Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Sob o reinado da mídia

Pergunta – O Sr. fala muito sobre a “mediatização” no mundo contemporâneo – “mediatização” dos atores, dos eventos. Que se deve entender por isso? Que é “mediatização”?

Resposta – É a generalização da famosa frase atribuída aos políticos mineiros: “A versão vale mais do que o fato”. O problema, numa sociedade como a nossa, toda impregnada de comunicação – e uma comunicação não direta mas quase sempre indireta -, é que não basta fazer uma coisa, digamos boa. É preciso que essa coisa seja transmitida e percebida como boa. Isso tem ainda mais importância quando se passa a viver num mundo virtual, como é grandemente o nosso – deduz-se que algo vai acontecer, e antecipa-se. Nesse mundo, os atores – aqueles que produzem o fato social – continuam a existir, mas eles não bastam. É preciso que haja uma sintonia entre ator e a mídia. Não se trata de uma ação em que um lado é ativo e o outro é passivo. Nenhum lado aqui é só ativo e o outro é passivo. O ator não é “vítima”, entre aspas, de uma conspiração da mídia, nem a mídia pode fazer o que bem deseja. Isso tudo tornou as coisas muitíssimo mais complicadas. Por que hoje, para governar, é preciso fazer sondagem de opinião pública? Para saber como as coisas estão sendo percebidas. Não basta ter feito algo, nem alguém dizer que você fez. É preciso saber como a população sentiu sua ação, como ela a leu.

P – Sendo a mídia, como o próprio nome indica, uma intermediária, uma transmissora, qual o papel ativo que lhe cabe?

R – Um papel importante é recolocar as pessoas e as coisas em seu contexto. Como vivemos, num mundo crescentemente complexo – e, portanto, crescentemente difícil de ser entendido em seus meandros -, restabelecer o contexto é um papel fundamental desse intermediário que é a mídia. A maior distorção que pode haver – e que há, consciente ou inconscientemente – não é a mentira, é a falta do contexto. Quando se tira a informação do contexto, quem a recebe não fica situado. Estamos chegando ao paroxismo da descontextualização, com a informação on-line, em tempo real. Quando é em tempo real, é tudo fragmentado. Os que têm os quadros mentais correspondentes repõem a informação nesse quadro mental. Quem não tem, fica perdido. E não se tem quadro mental sobre tudo. Mesmo pessoas bem informadas muitas vezes não são capazes de entender o significado de informações que lhes chegam fragmentadas. Neste nosso mundo, em que tudo é mediatizado, o papel da mídia é totalmente político. Ela pensa que é objetiva, neutra, mas não é. É política.

P – Por quê? Ela toma posições?

R – Não, não no sentido partidário. Às vezes acho até que seria preferível que fosse, porque aí se poderiam identificar mais facilmente o contexto e o significado das coisas. Vou dar um exemplo simples. No meu gabinete, aperto toda a hora um botãozinho no computador para saber das notícias. Se o título me interessa, aperto de novo a tecla e leio a notícia. Um dia, li: “Economista fulano disse tal coisa”. Aperto a tecla, e o tal economista expõe a posição dele. Ocorre que ele não é apenas um economista – é o sócio de um fundo. Como essa informação não passa para o público, fica parecendo a opinião desinteressada de um técnico, mas na verdade ele está defendendo um interesse.

P – Casos como esse não são uma exceção?

R – Admito que o político tem mais dificuldade de esconder seu interesse. A mídia já descobriu que, nesse caso, tem que desmistificar. O político é um ser visado e, portanto, tem sua ação mais limitada, nesse sentido. Ele até está sendo o tempo todo posto em dúvida pela mídia. Quem formalmente não é político, ou aparece como não sendo, ou não tendo interesse a defender – e todos têm -, é mais capaz de usar os mecanismos de mistificação. Os próprios profissionais da mídia às vezes aparecem como neutros e objetivos sem sê-lo – e há casos em que até se crêem, honestamente, neutros e objetivos, e não são. Este é um mundo novo, em que não se pode mais separar a política da comunicação. Nesse sentido, todos são políticos, quer dizer, todos os que aparecem na mídia – os atores políticos, os atores econômicos, os membros da intelligentsia. E parece que todos se dirigem a um público que não conhecem bem e que supõem capaz de engolir qualquer coisa.

P – E não engole?

