Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ser ou não ser antiamericano

PENSAMENTO ÚNICO

Claudia Rodrigues (*)

Vários colunistas do Jornal do Brasil, Estado de S.Paulo, Folha, Gazeta Mercantil e de sites têm escrito sobre a banalização do discurso antiamericano. Atacam professores universitários e outros jornalistas que mantêm colunas, só faltando chamá-los de comunas, de maneira pejorativa, como fizeram os militares no auge da ditadura. Esquecem, por razões que devem ser pessoais, suponho, de escutar o povo e ler mais sobre o islamismo e o único fundamentalismo que realmente ameaça o planeta: a política econômica baseada na indústria bélica e na nova corrida armamentista, que já começou debaixo dos nossos olhos e que têm como carro-chefe os EUA e seus aliados.

Esquecem, esses colunistas, de escutar o povo. Nos jornais e sites que dão espaço ao leitor para opinar, a maioria dos brasileiros demonstra um sentimento antiamericano brutal que, de fato, chega a assustar.

Susto à parte, é importante lembrar que na última semana saíram duas matérias no New York Times falando do Brasil. Uma trata do perigo de o governo brasileiro estabelecer uma hidrelétrica na Amazônia, projeto que, segundo o NYTimes, está para ser executado a qualquer momento e vai prejudicar a mata e os índios. Outra ressalta que o Brasil ainda pratica a tortura e coloca em dúvida a eficiência do governo em acabar com a prática. Nessa última matéria, os americanos esqueceram de citar que os policiais americanos também a praticam. Aliás, cá para nós, a polícia do planeta é mesmo um grande ponto de interrogação. O que significam essas matérias? Algum colunista já parou para pensar nisso?

Achei-as antibrasilianistas, independentemente do nosso governo neoliberalamericanista.

E o que significa a Bandnews ir ao ar proclamando que os EUA pretendem montar uma base militar na fronteira do Brasil com o Paraguai sem escutar qualquer autoridade brasileira sobre o assunto? "Os EUA estão estudando a possibilidade de instalar uma base militar no Brasil, na fronteira com o Paraguai que, segundo o FBI, estaria abrigando terroristas." Ponto, e passam para outro assunto.

E o gado-leitor?

E o que pode ainda significar "informações não-confirmadas pelo Pentágono", quando o Jornal Nacional ou o Jornal da Band dão alguma informação divulgada pelo lado de lá da guerra? Até agora não se ouviu alguém questionar as informações divulgadas pelo Pentágono.

Talvez a imprensa pudesse simplesmente divulgar as informações e as fontes, e ponto. Ou será que nós, imprensa brasileira, temos o dever de achar que o Pentágono é isento? É de rir dar ao Pentágono esse lugar maior. Não por ser americano, mas por ser um dos lados envolvidos diretamente.

Falando em guerra, há mesmo algo que não dá para entender em todas as emissoras brasileiras: os títulos do assunto, praticamente iguais em todos os sites, jornais impressos e jornais de TV. É a "guerra contra o terror". O título bolado pela CNN emplacou sem que alguém parasse para pensar se é mesmo isso, se é assim que se deve levar o gado leitor.

Sim, o gado leitor/espectador que não tem o direito de ver as conseqüências dos bombardeios, mas apenas o filminho do poder bélico. Nem vamos falar aqui de pernas perdidas e mortes, que evidentemente estão ocorrendo todos os dias. E isso é um problema de mão dupla. A CNN não divulga por motivos óbvios, e a al-Jazira não divulga porque o povo árabe, além de ser preso a um jogo de barganha e esconde-esconde, que todos conhecemos e que em tempos de paz é hilariante para os turistas que passam por lá, tem um imenso pudor, e não é dada a expor suas dores publicamente. O que é digno, próprio, mas vai contra a emissora nesse momento.

