Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre a sorte e o juízo

VIDA DE JORNALISTA

José Roberto Alencar (*)


Apresentação de Muita sorte & pouco juízo, de José Roberto Alencar, 186pp, Ateliê Editorial, Cotia (SP), 2002; e-mail <ateliê_editorial@uol.com.br>; título e intertítulo da redação do OI


Este livro foi escrito por causa da greve, por falta de o que fazer e por culpa da Adélia, da Jurema, da Lúcia Helena e do juiz Rui Florence, meu velho amigo. Era 2001 e eu trabalhava num reino distante, digo, numa redação distante, aliás, muito distante, mas adorável e de alto astral. Ali, um bando de gente competente, amiga, divertida e de bom caráter fazia um excelente jornal. O mais nacional dos diários do Brasil, impresso simultaneamente em mais de vinte cidades.

Já a empresa dona do excelente jornal não era lá essas coisas. Atrasava salários, descumpria promessas e tanto desrespeitou a redação que a empurrou para uma greve ? justa, sim, mas trouxa [porque, em vez do direito de controlar ou fiscalizar o cofre arrombado, a greve exigia o pagamento que ela própria inviabilizava, pois reduzia o faturamento e, pior, cedia os anunciantes para a concorrência, deslocando a briga da arena jornalística (que vença o melhor ? o nosso) para a empresarial (que vença a melhor ? a outra)] e frouxa [porque se não queríamos nos espelhar em categorias brasileiras mesmo, porém sérias, podíamos ao menos imitar os jornalistas do New York Times, cujos piquetes interromperam a publicação por meses, nas greves de 1953 e 1963]. Nas assembléias, eu falava e votava contra aquela greve. E perdia. Sem conseguir encerrá-la nem aprumá-la para uma exigência mais inteligente e para uma postura mais adulta (com direito a piquete solúvel a cavalaria, gás lacrimogênio e bordoada), me demiti. Da greve, da assembléia, do jornal delicioso, da redação distante porém adorável e da empresa caloteira.

O diretor de redação de outro jornal e o editor de uma revista ouviram minha demissão (mandei tudo às favas numa entrevista à rádio CBN) e me chamaram para conversar. Sumi. Não ia me arriscar a receber convite deles. Responder não me fecharia a porta, e não podia dizer sim: era outubro e ambos, jornal e revista, planejavam demitir em penca até o fim do ano ? estava na bica a lei que abriria as empresas jornalísticas ao capital estrangeiro e elas queriam parecer enxutinhas aos capitalistas. Contratação naquela hora engordaria a lista dos demitidos. Prefiro ficar à-toa ? não sou urubu nem nada, uai.

Sem ter o que fazer, resolvi me enfiar no sítio de meu irmão, Renato, numa florestinha sul-mineira e, enquanto o passaralho [na página 185 há um glossário do jargão das redações] não pousasse, perpetrar um livro parecido com o Sorte & Arte, o anterior, razoavelmente bem-sucedido, já então na quarta edição, essa pela Alfa Ômega.

Fui. E comecei a botar no computador as historinhas mais divertidas de como algumas matérias me caíram no colo e emplacaram a primeira página. Dei preferência àquelas em que a sorte falou alto. Selecionei algumas que foram simplesmente gostosas de fazer, e uma ou outra que ficou boa de ler. Um dia, a escrita enroscou. E não desempacava. Parei para pensar (Carlinhos Brickmann diria que não consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo), reli e entendi: podia desistir. Este livro jamais teria o charme do outro.

Aquele contava as peripécias de um foca tinhoso, sem diploma nem registro, empenhado em assinar matérias nas primeiras páginas e trocar a vida de motorista de caminhão pela de jornalista. Um encrenqueiro que, em vinte anos, passou por 44 das redações mais importantes do Brasil ? a matéria que mais assinava era a carta de demissão. Agora, falaria de tempos recentes, quando não preciso mais de esforço para empalmar a primeira. E em vez de 44, só teria oito redações para catar histórias: de 1994 para cá, trabalhei apenas no DCI (sete meses na direção de redação), no Hoje em Dia de Belo Horizonte (duas passagens de nove meses), na Gazeta Mercantil (duas vezes de ano e meio), na Época (um frila de triste memória), no Jornal do Brasil (três dias) e no Jornal da Tarde (42 dias).