R – Não engole. Por mecanismos que não conheço, a população seleciona as coisas à sua maneira. Como é que as pessoas decodificam o conjunto de informações? Tenho visto poucos sociólogos ou psicólogos dedicando-se a essa questão, que é fundamental. E a verdade é que elas decodificam. Sempre me surpreenderam certos personagens, no passado, quando o mundo era menos mediatizado. O que mais me surpreendeu foi Jânio Quadros, porque ele farejou com muita acuidade esse novo mundo.¹ Dava a impressão – a nós, que éramos contra ele – de que encenava uma farsa. E até certo ponto era isso mesmo. Mas, por outro lado, era uma manipulação. Ele sempre brigou com a mídia. com suas histrionices, de alguma maneira – acho que intuitivamente -, ele anulava o efeito negativo da crítica da mídia e emitia sinais que iam direto à população. A mim parecia extraordinário ele andar de pés cruzados, vestir-se de japonês, comer sanduíche nos comícios, exibir a caspa nos cabelos. Eram símbolos toscos, mas eficazes, de comunicação com a massa.

P – O nome disso não é “demagogia”, a velha demagogia?

R – É, isso é velho, é do passado. Hoje, não funcionaria. Mas, naquele tempo, quando começou tudo, com os nossos chamados “populistas”, funcionava. O Jânio anulava o efeito negativo, destrutivo, que a mídia poderia exercer sobre ele brigando com ela e mandando símbolos que, embora toscas, a calavam. Assim, ele desacreditava eventuais críticas que apontassem para o ridículo de seu comportamento a farsa que ele representava. Nem todos os populistas iam por esse caminho. Getúlio tinha um estilo completamente diferente. Getúlio jamais fez uma concessão em nível pessoal, nem nos discursos, à demagogia. Quando se lêem hoje os discursos do Getúlio, ou se ouvem gravações deles, percebe-se nele um político tradicional. Mas também ele soube usar certos símbolos. Por exemplo, o charuto, que era o símbolo – e ainda é – de ostentação, de riqueza e de distância,. Ele o transformou num símbolo, digamos, de pai longínquo. Também deixava que se criasse uma imagem simpática de sua pessoa ao estimular músicas sobre ele, no Estado novo – falando do “Gegê”, do “baixinho” etc. Naquele tempo, como não havia ainda a mídia como é hoje, sempre pronta a desmistificar, só ficavam indignados os bem-pensantes. A população, não.

P – O mundo ainda não estava mediatizado…

R – Estávamos ainda nos primórdios desse tipo de relacionamento social via mídia que temos hoje. Isso tudo mudou muito porque a massa de informações é muito grande os meios são outros. Qualquer desses caminhos hoje cairia entre o patético e o ridículo. Ainda assim, o Collor, por exemplo, descobriu algumas fórmulas de comunicação, como usar camisetas com slogans ou transformar os “marajás” em alvos.

P – E o senhor, descobriu alguma fórmula?

R – Ainda estou tentando… Já vou falar sobre mim. Mas o Collor conseguiu algum sucesso nesse gênero, e a mídia de alguma maneira acabou sendo vítima desse estilo. A mídia precisa de heróis ou de vilões. Precisa simplificar tudo numa pessoa, o que facilita o trabalho de alguém como o Collor.

P – E no seu caso?

R – Eu procurei fazer outra coisa. Pode ser que eu perca, mas minha aposta é parte do que eu disse no início: acho que o número de informações aumentou e que o grau de compreensão também aumentou. Nos anos 60 e 70, toda a teoria de comunicação era de que a mídia alienava. Era o reforço da ideologia dominante e, sendo assim, a classe dominante se perpetuava pela mídia. Isso não é verdadeiro. Nunca aceitei – porque não aceito que o receptor seja passivo – essa história de que a mídia leva à alienação. Aumentou o grau de informação das pessoas, assim como seu interesse e capacidade de seleção. Então, o que preciso é explicar. Se Tentar ser populista, vou perder, porque não consigo, não é o meu jeito. Não consigo fazer um papel histriônico. O que poderia usar é da ironia, que é mais afim com meu estilo. Mas a ironia é uma arma perigosa. Ela faz sucesso no pequeno círculo intelectualizado. Na massa, parece presunção. Então, não posso usar essa arma. Posso usar o bom humor, e uso, porque tenho bom humor. Posso brincar, não levar as coisas a sério de vez em quando, quebrar um pouco o formalismo das situações. Mas o importante, mesmo é a capacidade de explicar, e a ela é que mais tenho me dedicado. Em lugar dos símbolos, que jogam para o ar alguma coisa que não se entende bem, eu jogo com o entendimento. Penso sempre: “Tenho que me fazer entender bem”. Por exemplo, se fosse explicar as medidas baixadas agora, explicaria de outra maneira.

P – O senhor está se referindo ao pacote de medidas para contrabalançar a crise das bolsas e os ataques especulativos à moeda… O senhor explicaria de outra maneira com relação a quem? Aos ministros incumbidos de anunciá-las?

R – Sim. Explicara mais didaticamente, de maneira menos técnica.

P – Por que o senhor não explicou, então?

