Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Schwarzenegger, os transgênicos e a Bolívia

NOTÍCIA & INFORMAÇÃO

Ivo Lucchesi (*)

A capacidade que a mídia (impressa e eletrônica) tem de produzir informação é realmente algo fantástico. O problema, todavia, reside na relação entre volume de informação e massa de conhecimento, à altura de qualificar novos estados perceptivos. Esta é uma questão antiga. Já em 1947, os teóricos Adorno e Horkheimer sentenciavam, na obra Dialética do esclarecimento, que "a imprensa não passou de uma invenção grosseira". É possível que tenham exagerado na crítica; entretanto, para os padrões atuais, talvez seja conveniente reavaliar, sempre com o propósito de redefinir direções.

Fiquemos apenas com três temas que ocuparam o noticiário mais recente: 1) a eleição do "dublê de ator", agora investido da função de "dublê de governante", Arnold Schwarzenegger; 2) a liberação (via Medida Provisória) pelo governo brasileiro do plantio da próxima safra de soja, com base no processo transgênico; 3) o conflito político na Bolívia, resultando na renúncia de Gonzalo Sánchez de Lozada.

Os três temas selecionados mereceram, em semanas distintas, amplo destaque jornalístico, supostamente cobrindo os possíveis ângulos que o limite da informação possa abarcar. O problema, porém, é saber se o saldo final da massa de informação circulante efetivamente terá cumprido o papel desejado.

O herói das telas na sociedade do ridículo

Ficou patente o desconforto da mídia em noticiar, com objetividade jornalística, a vitória do "astro" Schwarzenegger como expressão da vontade majoritária dos eleitores californianos. No mínimo, a democracia sofreu mais um abalo que a mídia procurou contornar. O episódio em si já não cabe no conceito de "sociedade do espetáculo", conforme o concebeu Guy Debord. Mais apropriado, talvez, seja o reconhecimento de um novo estágio: a "sociedade do ridículo". Assim, poder-se-á melhor compreender como desliza o imaginário californiano que, na matriz do "espetáculo", elegeu Ronald Reagan e, agora, num degrau acima (o ridículo), entroniza Schwarzenegger.

Nessa escalada, o que se consigna é a desdramatização da política em aliança com a banalização da democracia, com base na "virtualização" do voto. Ao "templo midiático" da informação pareceu restar um acordo cínico no qual o fato é registrado como um gesto natural a mais no "jogo da democracia". Por fim, tudo se esgota numa foto estampando o sorriso largo do "exterminador do futuro", recoberto ? como num ritual de bênção ? por centenas de papéis picados e coloridos.

O caso dos transgênicos

A respeito do tema em questão, a mídia não fez por menos. Promoveu entrevistas, rememorou tratados assinados, explorou cantos e recantos sobre vantagens e desvantagens, transformando o fato numa histérica discussão, quase no melhor estilo de programas esportivos, para, no final de tudo, o assunto ser posto à margem. Pragmaticamente, o governo, evitando desgastes políticos e ajustando interesses de balança comercial, legalizou o que era (e é) ilegal. Foi uma grande lição num país cujo rigor ético não figura no elenco de prioridades.

Curiosamente, a mídia não deu destaque a dois pontos: 1) a dependência futura que os atuais e entusiasmados agricultores gaúchos terão para a compra de sementes transgênicas, sob a tutela da Monsanto; 2) a decisão da Monsanto em fechar, na Europa, seus escritórios de representação comercial, ante a ausência de clientes.

Ilustremos o primeiro ponto, praticamente ignorado pela mídia, recorrendo à observação crítica formulada pelo pensador húngaro István Mézsáros no livro O século XXI: socialismo ou barbárie?:


"(…), o governo dos Estados Unidos está fazendo o possível para impor ao resto do mundo produtos cuja adoção garantiria ? ao forçar eternamente os agricultores de todo o mundo a comprar sementes não renováveis da Monsanto ? o domínio absoluto para os Estados Unidos no campo da agricultura. As tentativas de empresas norte-americanas de patentear genes visam objetivo semelhante" [Boitempo, 2003, pp.51-52].


Se a mídia brasileira estivesse efetivamente comprometida com a missão de problematizar, encontraria no tema dos transgênicos amplo espectro crítico. Se o continente europeu ? com reduzida área agricultável, frente às crescentes demandas ? resiste às tentações do monopólio americano, que dizer do Brasil (detentor da maior reserva agricultável do planeta)? Sem entrar em questões de âmbito científico, até porque nada há de conclusivo a repeito, bastaria o argumento em favor da soberania nacional. O Brasil pode tornar-se hegemonicamente o maior exportador de produtos agrícolas ? por métodos naturais ? com a garantia de mercados tanto na Europa quanto na Ásia. Vê-se, portanto, que, nos bastidores do tema sobre os transgênicos, muito há por ser informado à opinião pública e igualmente cobrado em âmbito de política governamental.

A tensão na Bolívia

No contraponto do episódio sobre o "governador-herói", cuja densidade política foi reduzida a patamares cômicos, a mídia deslocou o foco para a rebelião na Bolívia, quase tentando demonstrar que a política ainda move os destinos do mundo. Conflitos, quebra-quebra, greves, prisões, feridos e mortos pautaram as coberturas com oscilações ora épicas, ora dramáticas. Em nome de fervorosos princípios e ideais, 74 participantes abortaram suas vidas, no confronto sempre desigual com as forças de repressão que, em nome da preservação da democracia, adquirem o direito de matar. A respeito dessas perdas de vidas anônimas, pouco ou nada soubemos. Acabam como registro congelado num número. A mídia não lhes conferiu nada de especial.

Inexistiu matéria capaz de pôr em questão a validade de certos protestos dos quais emanam novos heróis, diferentes acordos, amplas faturas. Nenhuma página escrita sobre a irracionalidade enfurecida que põe, lado a lado, delírios de governantes e populações destituídas de quase tudo. Não, isto não é pauta jornalística ? terá dito um zeloso profissional da informação. Assim, a vida dos ingênuos escoa pela margem dos acontecimentos.

Ainda na "novela boliviana", houve espaço para a inclusão de uma trama paralela: o resgate de turistas brasileiros, no mais alto estilo do cinema-aventura, com direito ao mítico vôo do Hércules da Força Aérea em parceria com o cântico do Hino Nacional. Ou seja, embora a iniciativa tenha sido demonstração de prudência, não se pode deixar de reconhecer quanto também houve de exagero. Quem sabe, daí possa advir um filme. Roteiro não faltará. Como conseqüência imediata, a sociedade boliviana parece haver restabelecido a ordem, alçando à presidência o mais influente profissional da mídia local.

Os três temas, a despeito de suas respectivas singularidades, são perfeitamente conciliáveis entre si como exemplo do quanto a mídia é capaz de selecionar e de ocultar. Não havendo redirecionamento ético e conteudístico, a mídia brasileira acabará na condição de subproduto da indústria de cosméticos, dada a competência com que promove a maquilagem do real.

(*) Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) ? RJ