Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Seitas, "seitas" ou "movimentos religiosos independentes"?

As "seitas" evangélicas incomodam tanto mais na medida em que são um fenômeno mal conhecido, mal estudado, mal explicado. Como as torcidas organizadas.

Na entrevista do sociólogo José de Souza Martins abordada acima, o termo "seita" é usado sem hesitação por ele e por Alfredo Bosi, que o grafa o tempo todo sem aspas. É facciosismo de ambos – independentemente do mérito das análises feitas por Martins -, e facciosismo não se combina com a busca da verdade.

José de Souza Martins diz que as seitas "não são igrejas protestantes, é importante dizer isto, mas sim igrejas evangélicas, não têm nenhum vínculo com a doutrina, nem com as orientações teológicas da Reforma Protestante. São, digamos assim, um resíduo extremo do que foi a Reforma, mas não têm nenhuma relação com ela".

Faz adiante, nessa entrevista dada em maio e junho de 1997, um diagnóstico que soa como antecipação de decisões da Igreja Católica anunciadas em 7 de dezembro, em Roma, durante o transcurso de um sínodo de bispos da América: "As seitas estão crescendo muito, basicamente nesse território vazio de alguns possíveis equívocos do trabalho pastoral da Igreja Católica". Tenta uma explicação:

"As igrejas eletrônicas, as igrejas do espetáculo religioso, as seitas, estão cobrindo uma necessidade da população que não é uma necessidade religiosa stricto sensu. Estão cobrindo necessidades psicológicas dos que sentem a carência de ser parte de alguma coisa ampla, e não de algo pequeno como as comunidades de base, ou seja, de ser parte do espetáculo moderno. Mas isso não é o moderno, é apenas o espetáculo do moderno".

Albigenses, Inquisição, fogueira

O raciocínio, nessa passagem, seja lá o que for "moderno", não prima pela clareza. Há uma salada de conceitos e mais imaginação do que estudo. Em todo caso, um discurso, como se diz na academia, que se diferencia do anátema puro. E se fossem só os anátemas…

Durante uma "cruzada" iniciada em 1208 contra os hereges cátaros de Albi, sul da França, Simão de Monfort mandou arrasar aldeias inteiras, sem distinguir heréticos de bons católicos. Um prelado abençoou a matança com esta pérola de insanidade: "Matem-nos todos, e Deus reconhecerá os seus".

A reação contra a heresia ajudou a fortalecer intelectualmente a Igreja Católica depois que são Domingos criou sua ordem, em que a preocupação com uma formação teológica sólida – para enfrentar a polêmica com os cátaros – era prioridade. No plano político, as divergências acerca de dogmas também ajudaram os reis Capetos a penetrar no Languedoc. Mas só foram "resolvidas" a ferro e fogo pela Inquisição, que teria longa e pavorosa história. Caminhando assim, a humanidade chegou a Canudos, ao massacre dos armênios, à "solução final" contra os judeus, à Bósnia.

Trinta e cinco toques

Demorou, mas a Igreja Católica das Américas, na virada do milênio, nem quer mais chamar as "seitas" de seitas. Propõe "movimentos religiosos independentes". A expressão não quer dizer nada, mas serve para atenuar o estigma aplicado a grupos religiosos rivais.

A imprensa brasileira nunca hesitou em usar o termo "seitas", e nunca deveria tê-lo usado inadvertidamente, porque não pode pretender sequer a interlocução com o divino que a Igreja supõe praticar. A imprensa, salvo se ostenta confissão religiosa como profissão de fé – o que é um direito decorrente da liberdade de expressão do pensamento -, deveria ser laica, no mínimo em respeito à diversidade de crenças de seus leitores. Sabe-se muito bem que isso não acontece.

Quando a ferida fica exposta, tem-se uma situação parecida com a do jornalismo da Rede Globo ao improvisar. É patético.

O Estado de S. Paulo de 8/12/97 passou recibo da confusão causada pela mudança de orientação da Igreja Católica.

No título, seitas, sem aspas: "Igreja Católica decide dialogar com seitas". E o texto, vindo de Roma, começa do mesmo modo. "O diálogo com as seitas deve substituir a hostilidade e a prática do ecumenismo deve incluir os ‘movimentos religiosos independentes’. (….) A mudança de estratégia da Igreja em relação às seitas, fruto de uma grande reflexão, começa com a substituição do nome", etc. Daí em diante, a reportagem enquadra-se relutantemente na preceituação da hierarquia católica: usa "seita" entre aspas…

Mas vai ser difícil fazer título com "movimentos religiosos independentes", porque são 35 toques.

Será que as "seitas" virão agora entre aspas? Será que veremos cardeais – da Igreja – dialogar com o Sr.Edir Macedo?