R – Porque sou presidente da República. Não cabe a mim. Não posso me expor toda hora. Quando era ministro da Fazenda, não saía da televisão e do rádio. O Ricupero também não. Mas o presidente não pode, porque isso desgasta e, quando se precisar dele, sua presença não terá mais o mesmo impacto.

P – Como o senhor reage ao tratamento que a mídia lhe dá?

R – A primeira coisa que procuro fazer, conscientemente – pelo menos conscientemente, porque inconscientemente pode ser que aja de outra forma -, é nunca considerar a mídia como adversária, nem conspiradora. Sempre procuro me colocar nessa visão. Distorceu? Eu penso: “É porque não sabem contextualizar, não se habituaram a contextualizar “. Claro que há coisas de que não gosto. As perguntas para colocar casca de banana no caminho, por exemplo. A mídia, não só aqui, acha que ilumina melhor a realidade pegando não só a fraude mas mesmo a possível fraude. Quer dizer, mesmo que não seja fraude, mas, quem sabe, possa eventualmente vir a ser. Também ocorre de freqüentemente analisarem minhas intenções.

P – Quando ocorre isso?

R – Digo sempre, brincando: vou ler os jornais para saber o que estou querendo fazer. Freqüentemente, lê-se: “FHC resolveu..”. Resolvi nada. A questão nem chegou a mim. Bem, não adianta deblaterar contra isso. desmentir não resolve, porque, cada vez que se faz um desmentido, vêm dez outros argumentos para mostrar que não, que estava certa a afirmação. Como temos um jogo de poder – e a mídia é parte do poder – ela está sempre disputando comigo. Disputando poder – comigo, com o Executivo, com o Congresso, com o setor econômico-produtivo. A mídia não fez sua auto-análise, mas ela é, sim, parte do poder. Por isso acho que essa neutralidade é um engano. Ela está brigando também por um pedaço do poder. Ou, talvez mais precisamente, por sua influência nos mercados, na sociedade, na cultura, quase se instituindo em árbitro do bem e do mal.

P – E as frases que dizem que o senhor disse e que o senhor diz que não disse? Por exemplo: “Esqueçam o que escrevi”.

R – Ah, não, essa eu nunca disse.

P – E por que dizem que o senhor disse?

R – Alguém achou que eu havia mudado de posição e que deveria ser criticado por isso, e então inventou essa frase. Quem? Não sei. Foi na Folha. O Frias gostou da frase – ele me disse que gostou. Ele disse que achava fantástico alguém dizer isso. Pode até ser, só que eu não disse, nem penso assim. Isso derivou de um encontro em São Paulo, num restaurante, quando eu era ministro do Exterior. Havia vários empresários. Lembro-me de que estavam lá o Setúbal, o Celso Lafer, o Bardella. O Celso Lafer fez uma pergunta e eu disse: “Celso, você, que escreveu tanto, sabe que, muitas vezes, quando se está numa função pública e vai se ver o que escreveu, conclui-se que não era bem assim”. A frase foi essa. Contada por terceiros, virou uma frase forte e contra mim.

P – Mediática?

R – Mediática, exatamente. Quando uma frase dessas cola, não adianta. Desminto e não adianta. Os adversários vão usar porque acham eu a frase me desmoraliza. Outros acham formidável eu ter mudado de opinião, e também vão usar. Também não ligo muito para isso não.

P – Mas o senhor não tem contradições?

R – Todo mundo tem algumas. Acho que tenho poucas. Se for ler o que escrevi nos anos 70, não é muito diferente do que digo hoje. Não vou negar que o mundo e que também mudei, mas não esqueço o que escrevi. O modo fundamental como eu via o que estava acontecendo no mundo – na questão da globalização, por exemplo, e já conversamos sobre isso – é o mesmo. De qualquer forma, às vezes as frases não são verdadeiras, mas são boas, assim como às vezes são verdadeiras, mas são ruins. Não adianta brigar – não com o jornalista, ou com a mídia, mas com o mecanismo de poder no qual estamos inseridos. Você tem que ganhar dele, não brigar.

P – Como se faz isso?