Desistir do livro me criaria, porém, boa encrenca. Antes de me enfurnar na mineira Santa Rita, havia almoçado em São Paulo com meu amigo Rui Florence (neto do inventor da fotografia, Hercule Florence). Rui é Juiz em Campo Grande, ex-presidente da associação dos magistrados de lá e fértil fonte de pautas. Já devo ter transformado em reportagens umas vinte sugestões dele. Falei-lhe do livro e ele quis saber quais matérias do Mato Grosso do Sul entrariam. Descartei a do desembargador Leteriello e a da fazendeira alagada, que não dependeram da sorte, e citei a da compra de uma cidade paraguaia pelo reverendo Moon e a publicada antes dela, a “Vida Brasileira de Ueze Zahran”.

Requintes de crueldade

Dois ou três dias depois desse almoço, Rui liga de lá, dá um número e me manda falar com César Quintas. Ligo. O moço, elegante, não pergunta se a história de Ueze estará no livro. Apenas pede o orçamento para uma batelada de exemplares, pagamento antecipado. Consultei Fernando Mangarielo, da Editora Alfa Omega, liguei de volta e dei o preço. Quintas mandou emitir a nota em nome da Fundação Zahran, pagou ? e quando concluí que o livro não existia, já havia até gastado o dinheiro.

Comentei com Adélia Chagas meu desânimo e a vontade de tomar empréstimo no banco, calçar a cara, pedir desculpas a César Quintas e devolver o dinheiro da fundação. Adélia bronqueou. Concordou que, de fato, cheguei àquele ponto em que os editores me dão preferência, minha vagabundagem é tolerada e concorro à primeira desde o momento em que pego a pauta. Admitiu que hoje chego à capa por inércia, com ou sem merecimento. Mas disse que o livro existia sim, por mostrar que continuo foca e fazedor de peripécias, para merecer a primeira.

E a malandrice não seria o único traço comum entre os dois focas ? o novo de antigamente, do Sorte e Arte, e o velho de agora, da capa automática. Elo mais forte entre eles é a sorte ? realmente impressionante, como diz Adélia. É. A sorte de sempre, que me afaga e mima, facilita minha vida e insiste em me manter nela relativamente inteiro, apesar do pouco juízo descrito, por exemplo, no capítulo “O Buraco no Fim do Mundo”.

Até mesmo eu me assusto quando tropeço no arisco matador profissional, no vencedor de três grandes prêmios da loteria, no melhor analfabeto, num artista desconhecido, no ganhador de 137 carros no bingo ou no pioneiro da pediatria mineira.

Relendo o primeiro capítulo ? “A Virada do Milênio” ?, Adélia viu muita sorte, por exemplo, na coincidência que me permitiu emplacar duas matérias na primeira página da primeira edição da Gazeta Mercantil do Terceiro Milênio: numa, com a história de um catador de chapinhas e, noutra, com a ida épica da Petrobrás para o mar. Duas matérias na capa, em cima da hora ? e sem atrasar a minha ida para o mar no feriado do fim de ano.

Jurema Aprile também esculachou meu desânimo e me empurrou. Disse que o livro é engraçado, mostra um jeito bom de ver a vida, tem alto astral, é curioso para quem não conhece redações e poderia, como o anterior, ajudar na formação de estudantes de jornalismo. Não concordei, mas já aprendi a não discutir com mulher: só perco. Se italiana, pior ainda: me massacra. Então, em vez de perder tempo, pedi ajuda. E como Adélia, ela passou horas e horas corrigindo minha escrita. Só não ajudou no levantamento de arquivo porque, isso, Lúcia Helena já havia feito dois meses antes.

Delmo Moreira, o melhor chefe direto da minha vida, leu três ou quatro histórias, gostou (ou fingiu, para não me chatear, porque já aprendeu que discutir comigo é quase tão ruim quanto com italiana) e sugeriu o título, bastante apropriado. Muita Sorte e Pouco Juízo deriva da frase foi mais sorte do que juízo, sempre usada por ele para admitir ter dado certo algo que só podia dar errado. Diz ser o meu caso. Que faço tudo errado ? e dá certo.

Como na vez em que eu estava muito chato na reunião de pauta e ele me mandou à m…. Saí, dei um tempinho e voltei:

? Delmo, o engenheiro Leonardo (gerente administrativo) disse que não temos permuta de passagem aérea para a m…. Posso ir para Portugal?

Ele deixou. Viagem internacional sem pauta não é coisa de repórter ajuizado. Mas deu certo. Voltei com matérias sobre azeite (aprendi um monte de coisa, inclusive que azeitona preta é a verde depois de madura); sobre cortiça (nem sabia tirada da casca de uma árvore chamada sobreiro); sobre Amália Rodrigues (a fada do fado, albergada no Cemitério dos Prazeres enquanto Portugal decide se a põe ou não no Panteão dos Jerônimos, onde, sugeri, ela poderia ocupar o túmulo vazio de D. Sebastião, que não há meio de voltar); e sobre a mania portuguesa de doces gemados (as freiras engomavam hábitos com a clara e as gemas viravam doces, enquanto as italianas só faziam macarrão, porque a Itália não era dona de nenhum Brasil produtor de açúcar).

