Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Soberania x impunidade

Ana Lúcia Amaral (*)

 

C

oincidentemente, na semana de comemoração do cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, completou 30 anos a edição do AI-5, e iniciou-se o processo de extradição do ditador chileno Augusto Pinochet, na Inglaterra, a pedido da Justiça espanhola.

Esses eventos fizeram-me refletir sobre a soberania e a impunidade.

A Declaração da ONU, como reação à insana intolerância nazista, expressão da pretensão abjeta da superioridade de uma tal raça ariana, representa o impacto sobre alguns “dogmas” como o da soberania estatal, propondo o seu repensar, a sua relativização. Assim sendo, violações aos direitos humanos perpetradas num determinado território não ficam restritas a ele, porque os direitos humanos devem ser universalmente respeitados (Considerandum n? 6 da Declaração Universal dos Direitos Humanos), não podendo ficar impunes se a ordem estatal interna nada fizer, sob o pífio argumento de dever ser respeitada a soberania do Estado onde elas ocorreram.

O festejado documento, dada a sua universalidade, não se coaduna com as limitações fronteiriças, porque se refere ao ser humano, onde quer que ele se encontre, quer como vítima quer como autor da violação.

Se assim não fosse, nada justificaria a sua subscrição por tantos e tantos países nos cinco continentes.

Os seres humanos não são anjos; portanto, não tenhamos ilusões.

Apesar de serem tantos os Estados signatários, nesses 50 anos vimos e continuamos a ver um desfilar de barbaridades. É vergonhoso o que seres humanos – é no plural mesmo, porque não se consegue ser ditador ou tirano sozinho – são capazes de fazer contra outros seres humanos da mesma nacionalidade, ou não, e pelos motivos mais ignóbeis, disfarçados em razões de Estado, de defesa da manutenção da ordem democrática contra o comunismo, por exemplo, como ocorreu no Chile e no Brasil.

A universalidade dos direitos humanos assume maior relevo exatamente nestes tempos da tão proclamada “globalização”, que permite às grandes corporações estrangeiras apagarem as fronteiras, impondo o seu modelo de produção, nos mais diversos países, com força capaz de alterar o direito positivo neles vigentes, não estando fora de propósito cogitar-se de dominação alienígena. Mas contra ela ninguém levanta a defesa da soberania…

A tal da globalização está a justificar, por exemplo, a alteração da disciplina das relações laborais, entenda-se nestas as conquistas de direitos sociais que demoraram mais de um século para serem consolidadas. Não se perca de vista que direitos sociais também são direitos humanos, porque sem trabalho fica difícil ter vida digna, liberdade. Tente convencer um desempregado, com aluguel atrasado, sem assistência médica para sua família, ou os acampados ao longo das estradas, de que eles têm direitos civis e políticos, como liberdade de ir e vir (para onde, se não têm onde ficar?) ou direito de votar (e depois de votar?), que seu país vive a normalidade democrática, com imprensa livre, sem presos políticos etc. etc….

“Quantos governos vêm se escudando nas conquistas dos direitos civis e políticos para negar vigência aos direitos econômicos, sociais e culturais (e.g. a América Latina de hoje)?” (Direitos humanos e meio ambiente – Paralelo dos sistemas de proteção internacional, de Antônio Augusto Cançado Trindade, Sérgio Antônio Fabris – Editor, Porto Alegre, Brasil, 1993).

Nesta onda da globalização vimos que abalos na economia na Ásia afetaram o Brasil, e ninguém cogitou de ofensa à soberania nacional. E por causa da tal globalização, o governo do Brasil resolveu ir ao Fundo Monetário Internacional (FMI), e não se admite falar em ofensa à soberania…

E não é que vozes e vozes levantaram-se contra a decisão do ministro inglês que resolveu aceitar o pedido de extradição da Justiça espanhola, para processar o ditador Pinochet por violações aos direitos humanos de nacionais espanhóis? Inclusive S. Ex. o presidente da República do Brasil, que, declarando não tolerar ditaduras, invocou uma intransigente defesa da soberania nacional chilena. É soberania nacional e ponto final.

Andaram até publicando discurso de um senador americano para quem a punição de um ditador seria um desestímulo a que ditadores outros (e o Vietnã, será que já esqueceram?), ainda existentes aos montes por aí, espontaneamente aceitassem a normalidade democrática em seus países, o que implicaria impor aos povos por eles subjugados um prolongamento em seu sofrimento. Em suma: não se deve melindrar ditadores, senão eles não admitem a democracia… Liberdade democrática só se consegue mediante concessão de ditaduras?!

A manifestação conjunta dos chefes de Estados sul-americanos, a par de expressar um atávico complexo de inferioridade perante o antigo colonizador, pareceu revelar o desconforto por não terem, em seus países, tratado de fazer o que a Inglaterra a e Espanha estão a fazer. Para uma acomodação geral, quer dos que pretendiam chegar ao poder quer dos que deveriam aceitar a partilha do poder com os opositores de outrora, resolveram entre si – não admito a afirmação de que o povo tenha participado – a promoção de anistias, uns esquecimentos, a título de uma pacificação nacional, de transição à normalidade sem traumas (!).