R – Você tem que fazer com que sua posição avance, do ponto de vista político. É claro que, do ponto de vista intelectual, você discute: “Não disse isso, disse aquilo”; “Cadê a prova?”. Mas não é esse o mundo mediático. Isso é geral, ocorre no mundo todo. Na reunião ibero-americana, na ilha de Margarita, o Caldera, presidente da Venezuela, que é um homem de cultura, um intelectual, pôs-se a defender uma tese chamada “informação veraz”. Cheguei à reunião e lá estava o Caldera, no discurso de abertura, numa diatribe enorme em defesa da informação veraz. Num primeiro momento, pensei: “Quem pode ser contra a informação veraz?”. Não obstante, o discurso tinha sua razão de ser, porque a imprensa, a sip etc…, desde que falou nisso pela primeira vez, estavam achando que ele queria censurar. Ele estava explicando que não era isso, e argumentava, naquele discurso, com seu passado de democrata – mas não adiantou. Ao propor a “informação veraz”, o Caldera ficou carimbado como um homem que quer calar a boca da imprensa. É poder que está em jogo. Evidentemente, a questão proposta por ele é complicada: quem julga o veraz? Por isso se diz que é censura. Minha posição é que não se tem que julgar nada, não á como colocar nenhum mecanismo de seleção da informação. Você tem que ter multiplicidade de canais de informação, e acesso variado a ela, e capacidade de lidar com essa multiplicidade.

P – Os políticos e outras pessoas que aparecem na imprensa freqüentemente se queixam de invasão de sua vida privada. Para o senhor é clara a fronteira entre público e privado, quando a imprensa joga suas luzes sobre um governante ou um candidato?

R – Invade-se a esfera privada quando se exploram aspectos que não têm conseqüência sobre suas ações como homem de governo. Se vou passar férias aqui ou ali, não digo que não se deva noticiar na televisão, mas isso não traz conseqüências. Então, há aí uma fronteira. As relações de família, os meus filhos… Se eles tiverem função pública, ou se estiverem usando a minha função pública para interferir em alguma coisa, então há razão para vasculhar suas vidas. Senão…

P – Muitas vezes, não é com a intenção de denunciar ou vigiar que a imprensa cobre o presidente e sua família. É para mostrar como é a vida do rei.

R – Aí, acho normal. Mas tem que haver respeito pela família do presidente.

P – Quando sai alguma coisa sobre seus filhos, como o senhor reage?

R – Depende do que sai. Por exemplo, hoje saiu uma notícia sobre meu filho, sobre quem ele estaria namorando. A Ruth até tinha perguntado isso ontem, aqui em casa.Eu não sei e ela não sabe. Pode ser verdade, pode ser mentira, mas não importa. Agora, meu filho não tem nada a ver com o governo. A notícia dizia que ele trabalha na Light, que foi privatizada. Só que ele trabalhava no grupo antes da privatização e antes dos atuais donos. Não tem nada a ver com a privatização, portanto. É pura insinuação. Então, numa notícia assim, joga-se com uma certa ambigüidade, como se houvesse uma eventual podridão. Isso a mim não chega a abalar, mas a Ruth sente mais do que eu, sempre quer que eu desminta.

P – Tirando-se uma possível maldade nessa questão de ele trabalhar na Light, o fato de um namoro de seu filho virar notícia não é porque existe curiosidade em torno de sua família? Isso não é normal, em se tratando da família do presidente?

R – Não acho isso grave. Mas há lados que são desagradáveis. Por exemplo, minha filha Beatriz fez uma operação – uma operação delicada, mas, enfim, não grave. Fui a São Paulo. Ficaram loucos, porque não disse aonde iria. Não queria que a imprensa perturbasse. Depois disso saiu com minúcias a descrição da operação. Onde é que foi, como é que foi. Aí, acho um exagero. Noticiar que foi operada, tudo bem,. Mas transformar essa operação num objeto de consumo, só porque é a filha do presidente, já é um exagero.

P – O senhor parece ter dificuldades em distinguir até onde se pode ir. Dizer que ela foi operada, pode. Já detalhar a operação, não.

R – Esmiuçar, contar detalhes, para quê? Não acrescenta nada, é mórbido. Outro dia a Beatriz foi defender tese de doutoramento. Nós aqui somos pouco dados a transformar em espetáculo as coisas normais da nossa vida. Então, não fui ao doutoramento, porque, se fosse, virava um evento a atrapalhava tudo. Só fui ao jantar. Em outros momentos precisamos de paz. Tiram-se férias de dois ou três dias – e todo mundo vai atrás. Alugam helicóptero, voam em cima, fotografam. Não se pode estar de roupa de banho. Aí acho que deveriam ter respeito. Não é respeito ao presidente, mas ao descanso de qualquer ser humano. Qual é o proveito disso? Havia uma mania de tirar fotografia da Ruth de short. Para quê? Não é grave, mas ela não gosta, nem eu.

P – Isso não é conseqüência inevitável da sociedade mediatizada? Nos Estados Unidos essas coisas acontecem em uma escala muito maior. Quando o casal Clinton levou a filha à Universidade Stanford, onde ela estudaria, houve ampla cobertura de imprensa.

