Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre a demanda permanente das drogas

Tom Taborda (*)

Para início de conversa, vamos deixar bem claro: é inquestionável o estrago que as drogas fazem à saúde física, mental e psicológica de um indivíduo. [Nas discussões sobre o tema, vêm surgindo a abominável expressão "drogadito" ? um detestável barbarismo de origem inglesa, proveniente de drugaddict, "viciado em drogas". Nada contra os anglicismos, quando apropriados ou soam bem. Este, no entanto, parece referir-se a "uno pequeño chico drogado, o sea, uno drogadito"; quando em bom português já temos "drogado" ou "viciado", e vamos parar de inventar moda].

Em segundo lugar: o uso de drogas psicoativas, intoxicantes, ou "recreativas" é tão antigo quanto a humanidade e praticamente todas as culturas as utilizam, legal ou ilegalmente. Ou seja, existe uma demanda permanente, indivíduos que farão de tudo para conseguir tais substâncias. O ser humano adora inebriantes.

Assim, as drogas não deveriam ser problema de polícia. Exatamente pelo dano que causam à saúde dos usuários, elas deveriam ser problema de educação e de saúde, e não do Código Penal ou da polícia. Veja bem, o Estado não proíbe, ou considera crime, as pessoas se envenenarem com o que quer que seja. O Estado não tem este direito. Não é crime, ou sequer contravenção, beber gasolina ou álcool combustível; a Lei não criminaliza um dano que o indivíduo cause a si mesmo, ou a prodigalidade, ou a auto-flagelação, ou cometer suicídio. Estupidez talvez, mas não crime. E estupidez ou idiotice, infelizmente, não são crimes? Não há, portanto, justificativa legal para embasar a criminalização das drogas. Esta, de fato, é uma questão interessante de Filosofia do Direito: a partir de que época e local ? e em que contexto? ? as drogas e seu consumo foram consideradas ilegais? Uma boa pesquisa histórica a se fazer.

Tampouco é crime pegar Aids ? uma doença fatal que causará a degenerescência do infectado, com o risco de infectar outros indivíduos (alguma diferença social para as drogas?) ?, não é problema da polícia, mas um risco que o Estado procura prevenir e tratar. [Existe, assustador, um filme de ficção, "Amanhecer Sem Futuro"/ Daybreak, produção para a TV da HBO, que se passa em 2005, no qual os "contaminados" são considerados criminosos, caçados, marcados e confinados em campos de extermínio.]

Ao argumento "As drogas tornam as pessoas violentas": violência, sem dúvida, é caso de polícia, seja por drogas, embriaguez, ou temperamento. Existem drogados que não são violentos, e violentos que não são drogados. Cada coisa em seu lugar e, a cada um, o tratamento merecido. Ou "As drogas levam à loucura!". Permita-me a blague, mas, muitas vezes, o casamento também. Nem por isso ele é proibido. E, afinal de contas, loucura também é problema médico e não policial.


Venda legal

Prendemos e processamos judicialmente milhares de usuários e traficantes. Li que foram realizados cerca de 25.000 processos criminais ? em quanto tempo?, um ano?, somente em São Paulo?, na cidade ou no estado?, não importa. Regularmente, vemos noticiada a apreensão de toneladas de drogas. Nem as condenações ou as apreensões parecem ter feito a menor diferença na oferta do produto. Os Estados Unidos gastam milhões de dólares anuais no combate às drogas, o que tampouco parece eficaz, um "trabalho de Sísifo". Na manutenção desta política repressiva, é claro, existem pessoas interessadas na generosidade dos orçamentos governamentais. E, como bem observou o professor Hélio Jaguaribe (em "Droga, crime e narcoimperialismo", Jornal do Brasil, 28/9/2000), a "batalha contra as drogas" é bem mais eficaz para a política intervencionista norte-americana que o anti-comunismo. Mas, mesmo para as pessoas com as melhores das intenções, existe um outro ponto normalmente ignorado:

Que as drogas ? atenção! passamos para o segundo ponto ? são, de fato, um problema de demanda e não de oferta. Combater, reprimir a oferta é inexpressivo. É mero jogo de cena, não importa quantas toneladas sejam apreendidas ou quantos traficantes presos. Enquanto existir quem esteja disposto a pagar ? literalmente ? qualquer preço para obtê-las, existirão outros também dispostos a fazer de tudo para que o produto chegue às mãos desses consumidores. Assim, o orçamento do Cartel de Medelín será sempre generosamente subsidiado pelos consumidores mundiais. E os fornecedores matarão (ou subornarão) policiais, fiscais aduaneiros, advogados, juízes e quem mais esteja pela frente. Não importam quantas barreiras físicas, fiscais, policiais ou legais existam. Inúteis, a meu ver, todas elas.

Mesmo que, num delírio autoritário alicerçado nas "melhores intenções" (salvai-nos destas e de todas as demais "melhores intenções"), transformássemos um país num pesadelo policialesco repressor e estanque, mesmo assim seria inútil: observemos uma prisão de segurança máxima. Neste exemplar microcosmo contido, nem ali, nas celas nuas, cercadas por altos muros e vigiadas por dezenas de agentes armados, consegue-se deter o tráfico de drogas. Como então pretender barrar este comércio numa sociedade livre? Transformar o país numa imensa penitenciária seria igualmente inútil. E lamentável.

