Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Santos Dumont: azar para os incompetentes

A fama de azarão do Pai da Aviação que constava apenas nos anais dos supersticiosos vai transferir-se à mídia. O incêndio na estação de passageiros provocou uma das maiores coleções de imprecisões e apenas um feito. As desfeitas:

* O “Aeroporto Santos Dumont” que se incendiou na madrugada de sexta-feira 13/2 é apenas a estação (ou terminal) de passageiros. O complexo que se chama de aeroporto (pistas, hangares, etc.) é muito mais antigo: antes abrigava a estação de hidroaviões junto à cabeceira norte da pista (ao lado da estação das barcas). Depois disso, houve um terminal da Panair que hoje abriga o Clube da Aeronáutica. Recomenda-se aos departamentos de pesquisa dos jornalões comprar por 50 reais um livro-álbum denominado Aeroporto Santos Dumont (Editora Empresa das Artes) com a história do complexo aeroportuário carioca. Quem não quiser gastar esta dinheirama procure ter na redação jornalistas um pouco mais velhos com um universo memorialístico um pouco mais amplo.

* A espalhafatosa chamada de primeira página do Folhão no domingo, 15/2, foi tão desastrosa quanto o incêndio propriamente. Em cima de uma foto da estação de passageiros (tirada na época dos Electra), os alegres rapazes da Barão de Limeira estamparam os seguintes dizeres: “Fim de Uma Era. O incêndio do Santos Dumont agrava os problemas que atormentam o Rio, destrói um símbolo do período Vargas e tira do Brasil uma fatia de sua história afetiva”. O incêndio não agravou os problemas da cidade porque diz respeito a uma parcela ínfima de usuários (5 mil na ponte aérea p/dia), o prédio da estação de passageiros foi sendo terminado aos poucos e não tem vinculação alguma com a imagem de Getúlio Vargas. Na história afetiva do Rio e do Brasil não se inclui aquele prédio dos irmãos MMM Roberto, inclusive pela localização periférica.

Já a matéria em si é uma cópia do que o rival O Globo havia publicado no sábado.

* Exemplo de como o sensacionalismo também se manifesta na escolha de palavras ditas “fortes” é a manchete do JB na segunda-feira, 16/2, mencionando estrepitosamente um “impasse” na escolha do terminal carioca da Ponte Aérea. Impasse significa confronto, situação sem saída. Nada mais errado: a reunião que decidiria o local provisório estava marcada desde a sexta-feira e as partes interessadas queriam apenas uma definição da Infraero, à qual cabia tomar as decisões.

* Até segunda-feira, 16/2, nenhum jornal havia pensado no interesse dos seus leitores/usuários da Ponte Aérea: se vai transferir-se para o Galeão deve haver um desconto no preço das passagens para compensar o custo triplicado do transporte e compatibilizá-lo com as tarifas dos vôos que já faziam a ligação Guarulhos-Galeão. Pensar no cidadão é o mínimo que se exige de um serviço público.

Os feitos são de O Globo: o único jornal que conseguiu incluir na primeira página de sexta-feira uma notícia sobre o incêndio e a transferência dos vôos para o Galeão. Ainda que tenha circulado em 23 mil exemplares (informações da direção da redação), demonstra que ainda existe no jornalismo brasileiro uma réstia de preocupação por um jornalismo literalmente “quente”. Além disso, a matéria do jornalão carioca no sábado foi sem dúvida a melhor de todas.

A Folha acertou com o seu articulista André Lara Resende (terças-feiras, pg. 2) a interrupção da sua colaboração regular. A razão é a sua vinculação formal à equipe presidencial. Permanecem dois membros do Poder Legislativo e um do poder econômico.

Para compensar, o jornal anunciou na terça-feira, 11/2, duas novas contratações na área da opinião: Eduardo Gianetti e Roberto Mangabeira Unger. Este foi apresentado como colaborador do candidato Ciro Gomes (PPS).