R – Para a menina deve ter sido terrível. Os Clinton manejam bem essa situações. Os dois, tanto Clinton quanto Hillary, entendem dessa sociedade mediatizada, e usam esse entendimento de maneira adequada. Para a menina deve ser terrível. Meus filhos já são maiores, e não reclamam. Eles se queixam da segurança. Disso ninguém gosta. Agora mesmo a Bia vai para Buenos Aires. Ontem queriam que eu assinasse uma autorização, para um segurança ir com ela. Eu disse: “Não precisa, não precisa. Ela vai a Buenos Aires, para um compromisso acadêmico”. Você sabe o que significa estar em uma reunião científica com um guarda-costas? Não pega bem. Ela fica louca com essa história. A Ruth, nem se fala. Eu não reclamo. Faz parte. Não estou sozinho nunca.

P – Nos Estados Unidos, um pré-candidato muito bem cotado no Partido Democrata, Gary Hart, teve sua candidatura inviabilizada porque foi flagrado em uma aventura extraconjugal. A justificativa da imprensa, ao defender a publicação da notícia, é de que isso revela o caráter da pessoa, e portanto tem a ver com a maneira como essa pessoa administraria os negócios públicos. O senhor concorda?

R – Não. Isso é tão variável e tão hipócrita…Provavelmente revela mais do caráter de quem fotografa do que do fotografado. Esse comportamento pode ser revelador da maneira de gerir os negócios públicos, dependendo das circunstâncias. O sujeito faz de que maneira? Com que propósito? É habitual? Com quem?

P – Um livro recente sobre John Kennedy atribui a ele uma insaciável voracidade sexual…

R – Será que era verdadeira? Atribui-se tanta coisa aos homens públicos…

P – O autor do livro sustenta que esse comportamento de Kennedy trouxe grandes riscos à sua administração. Supondo que os relatos sejam verdadeiros, isso realmente prejudica o exercício da função pública?

R – Acho eu, também aí, varia. Em alguns casos, pode prejudicar, em outros, não. Se formos pegar a história dos reis, dos líderes, dos guerreiros, a quantos não se atribuem extravagâncias assim? Isso prejudicou? Vai prejudicar se o sujeito só fizer isso. Ou então, pergunta-se: essa pessoa com quem ele teve esse tipo de relação aproximou-se dele por quê? Por que é presidente? Aí complica. O presidente, ou o líder, é um ser humano. Tem paixões. Se não tiver, é pior, porque não vai ter capacidade de entender os outros, nem de liderar. Agora, de novo, se está usando a função para isso, acho errado – é a famosa questão do assédio sexual. Fico espantado de ver o que dizem sobre Kennedy. Ele não tinha um bando de gente com ele, não tinha segurança para todo lado? Será possível, será que é verdade? Não creio que haja regras para essas coisas. Nem para saber se prejudica ou não, nem para saber se é legítimo, para a imprensa, entrar em certas áreas. Depende. Alguns líderes são homossexuais. Isso prejudica? E por quê? Não há resposta para essas questões. Qual é o limite? O privado está afetando o público?

Acho que depende do contexto.

P – Sua conclusão, então, seria a de que não existe possibilidade de estabelecer regras? Cada caso seria um caso?

R – Não há possibilidade de estabelecer regras para a mídia. Numa sociedade mediática, costuma-se bisbilhotar. Diante dessa realidade, cada um se ajeita como pode. Não adianta instituir códigos de ética. Qual ética? Qual código? De maneira geral, pode-se interferir nos aspectos da vida privada que têm efeito sobre a condução dos negócios públicos. Vamos sair da relação amorosa e entrar nas relações econômicas. Alguns homens de Estado e alguns líderes são ricos e têm negócios. Até que ponto isso é incompatível com a vida pública? Estão se beneficiando? Mesmo virtualmente? Como? Também não é fácil responder. Agora, se você disser: “Se tem negócios, não pode ir para a vida pública”, num regime como o nosso, é deixar de fora uma parte ponderável dos que têm qualidades para desempenhar funções públicas. Diz-se: “Quando o sujeito entra na vida pública, deve deixar à parte seus negócios”. Os Estados Unidos têm regras Nesse sentido.

P – Lá os ocupantes de cargos políticos têm que vender ações…

R – Alguma regra tem que haver. Mas se o sujeito não tiver espírito público, se for desonesto, não há regra que o segure. Vender ações não vai resolver, porque ele vende pro forma. Uma pessoa que tenha função de poder, num país como o nosso – não precisa ser presidente -, enriquece na hora, se for desonesto. Enriquece pelo telefone. Fica-se milionário com uma informação, uma decisão. geralmente, no Brasil, a questão não é nem se o sujeito tem negócios. A acusação é mais direta e mais grave: não tendo negócios, ficou rico.

P – Como o Sr. avalia a imprensa brasileira?

