Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Roberto Pompeu de Toledo

ELEIÇÕES 2002

“Os estranhos casos da mulher e do cunhado”, copyright Veja, 23/10/02

“A mulher do governador do Rio de Janeiro pôde apresentar-se como candidata ao cargo que fora do marido. Mas o cunhado da governadora do Maranhão teve embargada a candidatura ao cargo que fora da cunhada. Dá para entender? O artigo 14, parágrafo 7? da Constituição, estabelece que ?o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção? do presidente, dos governadores ou dos prefeitos são inelegíveis, no mesmo território de jurisdição do titular. Com base nesse dispositivo, Ricardo Murad, cunhado de Roseana Sarney, teve impugnada sua candidatura ao governo do Maranhão. Ao mesmo tempo, porém, a Justiça permitiu que Rosinha Garotinho, mulher do governador Anthony Garotinho, fosse candidata no Rio de Janeiro. Eis uma esquisitice das recentes eleições que passou quase despercebida, pouco abordada que foi – quase nada – pela imprensa.

Uma exceção, no panorama de geral desatenção ao assunto, é um artigo publicado na revista Inteligência*, de autoria do advogado e professor de direito constitucional Cesar Caldeira. Caldeira historia as decisões judiciais que levaram Rosinha Garotinho a ter a candidatura legitimada e defende que houve aí desrespeito à Constituição. Em suma, e para ir logo ao ponto, o Tribunal Superior Eleitoral, ao julgar um caso que nem era ainda o da agora governadora eleita do Rio, mas o da mulher do prefeito do município de Ibiraçu (ES), que pleiteava candidatar-se à sucessão do marido, entendeu que a emenda da reeleição teve reflexos na norma constitucional que trata da inelegibilidade dos parentes. A emenda da reeleição, eis a chave da história, segundo o TSE. Ao permitir que presidente, governadores e prefeitos postulassem um segundo mandato, ela lhes deu um direito que, se não exercido, não pode ser negado aos parentes. Ou seja: se o titular de um desses cargos pode candidatar-se à reeleição, e não o faz, nada impede que um parente o faça. Tal entendimento baseia-se no pressuposto de que o que determina a inelegibilidade do parente é evitar o uso da máquina governamental em seu favor. Ora, se essa preocupação deixou de existir com relação ao próprio titular, quando se permitiu que pleiteie a reeleição, também terá de deixar de existir com relação aos parentes.

Já se sabe agora por que os casos do Rio de Janeiro e do Maranhão tiveram encaminhamentos opostos. No Rio, Anthony Garotinho havia cumprido apenas um mandato. Tinha, portanto, direito à reeleição. É como então se o tivesse cedido à mulher, assim como – data venia do egrégio tribunal, como se diz nos foros – se cede o lugar, no ônibus, às senhoras. Já no Maranhão Roseana Sarney cumprira dois mandatos. Esgotara o direito à reeleição. Portanto, os parentes estavam impedidos de suceder-lhe. Resolvida a incongruência entre os dois casos, sobra o principal: a esquisitice da decisão que fez com que o direito à reeleição como que pudesse ser repassado a outro, assim como – de novo data venia etc. – se repassa um cheque, endossando-o atrás. Caldeira indigna-se. Para ele, o dispositivo constitucional que torna os parentes inelegíveis é ?auto-aplicável?. ?É norma de eficácia jurídica plena e aplicação imediata, porque estabelece uma proibição constitucional?, escreve. Não estaria sujeita, portanto, a releituras. O ex-ministro da Justiça Saulo Ramos, ouvido pelo autor destas linhas, tem igual opinião: ?Se a Constituição diz que parente não pode se candidatar, então não pode, ora?.

Para Caldeira, o caso transcende o episódio do Rio de Janeiro. Ele teme o que pode ocorrer nos fundões do país, com parentes substituindo parentes nas prefeituras. O Supremo Tribunal Federal, chamado a entrar no assunto em virtude de um caso do município de Uauá (BA), ainda não se pronunciou. É irrealista pensar que sua decisão possa vir a ameaçar o mandato de Rosinha Garotinho, fundado politicamente numa sólida eleição em primeiro turno. Mas são de esperar, para daqui a quatro anos, enrascadas grandes. Se Rosinha renunciar à reeleição, o marido pode candidatar-se? Nesse caso, o casal terá garantido o direito perpétuo ao governo do Rio de Janeiro, bastando alternarem-se nas candidaturas. Quando estiverem velhos, darão lugar à filha, que nesta campanha ensaiou os primeiros passos na política participando de passeatas com os pais, e que, estando já então casada, passará a alternar-se com o marido. A decisão pode ser no sentido de que Rosinha não pode pleitear a reeleição porque cumpriu um mandato que equivale ao segundo do marido. Nesse caso nem ela nem o marido seriam elegíveis. Mas como aceitar que dois mandatos exercidos por duas pessoas diferentes resultem no impedimento de ambos? Por que prodígios aritméticos considerar que Rosinha exerceu dois mandatos, quando exerceu um só? E por que feitiços concluir que Anthony Garotinho esgotou seus dois, quando cumpriu um único? (Para ter acesso à revista Inteligência: www.insightnet.com.br ou (21) 2509-5399.)”

“Cabeça a cabeça”, copyright IstoÉ, 23/10/02

As charges semanalmente publicadas na última página de ISTOÉ – percebeu que as eleições brasileiras são como uma corrida de cavalos, com jóqueis envergando roupas coloridas, no caso cores partidárias, e montando puros-sangues bravios. A exemplo do turfe, a política exige o momento de segurar as rédeas, para depois se lançar em desabalado galope até atropelar os adversários. Tal páreo, na visão bem-humorada e crítica de Caruso, começou há dois anos, quando os primeiros dados da sucessão de Fernando Henrique Cardoso foram lançados. Desde então, em suas charges publicadas no jornal Folha de S.Paulo, o cartunista começou a desenhar o que resultou na exposição O grande prêmio Brasil – no galope do Ibope, que reúne 50 trabalhos emoldurados à moda dos quadros de caça da época da belle époque.

