Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

"Roubem, mas não me façam de idiota", copyright Folha de S. Paulo, 9/05/01


ASPAS

VIOLA??O NO SENADO

"Se fosse nos Estados Unidos ou na Europa, tudo bem. Mas é estranho ver o Brasil inteiro mobilizado em torno dos depoimentos de ACM, de Arruda e de Regina Borges. Houve gente que se referiu à acareação dos três na semana passada como um evento digno de Copa do Mundo.

Em tese, a questão da lista dos votos no Senado não seria capaz de despertar tanto interesse. Os pormenores da investigação -quem telefonou para quem, a que horas, por exemplo- exigem um espectador muito atento e com boa memória.

Mais do que isso, o princípio que se defende no caso -o sigilo do voto dos senadores- é bastante duvidoso ou, pelo menos, bizantino. Afinal mesmo os mais fanáticos seguidores dessa cruzada não acham certo que a votação no caso Luiz Estevão tenha sido secreta.

José Roberto Arruda, que mesmo quando quer ser patético não perde a pequenez, apela para uma circunstância atenuante: não roubou nem matou ninguém. O argumento tem muito de ridículo, mas é razoável.

Só que o próprio Arruda não vai muito longe nessa linha. Como se não quisesse conformar-se com a condição de pé-de-chinelo, diz também que participou de episódios bem mais graves do que o atualmente em pauta.

Eis um ponto em que acredito nele.

Claro que considerações desse tipo não levam a nada. Talvez haja coisas muito mais graves do que violar o sigilo de uma votação. Mas não é disso do que se trata. Há pelo menos dois outros aspectos em jogo nesse caso -e são bem mais significativos do que se tudo fosse apenas uma questão de corrupção, por exemplo.

Acho que nossa tolerância com a corrupção costuma variar de intensidade. Muitos se revoltam quando um político assalta os cofres públicos, mas, conforme o caso, há também certa tendência para perdoá-lo.

Mais revoltante do que a corrupção, provavelmente, é a mentira. É o primeiro fator a tornar o caso ACM/Arruda muito empolgante. É comum assistirmos a escândalos com o dinheiro público. Provas, indícios, documentos aparecem e são contestados.

Mas é bem mais raro que tenhamos diante dos nossos olhos a prova do deslize. E assistir a um político ser pego na mentira, em transmissão direta pela TV, é um espetáculo imperdível. Vemos um delito ser cometido e desmascarado ao mesmo tempo; o político se enrola nas próprias palavras; sua mágica fracassa, ele se atrapalha, ele mentiu.

Tanto o caso Watergate quanto o impeachment de Collor só ?pegaram?, por assim dizer, à medida que os envolvidos deram claros sinais de estarem mentindo. A escuta secreta nos escritórios do Partido Democrata não foi a pior coisa que Nixon fez na vida. E, se Collor não tivesse ido duas vezes à televisão com toda a história da Operação Uruguai, talvez fosse mais discreta a sua derrocada.

Roubar é ruim, mas me fazer de idiota é intolerável. O ataque ao dinheiro público me atinge indiretamente; a patranha fere o meu amor-próprio. Melhor ainda, nesse caso, é ver que ACM e Arruda tentam convencer não apenas a mim, mas a seus próprios colegas de Senado. Aí é passar mesmo dos limites.

O segundo fator de empolgação no atual escândalo tem um fundo claramente pessoal. Os embrulhos de Arruda, por si sós, dariam traço no Ibope. Mas ACM é outra história. Creio que muita gente sempre detestou Antonio Carlos Magalhães, mas ninguém imaginava que queria tanto a sua destruição.

Sentimento antibaiano? Isso existe há muito tempo. Agora é outra coisa. Veja-se a festa em que Gal Costa e Zélia Gattai se confraternizaram com ACM. Nem sequer é criticável. É apenas um ritual exótico, que devemos respeitar. Não me provoca raiva. Posso, aliás, entendê-lo perfeitamente. Penso no que eu faria se devesse algum favor importante a ACM. Seria bem compreensível, do ponto de vista ético, ir lá abraçá-lo. Coragem e gratidão também são virtudes, e é difícil muitas vezes distingui-las da cara-de-pau e da subserviência.