R – Ela é exatamente atualizada. Ela opera numa velocidade enorme e tem uma capacidade extraordinária de gerar informação. Fico até bestificado de ver a quantidade de repórteres que há no Brasil. Quando sair daqui haverá uns vinte na porta. Em qualquer lugar há repórteres, em grande quantidade e numa competição feroz. Essa competição dos meios de comunicação – agora não pelo poder mas entre si – freqüentemente leva a distorções. A parte econômica da nossa imprensa é muito boa. O Brasil virou um país, digamos, eletrizado pelo mercado. Os serviços governamentais de informação são quase dispensáveis, hoje em dia. Basta ler os jornais, e sabe-se de quase tudo. Fico espantado de ver como conversas que tenho, aqui e no Planalto, no máximo em 48 horas estão nos jornais.

P – Fielmente reproduzidas?

Não, nem sempre. NO caso, não é que se queira distorcer. É que uma informação, ao passar pela terceira ou quarta mão, modifica-se. Há estudos sobre o boato. Como ele sai, por onde vai, como chega. Isso vale para a conversa, também. É muito difícil que as pessoas que vêm falar com o presidente da República não dêem uma versão qualquer do que falaram. Até têm que dar, porque a imprensa pergunta. Quando não é a imprensa, são os amigos. Há também a questão das “fontes privilegiadas” de que os jornalistas se servem. Nem sempre elas são boas. Passam por boas, fingem que são boas. Há outra coisa, que também tem a ver com a sociedade mediatizada: a imprensa antecipa. Isso atrapalha, mas é função dela. Ela antecipa, porque está antenada, o que é importante. Ela tem contatos com os dois lados, e força a produção da informação.

P – O senhor citaria um exemplo do que está dizendo?

R – Ainda hoje, numa reunião aqui no palácio, eu disse: “Acabei de ler na Gazeta Mercantil uma decisão que não tomei”. Não tomei, mas uma decisão possível estava noticiada direitinho. O que ocorreu? Alguém passou para a imprensa uma decisão que não tinha chegado a mim. Digamos que, nesse caso, ou em qualquer outro, depois que sai na imprensa eu diga: “Não, não fiz isso”. Não adianta. Acham que fiz. Se tomo a decisão contrária, dizem que recuei. É claro que não foi a imprensa que deu origem a isso. Foi quem passou a notícia para a imprensa. Mas a imprensa força essa pessoa a passar a notícia, e não quer saber se esse fulano estava bem situado para passá-la, se a notícia é verdadeira. Vai em frente. De qualquer forma, acho que no conjunto a imprensa tem grande capacidade de antecipação, capilaridade e, mais do que isso, imantação. Ela pega no ar o que vai acontecer, sobretudo a tragédia, e cristaliza logo a tragédia. Vou dar outro exemplo. Antes de sair no jornal, eu já sabia o que iam dizer do “pacote”, como eles chamam. Iam dizer que fere a classe média.

P – O senhor está se referindo de novo ao pacote de 51 medidas para combater a crise da quebradeira asiática…

R – Ninguém examinou direito quem seria atingido ou não. A reação é ir pelo mais fácil, pelo clichê. Os jornalistas às vezes estão interessados em saber como as medidas afetam seu próprio imposto de renda, o que é compreensível. Isso ocorre no Congresso também – os parlamentares querem saber como serão afetados. Há interesse recíproco, de alguns membros do Congresso e de jornalistas, em evitar o aumento do imposto de renda. Então, tacham as medidas como “anti classe média”. Depois dizem: “O pacote não vai passar”. Não é certo. Vai passar com a maior facilidade, porque exige maioria simples. Não consigo convencer, nem na minha casa, quando digo que nós pagamos pouco imposto de renda no Brasil. Mas é o que acontece, é só comparar. No Brasil há 8,6 milhões de pessoas que declaram imposto de renda. Dessas, 5 milhões não pagam nada, ou já pagaram sua parte, deduzida na fonte. Quem paga são 3,6 milhões de pessoas. Ora a classe média é muito maior do que 3,6 milhões de pessoas. essa é a alta classe média. Quem paga realmente o adicional é essa alta classe média. Muito mais gente paga o CPMF. Há no Brasil não sei quantos milhões de contas bancárias. Não obstante, passa-se a imagem de que o CPMF não pega o povo, e o imposto de renda pega. E, depois que s espalha essa imagem, não se consegue desfazê-la.

P – O que o senhor acha da estrutura econômica da imprensa brasileira, em geral baseada na propriedade particular, freqüentemente familiar?