A mostra não poderia acontecer em lugar mais apropriado: o salão nobre do Jockey Club de São Paulo, onde permanece da segunda-feira 21 até o sábado 26. Durante o evento, avisa Caruso, os visitantes poderão fazer uma fezinha nos cavalos.

Na sexta-feira 8, a mesma exposição segue para o Hipódromo da Gávea, no Rio de Janeiro, com um desenho a mais: o do ?jóquei? vencedor, posando com o troféu, como naquelas fotos clássicas ao final de cada Grande Prêmio. A metáfora das corridas é perfeita para interpretar a evolução da disputa presidencial, que chega ao final com dois concorrentes tendo como espectador privilegiado o presidente Fernando Henrique Cardoso, desenhado pelo cartunista como um senhor engalanado, que assiste a tudo de camarote. Mas a divertida contenda retratada pelo traço peculiar de Paulo Caruso não privilegia apenas os candidatos José Serra e Luiz Inácio Lula da Silva. Sua pena também não perdoa o ex-governador do Rio de Janeiro Anthony Garotinho – que surge em seu pequeno pônei, vestindo uma roupa rosinha com bolinhas – nem a senadora eleita Roseana Sarney, que na corrida presidencial despontou com sua égua Ilha do Pericumã fazendo muita poeira, mas acabou de fora, tropeçando no escândalo da empresa Lunus. E, finalmente, montado numa zebra lépida, aparece ninguém menos que o barbudão Enéas, o deputado federal mais votado do País. Política é mesmo uma comédia.”

“Afetos, medos e liberdades”, copyright Época, 21/10/02

“Regina Duarte, Lula e a dupla sertaneja em comício: ?trabalhando emoções?.

Talvez não haja teste mais preciso para avaliar o amadurecimento de uma democracia do que a capacidade de conviver com a liberdade de opini&atilatilde;o.

Existem liberdades que são mais fáceis de aceitar, até porque produzem efeitos no bolso. Os trabalhadores acham razoável que sindicatos possam ter liberdade de negociar – inclusive fazendo greves – porque imaginam que será mais fácil reforçar seus ganhos.

Os acadêmicos são adversários naturais de qualquer forma de controle de pesquisas porque enxergam aí barreiras ao conhecimento. Os consumidores detestam a censura a livros e filmes porque pode privá-los do prazer único de uma obra completa, em versão original.

Mas o que fazer com a liberdade de opinião, essa mercadoria de efeito nem sempre visível, capaz de comportamentos estranhos e até incoerentes, como garantir voz até a quem não gosta dela?

Pegue-se a campanha presidencial de 2002, por exemplo. Lula e Serra possuíam um grandioso elenco de artistas para exibir no palanque – a oferta era tamanha que chegaram ao requinte de exibir uma dupla sertaneja diferente cada um.

Zezé Di Camargo e Luciano ajudavam a embalar os comícios de Lula, contribuindo em clima de paz e amor para que o candidato do PT ganhasse votos entre o povão. Além disso, sempre que aparecia uma chance, a dupla fazia elogios demorados ao candidato.

Deve-se condenar esses artistas por tentar usar seu prestígio para beneficiar o concorrente de sua preferência?

Pode-se duvidar da sinceridade dessa opinião apenas porque se disse que alguns artistas cobravam cachês milionários para subir ao palanque?

Empresas de comunicação e jornalistas também ganham dinheiro oferecendo opiniões e informações a seus leitores. Esse seria um motivo razoável para aceitar restrições a sua liberdade, duvidar de sua sinceridade?

É sob esse prisma que se deve examinar a polêmica produzida por Regina Duarte após sua aparição na campanha de José Serra falando em medo. Seria justo condená-la porque fez um pronunciamento onde dá uma opinião e diz o que pensa? Se o problema é o tom emocional, o que fazer com o sentimentalismo doído das duplas sertanejas? Ou ?trabalhar a emoção?, como dizem certos terapeutas, só vale quando envolve afeto?

A reação ao depoimento da atriz não foi de quem reconhece uma idéia adversária e pretende – legitimamente – polemizar com ela.

Foi intolerância para silenciar e desqualificar. Ao acusá-la de praticar ?terrorismo?, o que se planeja é recusar o direito de opinar e divergir, num recurso de quem procura aplicar um rótulo de inferioridade moral que não tem espaço nos debates políticos saudáveis. Liberdade é liberdade, inclusive para dizer besteira.

Regina Duarte não é daquela espécie que só mostra o rosto nas horas fáceis. Gosta tanto dos tucanos como Chico Buarque (e o eleitorado de 2002, dizem as pesquisas) os detestam.

Mas, se hoje o país possui um regime de liberdades inédito em sua história, em grande parte isso se deve a muitos milhares de brasileiros com coragem para sair à rua e protestar contra atos de violência e ataques à democracia. Com seu ar de desprotegida e fama injusta de especialista em papéis superficiais, Regina Duarte estava lá. Chico Buarque também. Na semana passada, Chico defendeu o direito de Regina de dizer o que quiser.

Para que serve a liberdade de opinião?

Para construir um país saudável, de cidadãos livres do maior medo – aquele que proíbe uma pessoa de dizer o que pensa, de tomar partido e opinar.

Regina (e Chico) mostraram isso mais uma vez na semana passada.”