O fluxo do suprimento se mantém, estável, passando por cima de tudo e todos, atendendo à demanda.

Passar por cima de tudo e de todos, este, na verdade, é o maior problema relacionado às drogas. Não importa o prejuízo que causam no organismo de um, dez ou milhares de drogados; isso é irrelevante (do ponto de vista social, e não individual, é claro) frente à corrupção, à devastação causada no tecido social, na estrutura da sociedade, para suprir tal irrefreável demanda do produto. Esta é a lógica insofismável que justifica a legalização das drogas. Pretender o contrário é tapar o sol com a peneira, mesmo que nos horrorizemos com o triste espetáculo de jovens viciados. Pois aquilo que não vemos é bem mais podre. Um delegado, policial ou juiz corruptos são muito mais perigosos ? e assustadores ? pelo que representam socialmente, que um traficante ou um drogado.

Os viciados, devem ser tratados (se o quiserem) como doentes que são, nas clínicas e serviços especializados (idealmente sustentados com os impostos arrecadados na venda legal das drogas). Sem a proibição, no entanto, a sociedade estará livre dos perversos e insidiosos efeitos da corrupção social exercida pelo tráfico clandestino. E isso apenas vale mais que qualquer outra medida.


Quanto custa?

Para o problema das pessoas se drogarem no trabalho: em qualquer lugar do mundo é motivo de demissão por justa causa "estar visivelmente intoxicado em serviço". Fim do problema. Internação em clínicas de desintoxicação ou serviços de aconselhamento para eles. Mesmo com o atual quadro criminalizado das drogas, muitas empresas já estão preconizando os serviços assistenciais para os funcionários viciados, em lugar da demissão sumária ou condenação penal. Cederam à lógica da realidade.

O Estado deve, portanto, deixar de lado a repressão e atuar apenas em duas frentes: na prevenção, a cargo da educação, promovendo ativamente as campanhas eficazes de esclarecimento, na sociedade e sobretudo nas escolas, contra os vícios por qualquer substância química, ou seja, contendo a demanda (no dia em que as drogas "perderem a graça", deixarão de ser vendidas); e no tratamento dos viciados, a cargo da saúde pública, com os melhores recursos disponíveis.

As drogas devem ser radicalmente legalizadas; todas elas, sem distinção entre "drogas leves" ou "drogas pesadas". Não deveria ser crime o indivíduo envenenar-se com o que quiser; não há diferença entre a heroína e a gasolina, exceto que, para a primeira, o viciado precisa atualmente obter recursos, a todo custo, entenda-se furto ou roubo, para pagar o preço do traficante, que encarece o seu produto pela quantidade de intermediários que tem que "comprar" pelo caminho; já a gasolina, o idiota ? perdão ?, o viciado consegue "levando um papo" com o frentista).

É claro, sobretudo, que esta deve ser uma mudança de mentalidade adotada mundialmente, para evitar que aquele isolado país "progressista" se veja invadido pela escória dos países vizinhos, hordas de viciados e traficantes. Como ocorre na Holanda.

Nada como o distanciamento histórico, para podermos analisar com alguma isenção um fato. Basta traçar um paralelo, insofismável e evidente, com o período da Lei Seca americana, responsável apenas pelo estrondoso fortalecimento do crime organizado: uma expressiva parcela da sociedade queria continuar consumindo as proibidas bebidas alcoólicas, custassem o que custassem. Vendo milhares de notas de dólares a se agitarem em mãos "sedentas", a Máfia prontamente atendeu à demanda; para isso matou, subornou e corrompeu quem estivesse pela frente (o célebre grupo "Os Intocáveis" tinha este qualificativo por se tratar de um mero punhado de policiais que não eram "compráveis" pelos criminosos, que não "tocavam" no suborno, numa corporação inteiramente imersa na corrupção). Os efeitos de tal insensatez ? hoje, qualquer pessoa de bom senso considera a Lei Seca, indiscutivelmente, uma insensatez ? são sentidos até os dias atuais. A Máfia tornou-se mais poderosa que nunca.

Sabemos que a Lei Seca pouco impacto teve na diminuição do alcoolismo mas, em contrapartida, corrompeu irreversivelmente o tecido social americano. Um dia, quem sabe, igualmente as drogas serão descriminalizadas. E as pessoas verão filmes sobre esta nossa época de inútil repressão, e se perguntarão "como foi possível criar uma proibição burra dessas? Não percebiam que era inútil proibir as pessoas de se drogarem".

Basta nos perguntarmos, hoje, "quanto realmente custa cada droga, vendida nas esquinas?" É uma equação cruel: além da matéria-prima, processamento e distribuição, ela traz embutida no preço, 1 juiz + 2 delegados + 4 fiscais da alfândega + 8 policiais + 16 "mulas" + 32 menores para usos diversos + 64 metralhadoras + 128 toneladas apreendidas e assim por diante, numa perversa equação em progressão geométrica de custo. Bem melhor seria se, custando o mesmo preço final, ela custeasse campanhas educativas + material educativo + centros de tratamento + pesquisas.

(*) Médico e jornalista

    
    
                     
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