Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sexo & barulhos na vida de Kant

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ARMAZÉM LITERÁRIO

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JORNALISMO & LITERATURA

Voltaire Schilling (*)

Certo dia, o prefeito de Königsberg, o longínquo porto Báltico da Prússia Oriental, recebeu uma visita ilustre mas inesperada. Era Immanuel Kant, o filósofo da cidade que vinha fazer-lhe uma queixa. Haveria a possibilidade, argüiu o pequeno homem (ele media pouco mais de metro e meio), de o burgomestre fazer com que o presídio municipal, vizinho à morada de Kant, fechasse as janelas na horas das cantorias do presos? O barulho, alegou o querelante, era terrível, impedindo-o de raciocinar. Além disso, ele, como racionalista, não acreditava que aquele vozerio suplicante fosse deixado de ser ouvido pelo generosos tímpanos de Deus. O todo-poderoso, seguramente, garantiu Kant, os escutaria mesmo que as malditas janelas estivessem cerradas.

O estrago maior dava-se no fato de que aquele coral dos apenados atingia em cheio as suas "faculdades gerais de ânimo", provocando nele uma "sensação de desprazer" que conduzia a afetar gravemente a sua "faculdade de juízo", fazendo com que toda a "sensibilidade estética" dele viesse abaixo. Imagine-se a cara do pobre prefeito.

Uns tempos antes, Kant, já sexagenário, solteirão dado à neurastenia, envolvera-se numa hilariante batalha contra um outro vizinho seu em função de um galo estridente. O tipo teimava em cocoricar nas horas mais improváveis da madrugada. Kant fez de tudo para o homem livrar-se dele. Após ter submetido inutilmente o teimoso aos rigores implacáveis da dialética transcendental, ofereceu-se para comprar-lhe a ave. O vizinho, firme, resistiu com o galo embaixo do braço.

Para ele que, com uma disciplina de oficial prussiano, fizera do seu corpo uma precisa e meticulosa máquina de pensar, qualquer ruído tinha o efeito paralisante. Estancavam-lhe as engrenagens mentais. Esta obsessão pelo silêncio é que o levou a comentar num dos seus impenetráveis ensaios (Crítica da faculdade de juízo, 1790) que aqueles que recomendavam (isto é, os pastores e os padres) às pessoas que fizessem exercícios espirituais domésticos, acompanhados pela inevitáveis cantorias de hinos religiosos, "não calcularam o dano que aquelas orações ruidosas [e, por isso, geralmente farisaicas, acrescentou ele] provocavam na vizinhança, forçando a que os acompanhassem ou que simplesmente os obrigassem a parar de pensar".

Impertinência com barulhos é que, portanto, não faltou na vida de Immanuel Kant. Já no que toca ao sexo, sabe-se lá. Reparar esta lacuna, tão significativa, senão decisiva para o pensamento ocidental, foi objeto desta sátira que correu pelas praças recentemente intitulada A vida sexual de Kant, de um jornalista francês, herdeiro de Rabelais (outro que foi mordaz com os acadêmicos do seu tempo), chamado Frédéric Pagè, que ocultou-se no heterônimo de Jean-Baptiste Botul, um sábio por ele inventado, profundo conhecedor das "coisas em si" e dos "a priori" do pensador de Königsberg. E, claro, dos seus segredos de alcova, ainda que inexistentes.

Sobre isso, aliás, perdeu-se uma valiosa fonte de informações que seria Lampe, o que foi valet de chambre de Kant por 40 anos. Quando sóbrio, aquele ex-granadeiro do rei da Prússia acompanhava-o por toda a parte, com um guarda-chuvas sempre à disposição, inclusive nas discretíssimas visitas ao bordel local, onde Herr professor, um obcecado por questões de saúde e maníaco poupador de energias, fazia uma periódica concessão ao chamado da natureza. Mas o velho Lampe, um incorrigível amigo do trago, terminou por ser despedido e recolhido a uma modesta aposentadoria sem que lhe colhessem uma só palavra sobre possíveis traquinices do patrão.

A aventura mais costumeira de Kant, além das suas religiosas caminhadas diárias pelas ruas da cidade, era ir encontra-se com um grupo de amigos na casa de um deles, um comerciante inglês de nome Green. Lá chegando depois do almoço, encontrava o dono estirado no sofá da sala entregue ao cochilo. O filósofo não se fazia de rogado. Encolhendo-se também numa poltrona, punha-se a dormir.

Passado um tempo, mais dois outros conhecidos participavam desse estranho ritual, até que despertavam e punham-se a conversar sobre o mundo. Nem de longe poderíamos suspeitar que isso pudesse passar por uma tertúlia de sodomitas. Essa aproximação com seus companheiros de sesta e palestra é que fez com que ele celebrasse a amizade, colocando-a no centro das suas especulações do seu ensaio Metafísica dos costumes, de 1797, pois viu-a como resultado da coincidência do amor e do respeito. Dando, como bom alemão que era, e súdito do Rei Sargento da Prússia, ênfase ao "respeito" para que, segundo ele, "nem os melhores amigos envileçam-se entre si".

Farsa mesmo o próprio Kant parece ter testemunhado quando o velho Samuel Johnson lá na Inglaterra, um respeitado filólogo e renomado dicionarista, além de implacável homem de letras, revelou aos seus pares que o celebrado trabalho de um tal de James Macpherson, tido por um achado sério, não passava de uma fantasia. Desde que em 1765 aparecera em Londres um volume do The works of Ossian, provocara enorme sensação nos meios do nascente movimento romântico. A chamada "febre de Ossian", que se espalhou pela Europa inteira, chegou a Klopstock, a Herder e também Goethe, na Alemanha, que exultaram com o seu fervor sentimental.

Tratava-se, segundo Macpherson, de uma rara coletânea de antiquíssimos poemas de um honorável bardo celta, uma espécie de Homero escocês, que ele tivera a felicidade de encontrar e traduzir. O doutor Johnson, que devotava horror ao sentimentalismo e às descrições bárbaras sobre a natureza sombria ? enevoada e úmida ? que o livro abrigava, desmascarou-o mostrando a impropriedade da maioria das expressões que catou ao longo dos versos atribuídos a Ossian. O bardo galês, concluiu ele, deveria ser um fenômeno de paranormalidade, ironizou, porque usou palavras e expressões que surgiriam no inglês dez ou quinze séculos bem depois da sua morte.

Hoje tudo isso está esquecido pertencendo ao folclore do mundo das letras, como provavelmente será o destino desse divertido relato da vida sexual (reafirma-se, inimaginável) do velho Kant. Quanto a Edunesp e a revista Veja terem aceito a brincadeira, inadvertidamente ou não, é bom lembrar que uns anos atrás a revista Stern, então o mais famoso semanário alemão, chegou a publicar várias páginas de um suposto Hitlers Tagebuch, o Diário de Hitler, autenticidade que lhe havia sido garantida pelo historiador Hugh Trevor-Ropper, tido até então como um acatado especialista no Führer dos nazistas, não demorando para que provassem que tudo não passara de uma criação de falsários.

(*) Historiador

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