Wednesday, 17 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Sob os auspícios do AI-5

DIPLOMA EM XEQUE

Lucas Tadeu Ferreira (*)

Os defensores mais aguerridos da obrigatoriedade do diploma de jornalismo vêm relutando em aceitar a aplicação dos direitos e garantias fundamentais de liberdade de expressão e de imprensa conquistados pela sociedade brasileira e consagrados na Constituição Federal. Esses direitos estendem a todos os cidadãos, indistintamente, a prerrogativa de se comunicarem através de qualquer veículo e linguagem de comunicação, seja de forma escrita, verbal, televisada etc.

O inciso IX do artigo 5? da Constituição estabelece que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. O artigo 220, que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição. O parágrafo 1?, que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social. E o parágrafo 6?, que a publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade. Portanto, a Constituição brasileira é auto-aplicável em relação aos direitos e garantias fundamentais de liberdade de expressão e imprensa.

Vários dispositivos de tratados internacionais celebrados pelo governo brasileiro que, de forma contundente e insofismável, estendem também a qualquer cidadão os direitos inalienáveis de se comunicarem de forma ampla, através dos diferentes veículos e linguagens de comunicação, o que inclui, obviamente, qualquer forma de comunicação impressa e expressa, também vêm tendo dificuldade de aceitação por esses aguerridos corporativistas.

Tal relutância tem como ponto focal o decreto-lei 972/69, que regulamenta a profissão de jornalista e institui a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão, que foi baixado com base em atos institucionais, no conjunto das medidas de força e repressão do regime ditatorial que prevaleceu no Brasil por mais de 20 anos, a partir de 1964, objetivando controlar os diversos segmentos representativos da sociedade brasileira, e, no caso, os veículos de comunicação e seus respectivos profissionais, já que são tradicionalmente formadores de opinião.

Maioria de oposição

Esse decreto foi editado pela Junta Militar que governou o Brasil, ao suceder o presidente Arthur da Costa e Silva, em pleno auge da repressão política e da supressão dos direitos e das garantias fundamentais de cidadania. Tal junta era composta por três oficiais das Forças Armadas, a saber: Aurélio de Lyra Tavares, ministro do Exército (presidente da junta), Augusto Rademaker, ministro da Marinha, e Marcio de Mello e Souza, ministro da Aeronáutica.

O decreto-lei 972/69 foi baixado no dia 17 de outubro de 1969, e traz no seu caput o seguinte: "Os ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das atribuições que lhes confere o artigo 3?, do Ato Institucional n? 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o ? 1?, do artigo 2?, do Ato Institucional n? 5, de 13 de dezembro de 1968, decretam…".

Interessante notar que a mídia, deliberadamente, sempre omitiu que este decreto regulamentador da profissão de jornalista foi baixado com base no Ato Institucional n? 5. Contudo, não é difícil contextualizar as razões políticas e ideológicas que motivaram a Junta Militar a editar o citado decreto. Em primeiro lugar, seria um meio fácil de identificar todos os veículos e profissionais de comunicação existentes no país e exercer sobre eles a censura e o patrulhamento ideológico. Em cada veículo de comunicação foram colocados censores para aprovar o que poderia ser divulgado, para manter os interesses da chamada "doutrina de segurança nacional". Nesse ambiente repressor, muitos jornalistas foram presos, exilados e até mortos pelo regime militar. O caso de maior repercussão, no governo do general Ernesto Geisel, foi a morte do jornalista Vladimir Herzog.

Outro grande objetivo era o tentar afastar das redações e constranger os jornalistas que não tinham diploma e que, em sua imensa maioria, eram opositores ao regime. Como contrapartida, o decreto tornou-se um grande atrativo para uma parte expressiva dos profissionais da imprensa com medidas de natureza corporativista, já que sobreveio uma série de melhorias trabalhistas, como aposentadorias precoces e vantajosas, jornada de trabalho de cinco horas diárias e, por último, uma reserva de mercado até então inexistente no Brasil.