Muitas outras iniciativas minhas não têm, de fato, sido muito sensatas. E dão certo. Por isso, volta e meia ouvi de Delmo: “Foi mais sorte do que juízo, né, Zé Grandão?”

Em outubro de 2001, amigos bronquearam por ter-me demitido em época de passaralho em vôo baixo. Não concordo muito, pois a greve terminou num desastre: nossa derrota foi acachapante, não recebemos os atrasados, um terço de nós pediu demissão, outro foi demitido com requintes de crueldade e a redação foi devastada. (Vitórias como a dos companheiros de Curitiba, que receberam seus direitos em fevereiro de 2002, se deram no Judiciário, não na greve.)

Amigos insistem que fiz tudo errado ao, desempregado, fugir de convites. Segundo eles, errei de novo ao me esconder na florestinha do Renato para escrever livro, em vez de pegar frilas em São Paulo e Rio, onde me manteria à vista e na memória de eventuais contratadores. Pode ser.

Mas também pode ser que, ainda desta vez, Delmo tenha razão. Sorte dispensa juízo. [Santa Rita de Caldas, fevereiro de 2002.]

(*) Jornalista

 

Mário Alberto de Almeida (*)


Texto da “orelha” de Muita sorte & pouco juízo, de José Roberto Alencar, 186pp, Ateliê Editorial, Cotia (SP), 2002; e-mail <ateliê_editorial@uol.com.br>; título da redação do OI


Fosse capaz de ganhar dinheiro, Zé Grandão seria o Fred Astaire da reportagem mundial. Feio, longilíneo, andar desengonçado, extremidades longas que encantam mulheres dispostas a imaginar o que não vêem, o tipo físico bate com perfeição. Mas a identidade só fica completa quando se examina o método. Pois o repórter José Roberto de Alencar, sul-mineiro da gema e titular do personagem Zé Grandão, por ele criado faz trinta anos com o exclusivo propósito de atazanar chefes e comover leitores, trabalha como louco para ter o gostinho de fingir que é malandro e, portanto, teria artes com o mistério para arrancar da sorte aquelas histórias maravilhosas, pontilhadas com detalhes picarescos e figuras humanas notáveis, que publica na imprensa diária e, de um tempo a outro, junta num livro como este.

Aqui, nosso repórter é igualzinho a Fred Astaire quando dançava com o abajur, sapato branco e camisa de seda engomada, borbulhando em gargalhadas como se não tivesse feito outra coisa na vida. Isso depois de um sumiço de semana inteira, tempo que suava agarrado num toco de madeira de sol a sol, esculpindo os passos e volteios que mostraria, depois, com aquele ar de improvisador sabichão e dono da verdade.

Zé Grandão é assim mesmo: trabalha de domingo a domingo, é capaz de se meter numa viagem de horas só para obter numa cidadezinha da fronteira o detalhe que ajudará a fechar melhor um parágrafo de abertura, assiste a sessões madrugais de pauta sem mover supercílio, disputa cada vírgula do seu texto com quem se aventure a canetá-lo e não falta em reunião festiva dos colegas.

Essa máquina laboriosa só falha quando pinta mulher na vizinhança. Se for colega, então, o cavalheirismo se apresenta na forma de sugestões para entrevistas, louvações a textos canhestros, ajuda na correção de verbos capengas, retoques na sintaxe e na concordância e, por fim, elogios rasgados ao produto enfim estampado em papel, que podem se insinuar numa tela de computador ou mesmo assumir a forma de cartas postadas em pagos distantes. Como o mestre, Zé Grandão colhe satisfeito da semeadura abundante. E vive em paz.

As reportagens comentadas nesta coletânea devem ser lidas com esse desconto. Para obtê-las, Alencar moveu montanhas, atraiu problemas, feriu interesses de gente poderosa e tomou dores de brasileiros modestos. Entregue a mercadoria, fanfarroneia misteriosa intimidade com a sorte que teria lhe assegurado o essencial da obra. Fingimos acreditar e assim o falso improvisador continuará investindo sangue e lágrimas na caça dos eventos que nos serve em suntuosas narrativas. Sorte nossa, que pegamos carona na poltrona e vivemos cada passo dessa trajetória sem par.

(*) Jornalista

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