica: apenas um novo caso é confirmado?. Mais um caso de dengue hemorrágica não pode ser tratado como apenas. A vida e uma epidemia não podem ser consideradas como apenas. Só a complacência com a negligência política e administrativa explicaria um deslize assim. Ou a forma banal como o mal pode ser encarado. E foi, talvez com igual sentido, que na página 8 de segunda-feira O Povo informou, em uma matéria intitulada ?Acidentes de trânsito ? Seis mortes são registradas?, que ?no Interior do Estado, foi registrada apenas uma morte por atropelamento (…)?. Novamente o apenas. Achamos pouco?

Cordeiro imolado

Completo neste domingo 75 dias como ombudsman do O Povo. Desde 8 de janeiro, quando efetivamente iniciei o mandato, não havia visto uma matéria tão maltratada quanto a que recebeu o título ?Consumo ? Cordeiro amplia espaço no menu dos restaurantes?, na página 26 de domingo último, na Editoria de Economia. Problemas de digitação ? e de revisão, óbvio ? coalharam todo o texto. O leitor deparou-se com ?frequentado? no lugar de ?freqüentado?; ?dever? no lugar de ?deve?; ?exeplica?, em vez de ?explica?; ?mas? em vez de ?mais?; ?asuavidade? no lugar de ?a suavidade?; ?Nesse idade? em vez de ?nessa idade?; ?tam,bém?; ?conhceido?; ?entrarm? em vez de ?entraram?; ?pontencial?; ?mel-hor?. Detalhe: a maioria dos computadores da Redação do O Povo dispõe de um corretor ortográfico que permite a percepção de alguns erros. Outros só são flagrados pelo jornalista com uma leitura apurada.

Os deslizes não terminaram naquela página. A manchete da página 27, que dava continuidade ao assunto, também era temperada por erros. Com o título ?Carne de cordeiro ? Negócio se torna rentável?, a matéria informava que a cidade de Pentecostes fica a 70 quilômetros da capital. Duas falhas em uma só. O nome da cidade é Pentecoste, que dista 55 quilômetros de Fortaleza. A essa somavam-se outras, como ?Cap-ital?; ?sem? no lugar de ?saem?; e ?Tiangu?, em vez de Tianguá. Segunda-feira, O Povo apenas explicou em um Erramos na página 6 que o nome de um empresário da área de restaurantes, citado na matéria, havia sido grafado como erro. Na edição de terça-feira, um dia após o ombudsman observar para a Redação os problemas nos textos, nenhuma explicação ao leitor.

Dois registros da qualidade

Merece registro o reconhecimento da Fundação Ayrton Senna ao notável trabalho dos jornalistas Cristiane Bonfim e Valdélio Muniz na série Saia do Muro, contemplada com o Prêmio Ayrton Senna sexta-feira passada, em São Paulo. Registre-se também o nível do material publicado domingo último pelo caderno Vida & Arte sobre os 50 anos da morte do escritor Graciliano Ramos. Jornalismo puro, com a reverência devida a um dos mais importantes nomes da literatura de língua portuguesa."