Tratados internacionais

Com a promulgação da Constituição em 1988, o decreto-lei 972/69 passou a ser inconstitucional, por não ter sido recepcionado por aquela, conforme exaustivamente demonstrado no livro Jornalistas sem diploma ? as inconstitucionalidades no decreto-lei n? 972, de 17-10-69, e de seu regulamento, de autoria do jurista e professor José Wilson Malheiros da Fonseca (Editora Cejup, Belém, PA, 1995). O autor prolatou várias sentenças, no Pará, considerando inconstitucional a obrigatoriedade do diploma de jornalista. O ministro Orlando Teixeira da Costa, que, na condição de presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), assina o prefácio desse livro, manifesta-se contra a obrigatoriedade do diploma, com o seguinte argumento: "A linguagem é o elemento mais eficaz de comunicação entre os homens. Sendo a escrita uma modalidade de representação da linguagem, que expressa mensagens, idéias, juízos, conceitos, doutrinas, princípios e opiniões, não seria perigoso exercer sobre ela um controle rígido, mediante o monopólio?".

E conclui seu arrazoado jurídico pela inconstitucionalidade da obrigatoriedade do diploma. A Constituição de 1988 introduziu ainda importantes inovações relativamente à integração à nossa legislação de tratados internacionais firmados pelo governo brasileiro. Ela estabeleceu, no artigo 5?, em uma extensa sucessão de 77 incisos, um rol de direitos fundamentais e garantias; e, especificamente, no parágrafo 2?, do mesmo artigo, fixou que os direitos e garantias expressos na Carta não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. De mérito indiscutível, a parte final desse mandamento constitucional recolocou na ordem do dia a inserção dos tratados no Direito interno brasileiro.

O Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão adotada no ano de 1977 (RTJ 83/809), declarou taxativamente que um tratado internacional, em que o Brasil é parte, tem aplicação imediata e direta no direito interno após sua ratificação regular pelo Congresso, não dependendo, portanto, de lei que lhe reproduza o conteúdo. O STF adotou ainda posição no sentido de que tratado internacional tem hierarquia equivalente à de lei e, por analogia, revoga lei anterior que o contraria.

Muitos tratados internacionais firmados pelo governo brasileiro já fazem parte hoje do nosso conjunto de leis. Alguns preconizam direta e objetivamente os amplos e irrestritos direitos de liberdade de expressão e de imprensa e, portanto, colidem frontalmente com o corporativismo da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo, os quais serão brevemente comentados adiante.

Mercado saberá distinguir

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo XIX, estabelece: "Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras." No final de 1998, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completou 50 anos e foi amplamente comemorada pela mídia, em quase todos os países civilizados do mundo. Mais ainda: o artigo 9, letra "e", do Código de Ética dos Jornalistas, determina que os jornalistas são obrigados a cumprir e a defender a Declaração Universal do Direitos Humanos.

A Declaração Internacional de Chapultepec firmada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996, em conjunto com vários presidentes latino-americanos, estabelece, em seus (10) princípios: "Não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão e de imprensa. O exercício desta não é uma concessão das autoridades; é um direito inalienável do povo. Toda pessoa tem o direito de buscar e receber informação, expressar opiniões e divulgá-las livremente."

A Declaração Americana Sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República (decreto 678/92, de 6-11-92; Diário Oficial da União de 9-11-92; páginas 15.562-15.567), tem força de Lei Ordinária no Brasil. Em seu artigo XIII – Liberdade de pensamento e de expressão -, preconiza: "Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões."

Enfim, tanto os dispositivos da Constituição Federal como dos tratados internacionais mencionados estabelecem ampla, geral e irrestrita liberdade de expressão e de imprensa no Brasil, e que, conforme foi exaustivamente demonstrado, dispensam a obrigatoriedade de qualquer forma de registro, licença ou diploma de jornalista para o exercício sagrado da liberdade de expressão e de imprensa.

Falta apenas cumpri-los na íntegra e, com isso, banir definitivamente os atos institucionais e seus resquícios remanescentes do período da ditadura militar que, infelizmente, ainda têm seguidores no Brasil e, no caso específico, por questões meramente mercadológicas. Afinal, o mercado de trabalho é pródigo e saberá contratar os bons profissionais da imprensa, com ou sem diploma.

(*) Mestre em Comunicação (UnB)