Medo sem explicação

A quem interessa que o Brasil passe a ser um local de terroristas islâmicos radicais? A quem interessa que o antraz venha parar aqui? À nossa imprensa? Nossos terroristas já existem, vivem nos morros, é o pessoal do tráfico, e também já temos nossos futuros terroristas: os sem-terra, que vão acabar perdendo a paciência de esperar pela reforma agrária, os professores do ensino público, que vão acabar perdendo a paciência de fazer greve contra um governo cínico e tantos outros representantes das mais variadas posições sociais, que não agüentam mais viver sobre o jugo da ditadura empresarial.

Por que a mídia precisa achar terroristas internacionais? Não seria melhor dar um pouco mais de voz aos nossos atuais terroristas e aos futuros, na tentativa de solucionar o problema em vez de deixar que infle? Que tal subir o morro e perguntar aos meninos por que furtam carros em vez de arrumar emprego? Que tal perguntar aos sem-terra por que não compram terras com fundos de microcrédito? Que tal saber quanto ganha e quanto precisa gastar, por mês, um professor de universidade pública?

Há bases militares americanas no mundo inteiro. O Persian Golf of America, antigo Golfo Pérsico, que o diga. E o que significa isso? Por que os americanos precisam se defender tanto do mundo se só foram atacados duas vezes e as duas por aviões e pilotos camicases? Alguém aí acredita que bases militares espalhadas pelos mais diversos países são mesmo obra construtiva de defesa? Não caberia uma matéria sobre estes assuntos para informar ao povo brasileiro, permitir que ele faça uma retrospectiva dos reais motivos dessa "guerra contra o terror" que tanto aterroriza a todos? E por Deus, por que a bombinha de algum antiamericano estudantil e bem brasileiro precisou ser analisada por agentes do FBI?

Povinho superlegal

Estamos bem na foto. Há um porta-aviões americano, que veio passear a troco de nada em nossa costa; estuda-se a possibilidade de instalar uma base militar na nossa fronteira com o Paraguai; já temos escritório do FBI em São Paulo; criou-se um dedinho unilateral da Nasa em Alcântara, local a que Brasil e brasileiros simplesmente não têm mais acesso e que, agora, depois de um acordo espetacular, pertence aos EUA. Isso é globalização, nações democráticas se entendendo, a América unida de ponta a ponta.

Ou é um salve-se quem puder e estamos de uma vez para sempre trabalhando de bandidos sem nem ao menos o direito de lutar por uma pátria livre de verdade? Sobre outras pessoas que escrevem a respeito dos EUA eu não sei. De mim posso dizer que não me considero antiamericana.

Acho os americanos superlegais. A comida deles, para um dia apressado, o jeitinho alegre, as piadas engraçadinhas, a organização de suas cidades, os filmes, ora adocicados, ora trágicos, cheios de heróis, que me dão sono quando tenho insônia. Tudo bem legal lá, dentro do país deles e vendido por um bom troco aos países que querem comprá-los para se divertir. Daí a enfiar goela abaixo toda a cultura e o pensamento deles no mundo inteiro é outra história.

Surpresas no forno

Lembro que aos vinte e poucos anos, quando viajei pela Índia, sentia-me muito mal quando indianos jovens se debruçavam sobre minhas calças jeans, chamando-me de americana, querendo trocá-las por coisas lindas que faziam. Naquela época eu entendi que o Brasil era aculturado. Um pouco mais tarde pude ver com meus próprios olhos a aculturação do Japão e da Tailândia.

Sinto tristeza ao perceber que meus filhos talvez não possam ver o Nepal que eu vi, a Índia que eu ainda vi, países totalmente diferentes dos do Ocidente, com valores que me fascinaram, me chocaram e me trouxeram tanta coisa boa apenas por serem diferentes.

O mundo talvez vá se transformar numa enorme aldeia sob o "american way of life", em que poderemos comer comidas de todos os países em todos os lugares, assistir a apresentações de danças de todos os países em todos os lugares, ver de tudo e experimentar de tudo em todos os lugares. E mesmo assim haverá um enorme e fúnebre buraco existencial, pois tudo não passará de performance.

A mídia vai abrindo as porteiras desse novo mundo, em que gato que nasce em forno não é mais gato: é pão.

(*) Jornalista

    
    
                     

Mande-nos seu comentário