Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sob as ordens de Mãe Joana

CASA DOS ARTISTAS

Deonísio da Silva (*)

A Casa dos Artistas, no dizer de Pedro Bial, aos olhos do mundo civilizado é o triunfo da Casa da Mãe Joana. Em 1327, a rainha Joana, então com 21 anos, organizou os bordéis de Nápoles, mas pegou a fama injusta de não saber manter a ordem na própria casa.

Será que é isso mesmo? Isto é, que a Casa da Mãe Joana triunfou e que Pedro Bial acertou na mosca? No Show do Milhão, outro sucesso da Casa rival, o governador do Rio de Janeiro não sabia o que era algesia. Não sabe correlacionar com a dor os analgésicos que certamente toma. Isso ainda vai dar muita dor de cabeça a quem quer ser presidente da República. O consolo é ver e ouvir ? ver e ouvir, esta é a questão ? o próprio dono do SBT pronunciar "Hejel" em vez de "Hegel" e incorrer em outros indícios de sua incultura, encobertos por sua grande esperteza. Ele não sabe e pergunta a quem deve saber ? políticos, universitários, concorrentes às graças que oferece na missa, digo, no show dominical.

Demoremos um pouco no tema, caros internautas. Por favor, acompanhem esse modesto aprendiz de feiticeiro por outros ínvios caminhos. No Brasil, dois ou três municípios já acabaram com as respectivas reservas analfabéticas. Em mais de 5.000 outros, elas garantem os padrões culturais, aí incluídos modelos de usos e costumes impostos à maioria da população. Esses verdadeiros exércitos de ágrafos ? ou analfabetos autodidatas, como dizia o poeta Mário Quintana quando se referia a quem aprendeu a ler, mas nada lê ? garantem o triunfo da esperteza na manipulação do audiovisual. Nesses trópicos a Galáxia Gutenberg é pouco habitada e também nela incorre-se nas tentações de manipulação da cabeça dos outros, embora haja espaço para as devidas vacinas, isto é, para a pluralidade de opiniões. Mas enquanto nosso ano letivo tiver 200 dias de cinco horas, será muito mais difícil romper o círculo de ferro no país onde o próprio presidente da Republica diz que o professor é um pobre coitado. Ou, quem sabe, um pobre, coitado. Ou um pobre-coitado como equivalente de pobre-diabo, personagem freqüente nas leituras francesas de Sua Majestade.

Na televisão, as coisas ocorrem de outro modo. É como se você saísse do Maracanã e fosse jogar futebol de salão com as mesmas regras. Foi o que tentou e conseguiu o esperto Sílvio Santos. Ele transgrediu regras internacionais de copyright num mundo globalizado e pirateou, sob aplauso de formadores de opinião, o programa original criado na Holanda. "Aplaudo qualquer coisa que vá contra a Globo", escreveu um crítico que confundiu seu ofício com a satanização do que o incomoda. Infelizmente, esse tipo de juízo infesta comentários também em outras áreas, não apenas quando o assunto é a televisão. E para vencer o inimigo ? a TV Globo foi apresentada como o Grande Satã ? vale qualquer coisa, até mesmo o elogio do plágio.

Quando nos arrependeremos de desprezar o trato justo, a conversa clara, a franqueza, e cultuar o jeito brasileiro ? ou será jeitinho? ? que substitui a justiça?

A aparência e a essência

Ah, mas houve recurso jurídico. Casa dos Artistas ficou fora do ar dois dias. Sim, é verdade. Só que a questão judicial foi tratada pela mídia, não como disputa por garantia de copyright, mas como luta do coitadinho do segundo lugar contra a líder hegemônica, de Davi contra Golias.

Em resumo, o SBT goleou outra vez. Não foi a primeira nem a última vez. Na primeira, aliás, houve um cochilo da TV Globo. Disputava-se a final de um campeonato nacional no país do futebol no recente 1995, dia 22 de junho. O SBT obteve 42 pontos no Ibope transmitindo Corínthians x Grêmio, dois times de grandes torcidas. Casa dos Artistas, que estreou dia 28 de outubro e terminou domingo passado, 16 de dezembro, chegou a picos de 55 pontos, enquanto a TV Globo amargava modestos 15.

