Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Senhora Especulação faz o jogo do Senhor Mercado

NOTICI?RIO & CÂMBIO
FLUTUANTE

Não é todo dia que o Folhão e o Estadão tratam do mesmo assunto em manchete. Em catástrofes e outras situações agudas, todos os jornais puxam manchete para o mesmo assunto, concorrentes ou não.

Num fim de semana morno, com edições preparadas com dois dias de antecedência, a inusitada coincidência de manchetes no último domingo (11/8) funciona como indicador de que algo muito grave preocupa os tradicionais adversários.

Disse O Estado de S.Paulo: "Dólar faz dívida de empresas subir 260%"

Repica a Folha de S.Paulo: "Dólar alto gera perda de até 14,5 bi"

A coincidência aconteceu cinco dias depois do anúncio do socorro do FMI no valor de 30 bilhões de dólares (quando a cotação da moeda americana deslizou para um patamar abaixo dos 3 reais). Mas, certamente, foi acionada pela teimosia do dólar (um dia depois da euforia, sexta-feira) em voltar ao patamar anterior.

É claro que os dois jornalões estão preocupados com o interesse público, disso não há dúvidas. Mas ambos estão dominados por uma inquietação adicional: sua matéria-prima, mesmo quando não importada, é cotada em dólar. Jornais e revistas não são os únicos produtos cujo insumo principal é tão sujeito aos humores cambiais e as empresas jornalísticas não são as únicas endividadas no exterior (os gráficos e infográficos publicados nas edições dominicais dos dois diários exibem a aflitiva situação de grupos industriais bem mais poderosos do que os de comunicação).

O que chama a atenção não é a coincidência de assuntos nas manchetes mas a idêntica falta de apetite para explicar o(s) motivo(s) que produziram da noite para o dia o novo susto cambial. A pressão sobre o dólar na sexta (9/8) não foi episódica; na segunda-feira seguinte (12/8), as verdinhas continuaram em alta levando consigo o risco Brasil.

Tudo indica que o respeitável Sr. Mercado está sendo seduzido pela sirigaita da Sra. Especulação. A prova está numa bem apurada matéria do Estadão no sábado (pág B1), na qual está expressamente consignado que algumas "instituições" apostam na alta porque na quinta-feira seguinte (15/8) vencem 2,5 bilhões de dólares em títulos cambiais a serem corrigidos pela taxa média (ptax) da quarta. Para quem tem esses papéis interessa que o dólar suba para, então, liquidá-los com grande lucro. Escreveu o jornal:

"?É especulação total?, disse à Reuters o chefe da mesa de câmbio da Quality Corretora, Fernando Ferreira Leite. Com o vencimento dos títulos cambiais na semana que vem ?as ptax de hoje [sexta], segunda, terça e quarta são importantes para os detentores destes papéis?, afirmou ele."

Chama a atenção dos observadores da mídia esta omissão ? evidentemente involuntária ? diante de tão grave denúncia. O leitorado e, em última análise, a sociedade esperavam que revelações tão contundentes escritas na sexta-feira para a edição de sábado fossem devidamente aprofundadas para a matéria da edição de domingo (e redigida logo em seguida).

Se o Estadão não deu seqüência à sua própria investigação, pior fez o Folhão ainda mais resignado ao surto especulativo nas edições de sábado, domingo e segunda.

A verdade é que o Sr. Mercado desejava mais dólares do Banco Central, mas como não pode declarar isso abertamente acionou a velhaca parceira, Sra. Especulação, para provocar novas "irrigações" que, sequioso, absorverá até contabilizar os lucros.

A outra verdade é que nossa mídia não dá conta das suas responsabilidades. Inventou em 1989 o monstro chamado Sr. Mercado, deu-lhe status de ente vivo com vontades próprias e a ele submeteu-se reverentemente. Agora entrega-se ao saracoteio da sua parceira, a Sra. Especulação.

De uma imprensa incapaz de zelar por seus interesses particulares não
se deve esperar que seja capaz de cuidar dos interesses nacionais.