Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

São Tomé, que bobo!, ele acreditava no que via

TELEJORNALISMO EM CLOSE

Paulo José Cunha (*)

Charge deliciosa da Folha, outro dia, mostrava um desenho da Casa Branca e um diálogo que cito de memória: "Tudo pronto para o ataque?" "Só falta finalizar a vinhetinha para transmissão dos flashes ao vivo". Até o público dos big brothers já percebeu que as guerras deixaram de ser fatos políticos e se transformaram em fatos midiáticos. As batalhas são mais de representação do que de efeito prático, a não ser pelo objetivo estratégico a ser atingido. Não contam mais pelo número de soldados mortos, instalações destruídas ou território conquistado. Só valem pelo efeito-demonstração. Daí porque quase não se cogita dos chamados "efeitos colaterais" (eufemismo cretino para a eventual morte de civis, a contaminação de recursos naturais, a destruição de monumentos históricos e a criação ou o agravamento da miséria das populações atingidas). "Efeito colateral" é detalhe insignificante.

Muito mais importante do que alguns milhares de civis que poderão virar carniça é a repercussão internacional da ação. Tanto assim que o New York Post anuncia que o presidente Bush já se apressa em invadir o mundo árabe com a versão americana da realidade e assim reduzir o antiamericanismo naquele pedaço do mundo. Está pedindo 30 milhões de dólares ao Congresso para montar um canal de televisão do governo americano. Se a intenção é enfrentar a penetração da al-Jazira, sediada no Catar, Mr. Bush já pode começar a pensar noutra estratégia (aqueles aviõezinhos com faixas tipo "I love USA" iam bem). Porque os árabes saíram na frente e prometem botar brevemente no ar o al-Arabia, um novo canal via satélite 24 horas. Bala de cá, bala de lá. Ou melhor: informação de cá, informação de lá.

A situação deixa clara a opção pela versão (função de mídia) em detrimento do fato (função de estado). O que vem ocorrendo é uma espetacular inversão da ordem "natural" que imperou até meados do século passado, quando o mundo acompanhou a 2a Grande Guerra pelo rádio e através dos relatos de heróicos correspondentes ilustradas com radiofotos. Agora, a mídia constrói a guerra, não está preocupada em transmiti-la. Guerra que nem ocorre mais no campo de batalha, cenário obsoleto na era dos mísseis teleguiados de longo alcance.

Máximo requinte técnico

No admirável mundo atual, a guerra é na mídia. A força se impõe pelo impacto das bombas, mas só se consolida pelo impacto da versão. Uma versão outorgada pelos comandos militares, que a entregam de bandeja aos repórteres de guerra, todos convertidos em miseráveis cães de Lázaro. Para isso, cuida-se com riqueza de detalhes dos chamados fatos midiáticos, ou seja, acontecimentos criados e monitorados simplesmente para serem registrados pela mídia e produzirem efeitos junto à opinião pública. É só ver rapidamente as imagens de TV e fotografias distribuídas pelas agências americanas antes mesmo do ataque acontecer.

A construção do sentimento de apoio ou de repulsa a uma causa não se faz apenas pela via editorial. Como não estou escrevendo apenas para coleguinhas, que sabem disso tanto ou mais do que eu, vou repetir: informação não é apenas o que se vê, se lê ou se ouve mas, também, o que não se vê, não se lê ou não se ouve. Mais do que isso: informação é o que querem que a gente veja, querem que a gente leia ou querem que a gente ouça. Pior ainda: informação pode e tem sido preferentemente (sobretudo em períodos de grandes comoções como o 11 de setembro) o que alguém manipula de acordo com certas conveniências para que a gente veja, leia ou escute. E, a partir disso, possamos montar nossa tábua de valores, fixar nosso ponto de vista, nossa opinião.

Ou seja, de preferência, a tábua de valores, o ponto de vista e a opini&atatilde;o de quem produziu a informação. Em brasiliês castiço: informação é o que faz a cabeça das pessoas. No mais das vezes não está na linha nem na entrelinha, na foto nem na imagem, mas, sim, no recorte da realidade escolhida para ser abordada. É possível aceitar que os meios de comunicação não decidem como o público deve pensar. Mas, se decidem sobre o que o público deve pensar (como afirmam os estudiosos do agenda setting) então já temos meio caminho andado. Por isso é tão importante caprichar na vinhetinha antes de começar esse troço, senão a guerra pode sair mal na foto, digo, na telinha. Todo mundo sabe que transformar gente em carniça pode. Eles até incentivam, desde que se faça tudo com o máximo requinte técnico para que renda uma imagem bacana, favorável à "causa".

(*) Jornalista, pesquisador, professor da professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>