Imagino se eu tivesse um filho de 18 anos que, estando em férias na Bahia, fosse pego com maconha e levado para a cadeia. Pode acontecer com qualquer um. E, se eu pedisse para ACM dar uma ajuda nesse caso? Estaria errado? Talvez. Mas não sou nenhum Jefferson Péres para estar certo o tempo todo.

E é nisso que o caso ACM se torna mais interessante. Um tipo de poder baseado no favorecimento pessoal, no apadrinhamento, tem seu próprio código de ética. Só podemos questioná-lo ?de fora?. Desconfio que toda a tentativa de obter a lista de votantes na cassação de Luiz Estevão teve o sentido de estender, no âmbito da política nacional, um jogo de ameaça personalista e de troca de favores que vai ficando ultrapassado historicamente.

O Senado -para não dizer o país inteiro- se recusa a ser o curral de um sinhozinho qualquer. Ironicamente, ACM vinha modernizando muito a sua imagem: fez discursos contra a corrupção e a miséria. Só que o país andou mais rápido do que ele."

"Não há nada mais improvável na televisão brasileira do que o repentino sucesso da TV Senado. Criado em fevereiro de 1996 para exibir aqueles enfadonhos discursos repletos de réplicas e tréplicas entabulados por senhores e senhoras que se dirigem um ao outro por Vossa Excelência – mesmo sendo furiosos desafetos – ainda assim o canal passou a ser sintonizado por milhares de brasileiros. O interesse, é óbvio, foi despertado pela crise provocada pelos senadores Antônio Carlos Magalhães, José Roberto Arruda e a ex-diretora do Prodasen, Regina Célia Borges, desmascarados em atitudes bem mais que suspeitas a partir da publicação por ISTOÉ da fita do procurador Luiz Francisco de Souza. As investigações em torno deles, cujo ápice foi a imperdível acareação de 7h15 de duração, atraíram a atenção do público. As pessoas passaram a sintonizar o canal, cuja missão é divulgar, 24 horas por dia e sem nenhuma opinião, os acontecimentos do Senado. Restrito a quem tem tevê por assinatura, cerca de 40% do que exibe é ao vivo.

Antes de adquirir visibilidade, a TV Senado, como outros canais ligados ao Legislativo, registravam audiência próximo a zero. Pego de surpresa, Antonio Ricardo Alves Ferreira, diretor de divisão de audiência do Ibope, apenas intui o óbvio aumento da procura pela emissora. Até porque ele mesmo acompanhou a tal acareação, acontecida no dia 3. ?Aquilo funciona como um julgamento, igual àqueles dos filmes americanos?, diz Ferreira. O jornalista e crítico de tevê Gabriel Priolli nota uma certa crueldade por trás de tanto interesse. ?Nada mais divertido que um político em apuros?, opina. Segundo o crítico, a repentina atenção despertada pela TV Senado coloca por terra a idéia de que as pessoas só gostam de entretenimento rasteiro. ?O canal tem um formato chato, mas o conteúdo é importante. O público assiste.?

Segundo Aluizio Oliveira, diretor do canal, a presença das três câmeras da tevê no plenário mudou o comportamento dos senadores. ?Quando começaram a perceber a repercussão, passaram a falar olhando para a câmera e a acentuar suas falas?. Outros até largaram o cigarro depois que espectadores reclamaram do mau exemplo. Só não abandonaram os celulares, cujos ruídos interferem na transmissão.