No entanto, o substituto de Lara Resende, assessor de FHC, será Mangabeira Unger, assessor de CG. Certamente para tornar mais homogênea a página mais nobre do chamado “jornalismo crítico”.

Gianetti, pensador liberal, foi para a Ilustrada.

* A Folha e o Estado, quanto mais disputam mais se parecem. Fenômeno que os psicanalistas chamam de “identificação com o adversário”. Durante os 10 dias do Midiagate os dois jornalões mal se referiram às consecutivas lições de moral que o NYTimes deu no resto da mídia (o Estadão pelo menos reproduziu um desses textos clássicos). Mas quando o jornalão americano revelou que a secretária de Clinton admitira a presença de Monica Lewinsky na Casa Branca, os dois levaram o assunto para as respectivas primeiras páginas.

* The Economist, de linha conservadora, considerado o melhor semanário do mundo, também embarcou no frenesi do “impeachment”. Na capa da edição 31/1-6/2 (que circulou na Europa e EUA na sexta, 30/1), com uma foto de Clinton, dizia solene: “If it’s true, go” (Se for verdade, vá). No editorial e na matéria informativa não conseguiu apresentar aos leitores qualquer denúncia consistente com o tom da capa, repetindo com um pouco mais de compostura o que a imprensa conservadora americana já dissera. Na edição seguinte, com o rabo entre as pernas, reconheceu no editorial que o promotor especial, Kenneth Starr, necessita de mais contenção.

* A última lambada do NYTimes na mídia, assinada por Janny Scott (6/2/98), acusa o jornalismo on-line e a TV a cabo pela deterioração dos padrões jornalísticos. E revela coisas incríveis sobre a irresponsabilidade com que notícias insuficientemente investigadas são veiculadas para serem logo alteradas quando todos já as reproduziram. Conta que um repórter do Wall Street Journal – o mais assanhado na derrubada de Clinton – procurou um assessor de imprensa da Casa Branca para desmentir ou confirmar uma informação sobre o escândalo. O funcionário perguntou: “quanto tempo tenho para lhe trazer a informação que precisa? O repórter respondeu: “Não sei, nunca fiz este tipo de trabalho anteriormente…” Minutos depois, quando o assessor bipou para o repórter, a notícia já estava no ar, mesmo sem confirmação. A Associated Press que também trabalha contra o relógio, na base de flashes, só tem publicado informações checadas e contrachecadas.

(Ver abaixo remissão para entrevista de Norman Mailer.)

* O veterano comentarista político da Gazeta Mercantil (quartas-feiras, p. 3), errou nas contas. Afirmou em seu artigo de 11/2 que “desde 1930 só um presidente da república foi capaz de fazer seu sucessor pelo voto popular: Itamar Franco”. Engano: o Presidente Eurico Dutra apoiou ostensivamente o retorno de Getúlio Vargas sacrificando o candidato oficial do PSD (Cristiano Machado, daí o verbo “cristianizar”). Além disso, desde 1930 apenas três presidentes tiveram sucessão regular (um deles, o citado Dutra).

* Maneiras de dizer: os colunistas políticos que se revezam na pg. 2 de O Globo estão forçando a barra em matéria de linguagem. No dia 7/2 foi dito que a passagem de Ciro Gomes pelo Rio “foi um sucesso de mídia” (houve um jantar animadíssimo onde apareceu um monte de pessoas charmozérrimas). No dia 10/2 foi dito que “Itamar passou como um furacão”. Mesmo os mais chegados assessores do ex-presidente, conhecendo sua discrição, jamais diriam isso. No mesmo jornal, duas páginas adiante, Márcio Moreira Alves mostra como é que se faz jornalismo político: largando o telefone e saindo em campo.

* Dora Kramer no JB também não aderiu ao tititi que tanto assemelha o colunismo mundano ao colunismo político. Sua entrevista com o ministro Carlos Albuquerque (8/2) agitou o noticiário durante alguns dias.

