Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ser ou não ser um voyeur

REALITY SHOWS

Marcio Santim (*)

Não é por acaso que os reality shows (espetáculos da realidade) são cada vez mais consumidos pela sociedade ocidental. Há um complexo processo psicossocial que propicia aos telespectadores o interesse por esses programas. Não seria possível neste artigo adentrar uma discussão minuciosa sobre o assunto, mas sim listar alguns apontamentos que poderão ser úteis ao esclarecimento de questões pertinentes ao tema.

Primeiramente cabe frisar que o interesse pelo conhecimento da intimidade de celebridades não é apenas um modismo ? temos, faz algum tempo, revistas especializadas nesse tipo de assunto cujo mercado tem crescido significativamente nos últimos anos, tais como Caras, Quem, IstoÉ Gente etc. Aliás, o nome desta última é muito sugestivo e mostra explicitamente a concepção bestial acerca das pessoas comuns, pois se apenas as celebridades presentes na publicação são consideradas "gente", o que seriam os demais meros mortais?

O programa Casa dos Artistas pode ser considerado a versão televisiva dessas revistas, pois além dos recursos técnicos constitutivos deste meio de comunicação, possui algumas nuanças na forma de produção. Por exemplo: no programa, os convidados estão, a princípio, num ambiente estranho, convivendo com pessoas que não fazem parte do seu círculo familiar ou de amigos; enquanto nas revistas aparecem retratados em suas próprias residências, ou viagens, freqüentemente em companhia de pessoas próximas.

De outra parte, a constituição do programa Big Brother, por se tratar da participação de pessoas que não são celebridades, aproxima-se mais daqueles sites da internet em que câmeras instaladas na casa de pessoas comuns permanecem filmando 24 horas por dia suas atividades.

Penso que este é o fator crucial da vitória nos índices de audiência do SBT sobre a Globo. A participação de celebridades faz a diferença. Por quê?

Porque esses ídolos são tidos como os deuses da nossa época. Hoje, esses deuses não são mais como na mitologia antiga, representados na imaginação através de mitos ou de colossos, nem ideais inatingíveis. Pelo contrário, desceram do Olimpo para ocupar um trono chamado mídia. É imprescindível para a sobrevivência dos ideais e valores do sistema capitalista que as celebridades os materializem seduzindo o imaginário das massas para uma identificação desprovida de razão.

Poucos contrapontos

A infantilização do psiquismo e a irracionalidade assumiram proporções astronômicas, pois grande parte das pessoas acredita que o comportamento apresentado pelo participante do programa revela como ele realmente é no seu dia-a-dia, na sua intimidade. Com olhar mais atento e crítico advirá a constatação que o mundo dos reality shows não passa de uma encenação, um programa editado e um jogo onde todos querem triunfar. Seu mundo é uma ilusão e sua realidade, forjada.

As formas de gozo psíquico nos dias de hoje revelam um caráter infantil. Observa-se uma regressão a fases arcaicas do desenvolvimento psíquico.

Mesmo que muitos saibam da artificialidade de tudo o que se passa atrás das portas, o desejo do público de espiar pelo buraco da fechadura constatado pela grande audiência de programas desse tipo é um dos elementos que confirma o regresso na busca de prazeres pueris.

Cumpre fazer, neste ponto, uma rápida distinção entre o voyeurismo que vamos chamar de "clássico" e a variante que hoje temos, a que chamarei "voyeurismo social". Na psicopatologia, o voyeurismo é classificado como uma parafilia (perversão) cuja característica essencial é a observação de pessoas se despindo ou tendo relacionamento sexual. Apenas o olhar, sem qualquer contato físico com o "objeto", torna-se o ponto culminante do prazer voyeurista. É controverso se, para caracterizar esta forma de voyeurismo, a pessoa objeto dos investimentos libidinais deve saber ou não que está sendo observada. Pelo que noto existem os dois casos, pois o exibicionismo (outra forma de parafilia) já existia e, assim como sadismo e masoquismo se entrelaçam, exibicionismo e voyeurismo complementam-se propiciando satisfação recíproca dos desejos. Se, em outras épocas, o voyeurista e o exibicionista tinham que se desdobrar para obter prazer em razão da sociedade ser mais repressora, atualmente ambas as tendências psicológicas contam com o total consentimento social.

Penso que é suficiente citar como indicativos desta nova constelação social os filmes pornográficos, os programas Big Brother e Casa dos Artistas, a revista Caras ? todas produções que movimentam milhões no mercado do entretenimento. O abrandamento e a liberação social com relação à erotização dos produtos veiculados pela mídia contribuíram de forma contundente para a ascensão desta nova forma de voyeurismo chamado "social" ? na qual, tal como no clássico, o desejo de ter supera o próprio ter.

Neste novo tipo não existe a primeira possibilidade, a de ver sem que alguém esteja de alguma forma se exibindo. A invasão da intimidade não causa culpa no observador, por ser consentida e lucrativa para aquele que se expõe. Além do prazer psíquico, o ganho é também é de ordem financeira.

Hoje é muito mais cômodo para a satisfação do desejo voyeurista ligar a TV e, no grande leque disponível, escolher algum dos diversos programas que exibem pessoas se despindo ou com o mínimo de roupa possível. Também é mais prático acessar os inúmeros sites do gênero na internet do que gastar dinheiro comprando uma luneta e passar horas na janela do tentando ver alguém tirar a roupa ou mantendo relacionamento sexual. Aliás, expor o corpo numa tonalidade erótica banalizada é o que participantes de Big Brother, Casa dos Artistas e de grande parte dos programas televisivos costumam fazer.

Não quero fazer um diagnóstico clínico, no sentido de que qualquer indivíduo consumidor desses produtos seja um voyeurista. Estou fazendo uma análise social e, portanto, mencionar que existe uma forte tendência do ocidente ao voyeurismo não significa que dou este rótulo a todos os indivíduos envolvidos. São coisas bem diferentes. Com certeza essa tendência social tem reflexos sobre a individualidade e cabe a nós, psicólogos, perguntar sobre quais são esses reflexos.

A mídia está explorando ao máximo essa tendência, e nela se encontram pouquíssimos contrapontos que favoreçam uma reflexão crítica acerca dos reality shows. Com certeza não foi somente a mídia que criou esse interesse pela incursão na esfera da privacidade, mas ela o alimenta, o faz proliferar e o utiliza como meio de obtenção de lucros.

Falta de diálogo familiar, solidão, isolamento social devido em parte a violência urbana, doenças sexualmente transmissíveis e falta de interação social também devem ser considerados na compreensão do voyeurismo social em que o virtual prevalece sobre o real.

(*) Psicólogo, mestrando em Psicologia Social pela PUC de São Paulo.