R – Isso hoje tem um efeito menor do que no passado. No passado. o dono do jornal mandava no jornal. Hoje não manda tanto. Há hoje no Brasil uma outra oligarquia, que não é a dos donos. É a dos editores. Claro que, no limite, o dono pode mandar o editor embora. Tem esse poder, e o exerce. É curioso, porque é um pouco como o presidente da República – a relação entre o presidente da República e os poderes reais. Não pertencemos necessariamente à classe dominante, nem os jornalistas nem o presidente da República, Eventualmente, algum presidente da República pode pertencer à classe dominante, mas não é o meu caso. Na imprensa, quem exerce o mando, no dia-a-dia, é o jornalista. O poder dos donos é estrutural, é limitante. Eles dão o limite do poder, mas não têm seu exercício.

P – Eles não operam no dia-a-dia.

R – Não operam o poder cotidiano. Então, a família dona de uma empresa jornalística cada vez mais exerce menos o poder. Há exceções – famílias cujos membros têm capacidade jornalística e política. Mas, quando a família não tem essa veia, nem tem vontade de influenciar, o jornal vira uma empresa como qualquer outra, e quem influencia são os editores. Nesse aspecto, a imprensa democratizou-se. E, como há competição, não só entre os donos, como entre os jornalistas, os jornais não têm mais linha política definida. Talvez um ainda tenha – O Estado de São Paulo. A Folha definiu como sua linha não ter linha, e os outros acabaram indo por esse mesmo caminho. Isso deu poder ao jornalista – mão ao repórter, mas ao editor. E é um poder que não presta contas. Esse é o problema da democracia. O problema que se coloca hoje, em relação à imprensa, não é o de ela ter mais ou menos liberdade. É a quem ela presta contas. Dizem sempre o seguinte: “Presto contas ao meu público”.

P – Não é uma maneira de prestar contas? Se o público não aprova, não compra jornal.

R – Isso é muito relativo. Eu presto contas ao eleitor, porque o eleitor me penaliza mesmo. Agora, no caso da imprensa, como os jornais dizem todos mais ou menos a mesma coisa, o argumento se enfraquece. Se o leitor deixar de comprar tal jornal, vai comprar outro que diz mais ou menos a mesma coisa. Não há mais linha. Então, não se prestam contas realmente a ninguém, politicamente falando.

P – O senhor diz que a imprensa está democratizada, mas esse seu raciocínio leva à conclusão contrária.

R – Democratizada num outro sentido – com relação aos donos. Não com relação à responsabilidade social. Isso não é fácil solucionar. Voltamos à questão da “informação veraz”.

P – Que se deve fazer então?

R – Não vejo alternativa, realmente, a não ser mais órgãos de imprensa, e mais responsabilidade pública.

P – Na televisão, há alternativas ao sistema brasileiro de propriedade. O sistema europeu, mesmo com as privatizações dos últimos anos, continua pesadamente baseado no conceito de propriedade pública das emissoras.

R – Sim, é menos competitivo também. Aqui, a informação flui sem regras. Ninguém consegue, no Brasil, dar uma linha, controlar. Nem o governo, nem ninguém. Os donos dos jornais não conseguem evitar que se fale deles, no próprio jornal ou nos outros jornais, ou que se fale mal dos amigos deles. Isso é ruim? Não, não é ruim. É bom: coloca-se a informação para fora. Realmente, não vejo como instituir um poder supremo que diga o que é certo e o que é errado. Não havendo esse poder supremo, não havendo um deus na terra, tem que deixar solto. O importante nisso seria aumentar a discussão entre os próprios jornalistas. Pode ser que seja utópico, mas talvez seja bom que a própria mídia crie conselhos que avaliem a responsabilidade de suas mensagens diante da sociedade. Há o ombudsman, mas esse fala para dentro do jornal. Seria preciso haver quem falasse para fora.

P – Há temas em que essa discussão pode se tornar mais clara. Por exemplo, sexo e violência na televisão. Teria que haver um limite? Que limite?

R – Não tenho uma resposta fácil. Acho que devia haver um autolimite.

P – O senhor certamente não está alheio a essa discussão sobre os programas de TV aos domingos.

R – Não.

P – Se os seus netos assistem a esses programas, isso lhe causa algum tipo de desconforto?

R – Pessoalmente, não. Os meus netos…

P – Houve um programa em que se apresentou uma mulher nua, sobre a qual se dispunham fileiras de sushi.

R – Acho isso de muito mau gosto, é coisa que deseduca. Nesse sentido, sim. Não é pelo lado moral, apenas. Quando nossos filhos têm outro tipo de convivência, dá para corrigir. Meus filhos estudaram em escolas públicas, na Califórnia, onde se emitiam relatórios mensais sobre o avanço das drogas: quantos por cento tomavam marijuana, quantos tomavam cocaína, heroína. Tudo isso na escola deles! E eles passaram imunes por esse tipo de coisa. Por quê? Porque temos uma convivência doméstica aberta, em que se discutem essas coisas. Funcionou.

