Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Sobre direitos e privilégios

CCR (*)

 

F

oi notícia de destaque em todos os jornais a sanção, por parte do governador Marcello Alencar (PSDB-RJ), de projeto de lei que prevê pensão de um salário mínimo para a mulher que tiver um filho após ser vítima de estupro. A renda extra é um direito da criança até 21 anos, e foi tratada nas páginas dos jornais quase como um privilégio feminino: “Para se beneficiar da lei”, diz matéria do Jornal do Brasil (“Lei dá salário a filho gerado de estupro”) explicando o funcionamento do projeto.

Que benefício pode ter uma mulher estuprada que, em vez de ter o direito de abortar o fruto de ato sexual violento e involuntário deve se submeter a criar a criança com um salário mínimo mensal, porque o estado assim o decidiu?

Faltou muito para que os jornais abordassem todos os aspectos da complexidade do tema e das conseqüências do projeto. Faltaram duas perguntas simples, que ainda podem e devem ser feitas: 1. A quem interessa o projeto e de onde vem sua inspiração? 2. Por que este projeto foi aprovado e sancionado exatamente depois da divulgação das normas técnicas do Ministério da Saúde para prevenção e tratamento de danos provocados por violência sexual contra mulheres?

As normas não obrigam os hospitais a realizarem o aborto em caso de estupro, mas têm exatamente o objetivo de indicar a estados e municípios procedimentos para o aborto seguro. E por que estes procedimentos são necessários?

Existem dois casos: a mulher que provocou um aborto e teve complicações que a levaram a procurar um hospital público e a mulher que foi vítima de estupro e quer fazer aborto na rede pública. O que as normas técnicas do ministério determinam é um tratamento humano a esta mulher que, num caso ou no outro, já sofreu violência anterior e não deve ser punida novamente por exigências de procedimentos legais (no caso do estupro, um boletim policial e o exame de corpo-delito) ou por comportamento médico (atendimento ao lado de parturientes, por exemplo).

As normas técnicas são um avanço, e pouco se falou deste avanço na imprensa, quando uma simples pesquisa levantaria a história destas normas: em 6 de novembro do ano passado, o Conselho Nacional de Saúde, depois de amplo debate do qual a mídia também fez parte, aprovou a Resolução 258, que propunha a adoção de normas para o atendimento à mulher nos casos de aborto inseguro.

O Conselho Nacional de Saúde é constituído por diversificadas e expressivas lideranças da sociedade e, ao aprovar a Resolução 258, estava atendendo aos anseios das mulheres na solução de delicadas questões de saúde. Neste sentido, a adoção das normas configura avanço político também a ser destacado.

Mas o projeto de lei que estabelece o salário mínimo é um retrocesso. Não por acaso, os dois acontecem juntos. A imprensa, que amplamente debateu a resolução do Conselho, no ano passado, tratou os dois casos – da lei do estupro e da publicação das normas – sem demonstrar capacidade de ligar as três pontas de uma só história.

“A cada hora, na Região Metropolitana do Rio, uma mulher vítima de violência quebra o silêncio e procura ajuda da polícia em uma delegacia especializada”.

Assim começa a reportagem do Jornal do Brasil, publicada em 1?/11 sob o título “Rompendo a barreira do medo”, página inteira que mostra as dificuldades – e os avanços – das mulheres que, vítimas de violência, começam a ganhar coragem e confiança nos mecanismos legais de denúncia.

A matéria da repórter Cláudia Montenegro tem este mérito: joga luz nova sobre uma antiga questão, aponta as dificuldades das vítimas de estupro em registrar a queixa e traz estatísticas que indicam que seis em 10 casos de agressão ocorrem dentro da própria casa, por parte de maridos e companheiros. No Olhar sobre a Mídia número 8 apontávamos exatamente esta questão: o que leva mulheres vítimas de violência a não fazerem a denúncia ou, quando o fazem, o que leva a polícia a não investigar.

Com a aprovação do projeto da pensão para filhos de estupro, é preciso avançar no questionamento: que sociedade é essa na qual a maior violência contra a mulher ocorre em casa? Mulheres são estupradas por pais e padrastos, e um projeto de lei transforma em “benefício” de renda o fruto de um estupro? Se a iniciativa foi mesmo, como tudo indica, reação dos setores conservadores às normas do Ministério da Saúde, que “facilitariam” o aborto, cabe à imprensa apontar a quem de fato interessa o projeto.

Certamente, não às mulheres.

(*) Publicado em Olhar sobre a Mídia, da Comissão de Cidadania e Reprodução <www.ccr.org.br>