Modestos, no Brasil. Em qualquer outro país o índice não seria lamentado, mas celebrado. Não bateu, porém, O Clone, novela cujos ingredientes seguem o modelo de Janete Clair, Dias Gomes e Gilberto Braga, autores que consolidaram o gênero narrativo brasileiro por excelência, substituindo o folhetim dos jornais pelo folhetão eletrônico, de maior alcance e menos profundidade, condição para o sucesso de empreitada no meio escolhido. Os olhos que vêem, não são os mesmos que lêem. Aliás, só na aparência é que são. E se aparência e essência fossem a mesma coisa, para que a ciência, para que o comentário?

Rara precisão

A globalização trouxe-nos a era da esperteza em grande escala. Incubado, porém, no mesmo organismo que nos pluga com todas as aldeias do mundo, tornando um mundo inteiro uma aldeia apenas, está o germe das transformações inevitáveis. Não se trata de uma dominação pela imagem que garanta o conservadorismo ad aeternum. Ao contrário, todos precisam mudar. E com velocidade cada vez maior. A TV Globo sentou-se no trono do Fantástico e reinou absoluta por um tempo que parecia eterno. Parecia, mas não era. O grande mercado perdeu fatias consideráveis para a quitanda. O shopping permitiu a volta da bodega, da vendinha que tinha o que o cliente precisava, não apenas aquilo que era obrigado a comprar.

O cliente da televisão brasileira queria ver pessoas famosas em situações cotidianas. Os famosos parecem imaculados, são apresentados como invulneráveis às lutas que o brasileiro trava todos os dias no varejo do cotidiano. Na Casa dos Artistas, pelo buraco da fechadura, Ivo viu a uva, isto é, aprendeu e comprovou que eles são de carne e osso, brigam, choram, trapaceiam, tentam impor limites éticos uns aos outros, enfim representam o público num grande parlamento eletrônico com poucos candidatos e milhões de representados.

No fim, o Brasil dos grotões triunfou outra vez, empurrando o Brasil moderno para a direção que os grotões têm no horizonte. Foi uma prévia das eleições presidenciais, um grande laboratório. Os marqueteiros políticos certamente estão examinando o corpus gratuito que o SBT lhes ofereceu para pesquisa. Parecia que Supla seria o vencedor, mas deu "essa coisa da mulher", como sintetizou em momento de rara precisão o presidente Fernando Henrique Cardoso. A expressão, nascida da pressão de entrevistadores competentes, vale tanto como sua tese sobre o racismo no Brasil meridional. Venceu a mulher, venceu a atriz gaúcha Bárbara Paz.

Abrir as janelas

No futebol de salão jogado segundo as regras do "glorioso esporte bretão" nos estádios monumentais vence "essa coisa da mulher". As eleições presidenciais não serão disputadas no Maracanã, nem no Morumbi, no Mineirão ou no Beira-rio. Serão disputadas na telinha, no mesmo terreno onde "essa coisa da mulher" derrotou o favorito, filho de um dos melhores senadores do Brasil e da prefeita da maior cidade brasileira, ora divorciados, mas juntos na festa de encerramento da Casa dos Artistas, ambos se comportando também como artistas, isto é, representando, sabendo das câmeras.

"Quando Fernando Henrique for conhecido em Sapopemba, eu terei ganhado a eleição", profetizou Jânio Quadros ? este entedia de votos, de público, sabia claramente a quem se dirigia. FHC perdeu para JQ. Não foi prefeito de São Paulo, mas aprendeu com a derrota, e a lição tornou-o presidente do Brasil. Como? Chegando às outras Sapopembas, conduzido por outros partidos cujos ideários eram bem diferentes dos do partido que o patrocinava.

Na Casa dos Artistas em que se transformou o Brasil, todos estão de olho "nessa coisa da mulher". Não são necessárias muitas metáforas. Marta Suplicy venceu em São Paulo recentemente, Roseana Sarney venceu no Maranhão e lidera o Ibope na corrida presidencial para saber quem vai vencer na grande Casa dos Artistas. Não porque o público seja artista e sim porque os eleitores sabem que os políticos, esses sim, são uns artistas.

Pensando bem, "essa coisa da mulher" é o melhor que poderia acontecer no patriarcalismo brasileiro. Gilberto Freyre morreu. Que outros, como Carlos Guilherme Mota, compareceçam ao tema com suas luzes. Como Goethe às portas da morte, bradamos por mais luz. Abramos outras janelas. Nem que sejam as dos Windows.

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são Os Guerreiros do Campo (romance) e De Onde Vêm as Palavras.