Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Seqüestros, autocensura e hipocrisia

CASO ABRAVANEL
(*)

Alberto Dines

O psicojornalismo estreou em grande estilo: em três dias as estrelas do noticiário deixaram de ser as raposas políticas e os especuladores no mercado de capitais. Foram substituídas às pressas pelos psiquiatras, psicanalistas e psicólogos convocados para traçar o perfil de Patrícia Abravanel, do pai, Silvio Santos, e do duplo seqüestrador-assassino, Fernando Dutra Pinto. Um prato para a rubrica de "comportamento" na qual se inspiram tanto os autores de telenovelas como seus ávidos espectadores.

Nestes dias de cão, Hollywood fingiu que falava tupi-guarani e transferiu-se para Barueri e Morumbi. Mas os juristas, criminalistas e policiais é que deveriam estar pontificando sobre a forma de classificar o último episódio em que se envolveu o dono do SBT.

Invasão de domicílio, assalto a mão armada ou simplesmente um novo seqüestro? A questão não é irrelevante nem irrisória. Devidamente discutida pode levar a conclusões muito graves.

Seqüestro, como sentencia o Aurélio (antes que chegue às livrarias o megadicionário do seu desafeto, Houaiss) é "aquele crime que consiste em reter ilegalmente alguém, privando-o de sua liberdade". Não há dúvida alguma que o mais popular dos Abravanel foi retido ilegalmente e privado de seu direito de ir e vir. Seu presumido seqüestrador não exigiu dinheiro mas extorquiu das autoridades, graças às duas armas apontadas para a sua cabeça, um salvo conduto para ser levado com vida até o cárcere.

Se a segunda ação deste que em breve será carinhosamente chamado pelos comunicadores de Fernandinho, Dutrinha ou Pintinho for enquadrada como seqüestro, quem ficará em maus lençóis, além da polícia civil paulista, será a imprensa flagrada num dos mais hipócritas arranjos da mídia brasileira desde os tempos da autocensura do regime militar.

Num surpreendente pool para sepultar a concorrência e a pluralidade, a parte maior da mídia da Paulicéia fez um pacto de silêncio em torno do seqüestro de Patrícia Abravanel. O pretexto foi o apelo de um pai, aflito pela sorte da filha mas que ganhou tremendo poder de persuasão porque veio assinado por um célebre empresário e apresentador de TV. O desejo de não prejudicar investigações e diligências policiais foram as razões secundárias que esta mídia alegou para justificar sua omissão. Mas como os veículos eletrônicos do Grupo Globo com o seu formidável poder de penetração não poderiam perder um prato deste tamanho (sobretudo porque envolvia o principal concorrente televisivo), a cortina ficou transparente ? perdeu todo o sentido.

Armou-se então no grande circo midiático um show extra: enquanto um número respeitável de mediadores, subitamente disfarçados em agentes da responsabilidade social, olhavam para cima e para o alto fingindo que nada acontecera, os demais ? liberados de quaisquer cuidados e constrangimentos ? botaram para quebrar.

Libertada a Abravanel Júnior, entraram no picadeiro os malabaristas e trapezistas e, como no tempo de Mao Tse Tung com o seu livrinho vermelho, tiraram do bolso os manuais de conduta espiritual para justificar o grande vácuo que deixaram no seu compromisso de informar. Para remendar eventuais danos na credibilidade, foram trazidos os mágicos e ilusionistas com as inevitáveis sondagens e pesquisas para provar o improvável: que ao longo de uma semana o cidadão que comprou um jornal ou revista, ligou o rádio ou a televisão ficou contentíssimo em não se informado. Sequer com uma notícia discreta.

Aqui entra a questão de como classificar a segunda ação de Fernando Dutra Pinto. Se da manhã de quinta até hoje a mídia brasileira está tonitroando em manchetes que Silvio Santos foi refém durante sete horas como será possível deixar de considerar que tratou-se de um segundo seqüestro? Alguém é refém num brunch, convescote ou coquetel? E se o episódio caracteriza-se inequivocamente como seqüestro, por que razão foi coberto com tamanho espalhafato enquanto o primeiro ? sua origem e razão ? ficou envolto num ridículo meio-sigilo?

Dirá o advogado do diabo: desta vez não houve apelo da família, não houve razões humanitárias, sinal verde para o estardalhaço. Não houve apelo porque o chefe da família estava seqüestrado e o resto, refugiado sem condições de tomar qualquer iniciativa. Retrucará o advogado do demo: também as autoridades não pediram silêncio. Evidente: as autoridades maiores estavam de certa forma seqüestradas, negociando com o seqüestrador.

E este assistia pela TV, junto com o seqüestrado, a cobertura pela televisão de tudo o que acontecia do lado de fora. Como no memorável filme Quarto poder (Mad City, de Milos Forman) em que o seqüestrador das crianças no museu (John Travolta) é sitiado pela mídia que se acotovelava na praça em frente. E se o bandido se assustasse com a imagem de um atirador de elite na tela do seu monitor e fizesse com Senor Abravanel o mesmo que fizera horas antes com dois policiais que lhe deram ordem de prisão?

Foi seqüestro, sim. Inconfundível. E a mídia o cobriu do jeito que sabe: ao vivo, em cores, berrante, reiterada e veemente. Só que agora o destino, os fados, o tal deus de Patrícia ou a audácia de FDP ? juntos ou separados ? mostraram que a mídia ainda não conseguiu encontrar o seu ponto de equilíbrio, seu padrão de responsabilidade. Pendurada num pêndulo doido, omite-se ou se assanha. Emascula-se ou exacerba. Evapora ou fumega.

Ao longo de sete séculos no cenáculo do mundo com ilustres teólogos, astrólogos, poetas, médicos, estadistas e financistas, os Abravanel acabaram prestando um grande serviço à mídia brasileira: mostraram que está nua. Pelada.

(*) Publicado no Jornal do Brasil, 1/9/01

    
    
                     

Mande-nos seu comentário