As intrigas reais mostradas pela TV Senado chegaram até a novela das oito da Rede Globo, Porto dos Milagres. Não por coincidência, Victório (Lima Duarte) vive na trama um certo senador baiano que enfrenta momentos delicados por ter feito revelações perigosas, gravadas como instrumento de chantagem pelo político Félix Guerreiro (Antonio Fagundes). O co-autor do folhetim, Ricardo Linhares, diz que Victório, ao contrário do que possa parecer, ?não foi calcado em nenhum político específico?. Confirma, porém, que se inspirou mesmo nas gravações feitas pelo procurador Luiz Francisco de Souza para incluir na trama a situação do gravador escondido."

"Exatamente na quinta-feira em que se realizou a acareação entre os senadores Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), José Roberto Arruda (sem partido-DF) e a ex-diretora do Prodasen Regina Borges, uma pequena nota de uma coluna de bastidores políticos informava que o senador baiano estava muito irritado com o comportamento ?dos filhos do Dr. Roberto Marinho?.

O motivo da fúria de ACM era o tratamento a ele dispensado pela Rede Globo de Televisão no episódio da violação do painel eletrônico do Senado Federal. Mais especificamente, o ex-presidente do Congresso teria se irritado muito com um quadro do programa humorístico Casseta e Planeta em que era a todo tempo chamado de ?Antonio Carlos Fraudalhões?.

A irritação de Antonio Carlos tem razão de ser, ainda mais se considerarmos que ele certamente tomou conhecimento do recente veto, por parte da direção da Globo, a um quadro – do mesmo Casseta e Planeta – em que a cantora-atriz Sandy era ironizada. Contratada há pouquíssimo tempo pela emissora, Sandy é protagonista da novela Estrela Guia, que os humoristas queriam transformar em algo como Estrela Virgem – uma alusão a suposta castidade da nova pop-star global.

Em outras palavras, para os dirigentes da Rede Globo, a virgindade de Sandy é mais importante do que a reputação do velho senador. Ou, pelo menos, a primeira merece mais respeito do que a segunda.

O homem que controlou o sistema de comunicação do país por anos a fio não deve estar acreditando: de repente, sem mais nem menos, o parceiro de todas as horas – aquele a quem ACM foi fiel e notoriamente colaborou para o seu sucesso com atitudes nem sempre transparentes – simplesmente lhe dá as costas no momento em que ele mais precisa de apoio?

Não sou vidente, não tenho bola de cristal, mas, em momentos críticos da vida nacional, tenho um hábito: procurar saber o que a Globo está dizendo a respeito dos acontecimentos.

Senão vejamos. Com exceção da campanha das Diretas Já – quando a Vênus Platinada demorou para perceber que a maré tinha virado e os militares, perdido o bonde da história – em praticamente todos os outros acontecimentos recentes do país a Globo esteve do lado dos vencedores. Foi assim na eleição de Collor e, depois, no movimento pelo seu impeachment; foi assim no apoio ao Plano Real de Itamar Franco; na eleição e reeleição de FHC e por aí vai.

Voltando aos dias de ACM e Sandy, pode ser que todo o imbróglio em torno da violação do painel do Senado termine em uma grande pizza. É um cenário possível, embora cada vez menos provável. Porém, ainda que ACM, Arruda e Barbalho – o futuro do presidente do Congresso está nas mãos sobretudo de seu antecessor – saiam incólumes de toda a lama, uma coisa é cristalina: Antonio Carlos Magalhães não é mais o mesmo.

O comportamento da Vênus Platinada mostra que os acordos e pactos entre o senador baiano e o patriarca das Organizações Globo não valem para o resto da família Marinho. Sem a retaguarda da emissora, a expressão política de ACM fica reduzida a seu grande prestígio na Bahia e capacidade que tem de ameaçar seus próprios parceiros com as informações que acumulou em mais de cinco décadas de exercício do poder.

Em outras palavras, de protagonista da vida política nacional, ACM deve passar para um plano secundário, qualquer que seja o desfecho do caso do painel do Senado. Sim, pois aí está a Sandy, que não me deixa mentir."

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