Mesmo para quem pretende fazer oposição ao atual governo as quatro páginas de anúncios do programa “Brasil Em Ação” em Veja (11/2/98) oferecem pelo menos 42 excelentes oportunidades de bom jornalismo. Acontece que o jornalismo declaratório e reativo é mais fácil. Sair à rua, viajar pelo país ou meter o pé no chão saíram de moda. Além do mais custa mais caro – melhor contratar alguma celebridade-nulidade para pontificar sobre sandices.

Folha e Estadão estão ocupando seus já mirrados cadernos culturais com farta cobertura dos desfiles comerciais de moda. Nos bons tempos, esta prestação de serviço era publicada nos cadernos femininos ou colunas mundanas. Que a Folha insista nesta decisão vai por conta da sua modernidade. Mas que o Estadão ignore o que Paul Johnson, o seu mais conceituado media critic, escreveu na conceituada Página Dois sobre o comercialismo destes desfiles é um desperdício (Ver, abaixo, Entre aspas.)

No mesmo fim-de-semana em que Veja publicava página inteira em que o escritor Arthur Clarke aparecia como pedófilo, acusado pelo Sunday Mirror, o Estadão (7/1/98) publicava a reação firme e violenta do escritor: “Jornalistas são bastardos”, disse Clarke. A matéria do nosso mais importante semanário terminava assim: “…caso a denúncia se confirme”. Significa que o texto foi escrito antes da confirmação da denúncia.

Os planos de saúde são campeões de queixas no Procon de S. Paulo, segundo levantamento da Gazeta Mercantil (12/2/98). Mas as empresas de mídia começam a aparecer com alguma evidência. E não apenas as distribuidoras de TV a Cabo (Multicanal, Net e TVA, respectivamente 18º, 41º e 41º lugares). A Bloch Editores (revistas) está em 28º lugar.

O Sindicato Nacional da Industria Cervejeira respondeu a um artigo deste Observador em que reclamava uma campanha voluntária do tipo “se beber, não dirija”. Mandou dois lindos folhetos em papel couché como “contribuição para uma atitude responsável ao beber e dirigir”. Quanto motoristas receberam estas mensagens? Quantos motoristas recebem as maciças campanhas veiculadas pela TV apregoando as delícias de uma cervejota?

Os dois folhetos fazem parte do Código de Auto-Regulamentação da Indústria de Cerveja, que, como os demais, apenas acalmam as consciências culpadas e estão longe de atender as reais responsabilidades do setor. (Ver abaixo remissão para “Dirigir ou Digerir”.)

A rádio Eldorado, uma das melhores do país, tem apresentado séries de reportagens com uma semana de duração, sempre sobre temas de interesse público. A série que começou no dia 9/2 e estendeu-se até o dia 13/2 tratou do baixo nível da programação televisiva e dos remédios que outros países adotam para evitar a contaminação de crianças e jovens.

A ênfase da série foi no caráter de concessão pública dos canais de TV e nas indispensáveis contrapartidas sociais que deveriam oferecer. Acontece que as rádios também são concessões públicas e a única contrapartida que oferecem é o noticiário de uma hora da Voz do Brasil.

Parece até intencional: na semana em que a jornalista Lilian Witte-Fibe deixava formalmente de pertencer aos quadros do Jornal Nacional, nosso principal telejornal, qual velha fênix, renascia das cinzas em grande estilo. Dramática série sobre o desemprego, longa reportagem internacional no Paraguai, pouquíssimas trivialidades pseudo-científicas, matérias ligeiramente mais contextualizadas. Big Brother tem razões que a razão desconhece.

 

LEIA TAMBEM

Ivan Lima, Caderno do Leitor

Norman Mailer, Entre aspas

Paul Johnson, Entre aspas

Dirigir ou digerir, Paulo Nassar, Caderno da Cidadania