Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Roberto Pompeu de Toledo


ELEIÇÕES 2002

"Fortuna e azares do coronel eletrônico", copyright Veja, 18/03/02

"A esta altura, a figura do coronel eletrônico já está solidamente implantada no panorama político nacional. Poucos ignoram o que ?coronel eletrônico? significa: o político que, sendo dono de emissora de TV em seu reduto eleitoral, a usa para a promoção própria e a desgraça do adversário. Trata-se de uma evolução da velha figura do coronel não-eletrônico – aquele que ia no tapa mesmo. O velho coronel é tema de um livro clássico da literatura política brasileira, Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor Nunes Leal. Se fosse escrito hoje, segundo observou a cientista política Lúcia Hipólito no último programa Observatório da Imprensa, levado ao ar pela rede de televisões educativas, esse livro se chamaria Coronelismo, Concessão e Voto – concessão em alusão às concessões de canais de TV.

Levantamento realizado pela jornalista Elvira Lobato, em reportagem publicada pela Folha de S.Paulo em agosto do ano passado, indicava que 59, do total de 250 emissoras de TV comerciais existentes àquela altura no país, estavam em mãos de políticos. Ou seja: um quarto do total. Isso sem contar os milhares de retransmissoras, destinadas apenas a repetir o sinal das geradoras de imagem. O coronelismo eletrônico tem representantes de alta expressão. Dois ex-presidentes da República figuram em suas fileiras: José Sarney (dono da TV Mirante, do Maranhão) e Fernando Collor (TV Gazeta, de Alagoas). Quando se leva em conta que, do regime militar para cá, tivemos um total de quatro presidentes, daí resulta que 50% dos ocupantes do cargo, no período, foram constituídos de políticos que se nutrem eleitoralmente de impérios televisivos.

Da Presidência para baixo, a festa continua. Governadores como Albano Franco (Sergipe), Garibaldi Alves (Rio Grande do Norte), Tasso Jereissati (Ceará) e a filha de Sarney, Roseana (Maranhão), também se inscrevem entre os donos de TVs. Ex-senadores, como Antonio Carlos Magalhães e seu arquiinimigo Jader Barbalho, idem. Tome-se um mapa das concessões de TV, e tem-se um flagrante do atraso brasileiro. Onde a igualdade de condições de acesso aos meios de comunicação, onde o livre fluxo de informações? Mas isso tudo é amplamente sabido, e insistir nessa direção é chover no molhado. O que se quer aqui é chamar a atenção para um efeito menos notado do fenômeno – o momento em que o feitiço vira contra o feiticeiro e o suporte eletrônico, tomado de efeito bumerangue, funciona contra os próprios interesses do coronel-proprietário.

É o que acontece, neste momento, no Maranhão. Por que meio a população local está tomando conhecimento do escândalo que envolve a governadora Roseana? Resposta: pela TV dos Sarney. É o que aconteceu igualmente, no ano passado, na Bahia. Por que meio a população local tomou conhecimento do episódio da violação do painel eletrônico do Senado? Resposta: pela TV de Antonio Carlos Magalhães. O leitor já sabe, mas não custa lembrar que as emissoras espalhadas pelo país integram, como afiliadas, as grandes redes nacionais. Isso significa que só uma pequena parte da programação é de geração própria. O grosso é transmissão em cadeia com a Globo, o SBT, a Bandeirantes ou a Record, redes das quais recebem as novelas, os shows, os programas de auditório – e, claro, os telejornais de alcance nacional. No caso da emissora dos Sarney, assim como no da emissora dos Magalhães, na Bahia, trata-se de afiliadas da Globo. Recebem, portanto, o Jornal Nacional. Eis então que a TV dos Sarney, nestes últimos dias, se viu contemplada com um pacote que ia dos terrenos baldios no lugar onde deveriam estar as fábricas financiadas pela Sudam à famosa foto da dinheirama encontrada na empresa da governadora e seu marido.

São os ossos do ofício de coronel eletrônico. Restam-lhe, e isso não é pouco, os noticiários locais. Neles, ainda se pode expandir à vontade. Quanto aos gerados pela emissora-mãe, só lhe cabe pôr no ar. Já houve, no passado, quem escapasse disso com a desculpa de que faltou luz, mas expedientes semelhantes, hoje em dia, podem resultar em punições decorrentes dos contratos de afiliação. E isso não é tudo, em matéria de potenciais aborrecimentos para o coronel. Ele também tem a obrigaçãatilde;o de produzir para as transmissões em rede, com os próprios repórteres e cinegrafistas de sua emissora, as reportagens locais, quando de interesse nacional. Às vezes, calha de a reportagem em questão versar sobre assunto que ele pagaria para não ver no ar.

A posição ambivalente do coronel eletrônico, todo-poderoso de um lado, vulnerável de outro, caracteriza aquilo que, em bom marxês, seria chamado de contradição insanável. Tal contradição conduz a uma dúvida. Será que o coronelismo eletrônico estendeu a novas alturas o velho mandonismo? Ou, ao contrário, contém em si o germe de sua própria destruição? Dito de outra forma, os coronéis, em sua versão eletrônica, teriam atingido novo auge? Ou, ao contrário, episódios como o que assola o clã Sarney apontariam para o desmanche do coronelismo, vítima de seu próprio veneno?"

 

"A TV faz, a TV desfaz", copyright Folha de S. Paulo, 14/03/02

"A ascensão e queda de Roseana Sarney é episódio para usar como estudo de caso em classes de ciência política, marketing, propaganda e afins ou não tão afins.

Roseana chegou a ser co-líder na pesquisa do Datafolha sem ter aberto a boca, o que é um fenômeno provavelmente inédito. Era uma imagem simpática, bonita, fotogênica, mas apenas uma imagem. Sobre o que faria no governo, nada.

Já é um perigo um país em que pode ocorrer semelhante fenômeno. Em negócios, testar um produto novo faz parte do jogo. Mas esse gênero de experimentação com uma potencial presidente é assustador.

E não existe em parte nenhuma, a não ser recentemente em países latino-americanos. Na Europa Ocidental, o regime é basicamente parlamentarista. Logo, o candidato é sempre o líder do partido.

Se há alguma experimentação, ela se dá no interior do partido e é eminentemente política, não de imagem (ou não só de imagem).

No presidencialismo norte-americano, as primárias são, digamos, a experimentação institucionalizada. É, também, política. Os marqueteiros podem inventar o que quiserem, mas está frito o candidato que não sair pelos Idahos da vida apertando mãos, beijando criancinhas e dizendo por que quer o voto do cidadão. Pode mentir (e geralmente o faz), mas tem de dizer algo.

Até Collor de Mello, o mais recente e mais espetacular fenômeno mercadológico da política brasileira, disse alguma coisa.

Tal como na ascensão, Roseana nada disse na queda. Derrubou-a a imagem de uma gorda pilha de dinheiro. Os otimistas dirão que é bom que tenha sido assim, que o papel da mídia é mesmo o de investigar, denunciar, cobrar.

Também acho. Mas por que a TV não fez o mesmo com Collor? Ou com FHC na reeleição, quando havia os grampos do BNDES a explorar, entre outros episódios obscuros?

Se aparecer algum dinheiro esquisito no caminho de José Serra repetir-se-á o cerco feito a Roseana?"