Lembro-me da história da abertura lenta e gradual. Será que todo o povo, cada um no seu íntimo, conseguiu apagar o que viu e/ou sofreu? Ainda que tenha havido qualquer consulta popular, com o ditador ainda presente, e ainda frescos na memória os horrores praticados, sob o pretexto de defesa contra o comunismo, pode-se acreditar na suposta pacificação nacional?

Vamos considerar, agora, a experiência brasileira. Em 1945, quando Getúlio Vargas consentiu em sair, era o novo governo muito distinto em sua política e/ou composição? Não. Tanto não era que em 1950 retornou. Não é verdade? Goulart, cria do getulismo, foi impedido de assumir o poder sozinho, mas na ditadura militar que depois o derrubou estava o homem forte da ditadura Vargas, o Sr. Filinto Müller – o chefe da polícia – como líder da Arena. No primeiro governo civil, após o fim da ditadura militar, com o governo Sarney, as forças políticas eram outras? Não, pois figuras “ilustres” dos governos militares e/ou seus apoiadores continuaram com peso decisivo naquele período, e ainda continuam…

Vamos deixar de lado o dito “governo Collor” pelo insólito que representou: quis dominar sozinho a corrupção institucional.

O governo FHC funda-se em bases diversas? O que é a aliança com o PFL, senão uma aliança com boa parte do que integrava a Arena?

A anistia no período Figueiredo foi um perdão a violações aos direitos humanos? As indenizações aos familiares dos desaparecidos durante a ditadura militar, promovidas no governo FHC, foram suficientes para serem considerados perdoados todos os crimes perpetrados naquele período?

Não me venham imputar espírito de vingança, estou a considerar a impunidade!

Tão grave como a inflação, que abala a economia levando as pessoas à miséria, a impunidade é outra praga da qual o brasileiro precisa se livrar. E com urgência.

Os efeitos nefastos, perversos, da impunidade sobre a economia são um fato.

A tão propalada quebra da Previdência Social decorre do desvio, do mau uso dos recursos, que deveriam estar crescendo, capitalizando, desde a época em que havia muito mais contribuintes do que aposentados recebendo. Mas não! Foi a “fonte” à qual recorreram irresponsavelmente governos após governos. Parecendo um saco sem fundo, foi alvo de ações criminosas, sendo o caso da advogada Jorgina apenas um caso, o que conseguiu vir à tona. Sem contar os milionários devedores, que deixaram sua dívida crescer por ausência da cobrança devida. Por que deixaram a dívida da Encol crescer tanto? E a da Vasp? Não será de espantar se, vencendo essa empresa aérea a ação contra a União, por perdas provocadas por irresponsáveis planos econômicos – idealizados pelos “notáveis” economistas que igualmente consideram-se não-responsáveis pelos efeitos desastrosos sobre os pobres mortais cidadãos contribuintes -, venha ela logo a receber o valor de sua indenização, ficando sua dívida com a União pendente de pagamento…

Poderá o leitor contra-argumentar que a impunidade é culpa do Poder Judiciário. E não estaria de todo errado. Tentar instaurar investigação contra atos lesivos ao patrimônio público, de tal envergadura, e fazê-la prosseguir é quase que impossível, pois todas as defesas em prol dos marginais magnatas são desenvolvidas com muita competência. Quando alguns homens públicos são objeto de investigação, logo surgem vozes invocando perseguição política, interesse do partido de oposição etc. etc. Se os que se encontram superlotando nossas prisões pudessem usufruir de defesa tão “eficiente”, estariam elas vazias.

O direito para quem tem poder econômico e/ou político parece ser um, para quem não tem parece ser outro. Não estou escrevendo nenhuma novidade.

O episódio envolvendo o ditador Pinochet bem expressa essa situação. Em nossa província tupiniquim já vieram “juristas” invocar a tal da soberania estatal; a ausência de juiz imparcial; incompetência da Justiça espanhola. Vê-se, pois, como os institutos jurídicos podem ser invocados para camuflar posições reacionárias, que são mais explicitadas quando se invoca, em prol do ditador chileno, que ele melhorou a economia do Chile; que está muito idoso (como se os canalhas não envelhecessem), ou “por que a Espanha não fez o mesmo com Franco?”… Em suma, quem deteve e/ou detém o poder não pode ser punido! E ponto final!

A respeito do grande feito econômico do ditador chileno, cabe mais uma vez trazer à consideração a análise do grande jurista brasileiro, anteriormente citado, especializado na temática dos direitos humanos, o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, juiz ad hoc da Corte Interamericana de Direitos Humanos, assim manifestada: “Quantos governos, a pretexto de buscarem realização progressiva de certos direitos econômicos e sociais em futuro indeterminado, violaram sistematicamente os direitos civis e políticos (e.g., a América Latina das ditaduras, particularmente da década de setenta!)”A invocação do respeito, feita pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, à soberania nacional do Chile, cuja jurisdição seria a única competente para resolver o problema, no momento em que inicia um segundo mandato, pode até fazer crer que, se fosse o Brasil o país envolvido, ter-se-ia aqui meios de processar e julgar os delitos cometidos por ditadores. Mas assim não é.