P – A discussão familiar talvez contrabalance o efeito nocivo que vem de outras partes, mas não anula. A família não pode construir uma redoma em torno de seus filhos.

R – Sim, há uma competição entre diversas influências. Então, não creio que ver esse sushi não-sei-o-quê seja inofensivo. A repetição disso acaba incutindo nas crianças uma dose de mau gosto e uma distorção do que é o sexo, do que é o amor, e até do que é erotismo. Porque isso não é erotismo, é mau gosto mesmo.

P – Então, incomodaria. O senhor admite que se sentiria incomodado, caso seus netos assistam a esse tipo de programa?

R – Estou dizendo que incomoda. A crítica que está havendo agora é boa, mas como parar com essas coisas?

P – Qual sua reação, se surpreende os netos assistindo a esse programa? Desliga a televisão? Dialoga?

R – Dialogaria e tentaria desligar.

P – E se eles quiserem ver?

R – Não tive a experiência. Deixe-me dizer uma coisa. Sou uma pessoa – entre aspas – “bem-educada”. Nunca suportei ouvir meus filhos dizerem palavrão, o que é hoje uma coisa comum, na frente da minha mãe. Isso me incomodava profundissimamente. Não tive essa experiência, mas se vir um neto assistindo a uma coisa dessas na televisão, também vou me incomodar profundissimamente. Eu pessoalmente, fico profundissimamente incomodado, porque acho que é uma distorção. No palavrão não há essa mesma distorção, mas palavrão me choca, até hoje. Quando meus filhos, numa certa fase, começaram a falar palavrão diante da minha mãe, isso me deixava absolutamente perturbado. Não diante de mim, engraçado. Se diziam diante de mim, eu não gostava, mas não ficava perturbado. Diante de minha mãe, ficava perturbado, pois fui educado mais tradicionalmente. Então, seguramente, embora não tenha tido essa experiência, se souber que meus netos e minhas netas vêem essas coisas, não vou gostar. Agora, o que fazer? Essa é a questão. Proibir? Eles começam a ver escondido. A proibição não tem eficácia. É melhor fazer a crítica, tanto para as crianças, quanto, se for o caso…

P – …para a televisão.

R – Para a televisão, para o público. A competição está levando a uma banalização da televisão. Nunca vi isso em outros países, sinceramente. Há programas eróticos, pornográficos até, em outros países, mas em canais fechados, com proibição. Num canal aberto, não tem cabimento. Digo isso não por moralismo, no sentido bobo da palavra, mas por formação moral mesmo.

P – Estamos concluindo, então, que falta responsabilidade social da parte dos detentores do poder na televisão.

R – Falta. Agora, quem são eles? Voltamos à questão. Não creio que, se o dono quiser parar, consiga. Ele vai olhar o IBOPE, todos vão olhar o IBOPE…

P – Conseguir, consegue, mas fica com medo de estar atuando contra seus próprios interesses comerciais. Não é isso?

R – Exatamente. Esse é o limite da liberdade do próprio editor. Ele está muito livre, enquanto o jornal der lucro. Quando não dá lucro, seu caminho acaba. Essa não pode ser a regra da democracia – dar lucro ou não dar lucro. Não vejo saída fácil para isso, a não ser o aumento da consciência social, e o esforço para politizar os temas. Acho a maior hipocrisia pensar que essa coisas não são políticas. São. Argumentam: “Somos isentos da política, somos neutros, estamos cumprindo nosso dever de divulgar”. Não é verdade. Estão tomando partido, todos os dias. É melhor ter partido, mesmo, mas que assumam. O jornalista fulano, qual é o partido dele? Ou, quando não for bem o caso de um partido político: qual o conjunto de idéias que o move? Se eu souber isso, posso situar o que ele está dizendo. A mesma coisa que eu disse a respeito daquele “economista”, entre aspas – aquele “economista” que era sócio de um fundo – , pode-se dizer dos jornalistas. Este é do PT, este outro do PSDB. Acho que deveriam identificá-lo assim: fulano de tal é do PT, fulano de tal é do PSDB. Isso não diminuiria o valor da informação do jornalista, mas o situaria. O maior problema que temos hoje, na área da informação, é que a fonte não é situada. Passa-se a impressão de que a informação é neutra, e não é. Por que não situar?

P – O senhor está falando da fonte ou do jornalista?

R – Do jornalista e da fonte. Não são situados. Não se põe lá todo dia: “FHC, 66 anos, PSDB, presidente da República”? Então por que não identificar todo mundo da mesma forma? Quem é tal jornalista? Está falando com base em que ponto de vista, em que posição?

(*) Íntegra do capítulo 11 de O presidente segundo o sociólogo, entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Roberto Pompeu de Toledo, 13/11/97, Companhia das Letras.