O governo federal, em sua fúria legiferante, enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n? 2961/97, que altera a Lei de Abuso de Autoridade, criando novas figuras delituosas. De acordo com o referido projeto, passará a ser crime a instauração de inquérito civil; propor ação de natureza civil, criminal ou de improbidade, com o propósito de perseguição, ou para satisfazer simples sentimento pessoal ou convicção política. A alta dose de subjetividade para a tipificação desse delito revela um forte ranço autoritário. Com conceitos tão imprecisos, nessa figura penal pode caber tudo. Ou seja, as iniciativas tendentes à punição de quem causou danos ao patrimônio público, pois essas ações de improbidade referem-se à improbidade na administração da coisa pública, podem ser tolhidas, inibidas se tal projeto for convertido em lei. Já imaginaram se essa lei já tivesse sido aprovada pelo Congresso Nacional? Para alguns conhecidos políticos paulistas, recentemente repudiados nas eleições para o governo do estado de São Paulo, seria uma maravilha! E o caso da escuta do BNDES, pobres coitados do delegado e do procurador da República que atuam no caso… Já estariam sendo processados criminalmente. E a manipulação do procedimento administrativo do leilão, como ficaria???

Outra figura delituosa, cujos autores seriam juízes, membros do Ministério Público, delegados de polícia, consiste em dar conhecimento aos meios de comunicação da existência de investigação ou processo judicial que violem o interesse público, sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Antes de mais nada, convém lembrar que já existe a previsão de sanção penal por violação do sigilo nos casos que correm em segredo de justiça, representando superabundância legislativa a existência de outro projeto de lei sobre matéria já disciplinada legalmente.

Não se pode imaginar uma boa razão, entenda-se idônea, para essa criação legal, a não ser acobertar pessoas que tenham, enquanto agentes públicos, cometido algum dano ao patrimônio público. Não venham invocar abusos dos membros do Ministério Público na instauração de inquéritos e propositura de ações – pois é essa a instituição que deve fazê-lo -, porque não se tem notícia de um caso no qual a instauração de inquérito civil e/ou de ação de improbidade tenha se dado por perseguição política ou por sentimento pessoal. É por demais complicado e trabalhoso instaurar-se um inquérito e uma ação judicial para apenas dar atendimento a sentimentos íntimos.

Se hoje, sem ainda vigorar tal lei, já é difícil conseguir noticiar corretamente o que acontece em processos envolvendo pessoas às quais o referido projeto de lei daria proteção, imagine-se a hipótese, em nada absurda, de vir a ser aprovada pelo Congresso Nacional. Com tamanho “cala-boca”, quem teria condições de propor e acompanhar o processo? De que forma seriam punidas as condutas lesivas ao patrimônio público? De que forma seriam prestadas informações à sociedade sobre a tramitação dos processos que são no seu interesse? Sim, no interesse da sociedade, pois o aparato de Estado quando processa alguém o faz em nome da sociedade.

Reincidiremos, mais uma vez, na impunidade!

Com tantas demandas de natureza social a serem atendidas, para efetivamente serem implementados os direitos humanos, incluídos nestes os econômicos, sociais e culturais, o direito ao meio ambiente equilibrado – pobreza é dano ambiental -, o direito ao desenvolvimento humano, ocupa-se o governo federal – como se não existisse Poder Legislativo -, de produzir leis de natureza criminal para punir aqueles a quem foi conferido pela Constituição Federal a tarefa de tentar punir os violadores dos direitos humanos, pois o dano ao patrimônio público causado por todas as práticas que acabam por debilitá-lo implica retirar dos que mais necessitam, e que não têm como se defender dos marginais bem vestidos e cortejados como se honrados fossem pelas posições de destaque que ocupam no meio social e político.

Enquanto uns são alvo de obséquios, do glamour de algumas publicações, há uma massa humana que não come, que não tem bons dentes, que não tem pele bonita, que não pode se vestir bem, que não pode freqüentar lugares da moda, e que, justamente por isso, são rejeitados quase que com repulsa, como se culpados fossem por serem o que são.

Portanto, invocação de razões de Estado, de soberania, quando por trás existem violações dos direitos humanos, é a consagração da impunidade. Isto é compatível com a democracia?

Que tal, dentro da perspectiva dos direitos humanos universais e indivisíveis, deixarmos de adotar o conceito de “soberania”, na solução das graves desigualdades sociais, e adotarmos o da “solidariedade”?

(*) Procuradora regional da República, membro do Conselho Administrativo do Instituto de Estudos Direito & Cidadania

 



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