Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre imprensa, humor e tragédia

PEQUENAS PÉROLAS

Paulo Lima (*)

A fronteira entre o trágico e o cômico está delimitada por um fio tênue, é o que nos ensina o dublê de poeta e filósofo Nietzsche, num de seus numerosos insights impertinentes acerca da derrocada dos valores culturais do Ocidente. Segundo esse circunspeto mestre do pensar ? não consta em seus registros biográficos que, alguma vez, houvesse sido flagrado em sonora e desprendida gargalhada ?, um fato não poderia ser considerado dramático em si mesmo se não revelasse, em contraposição, seu lado engraçado.

Os humoristas parecem levar essa máxima ao pé da letra, pois quem mais, a não ser eles, consegue extrair pérolas das catástrofes mais inomináveis do cotidiano?

Nesse quesito, o Brasil leva larga vantagem sobre qualquer outro país. Afinal, onde mais se tem um manancial tão rico em intempéries socioeconômicas? E onde mais existe um celeiro de cartunistas capazes de extrair o sumo risível dessa realidade grotesca, impondo assim um ar de leveza à gravidade do noticiário cotidiano?

Nossos mestres do sorrir são capazes de ganhar qualquer campeonato de humor e de galhofa. Alguns desses craques, de tão lendários, já mereceriam status de patrimônio histórico do riso. Aí estão os irmãos Caruso e todo um time inestimável, incluindo os que já tomaram a estrada definitiva, como Henfil.

Apesar de tão imbricado em nossa cultura, o humor ainda está por receber a devida atenção dos nossos acadêmicos de plantão. Na literatura, esse viés está presente há muito. Para comprová-lo, basta ler a prosa de Machado de Assis ou Lima Barreto, em que o humor irônico já se sobrepunha às mazelas do nosso passado republicano. Mais contemporaneamente, vê-se a mesma cútis de ironia em Drummond, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. E, atualmente, a verve está presente na caudalosa produção de Luis Fernando Verissimo e na cadência malemolente e genial de João Ubaldo Ribeiro. E mesmo na prosa de uma venerável dama da nossa literatura, como Lygia Fagundes Teles, a descoberta do humor está presente, como nesse de Senso de Humor:


"Na minha idade de ouro, costumava fazer ? e refazer ? uma hierarquia de valores e nessa hierarquia a coragem ocupava o primeiro lugar. A virtude maior. Coragem de amar e desamar, coragem de morrer e desmorrer, coragem da cólera, da tristeza. (…) Mudei de pensar. Melhor ainda do que ter coragem é ter senso de humor, dom mais raro. E mais nítido".


Mais adiante, Lygia define o tipo de humor a que quer se referir: "Uma doce filosofia que nos permite vislumbrar uma certa graça nas coisas desengraçadas". Ora, rir das coisas sem graça não é, de certo modo, reafirmar o sentido que Nietzsche atribuiu à moderna tragédia? De tão trágica se torna risível? Cqd ? ou como queríamos demonstrar…

Frestas da graça

Se o humor impregna nossa realidade, nossa imprensa e nossa literatura de uma forma tão contundente, então nada mais natural do que vermos um sóbrio colaborador de um semanário como a revista Veja a ele sucumbir. Aconteceu com Roberto Pompeu de Toledo em seu ensaio E eles ainda comemoram… (Veja, 1.803, 21 de maio).

No ensaio, o elegante Pompeu aborda a situação do Iraque pós-invasão. Nada mais trágico, como em todo cenário pós-guerra. No caso do ex-quintal de Saddam, tem-se uma dupla tragédia. Primeiro, a destruição e o caos provocados em Bagdá pelo bombardeio anglo-americano. Depois, a própria guerra interna advinda da falta de uma autoridade maior no país. O tiro de misericórdia que Bush imaginava dar no Iraque saiu pela culatra. Aquele país nem será um novo Japão, que se viu beneficiado por um surto de industrialização e prosperidade promovido por Tio Sam no imediato pós-Segunda Guerra, nem granjeará o status de província americana, como Porto Rico. Segundo o ensaísta da Veja, o novo Iraque cheira mais ao Vietnã do pós-guerra.

Apesar da pose de vitorioso, Bush errou drasticamente em suas previsões quanto ao que sucederia no Iraque, no cenário pós-invasão. Nem mesmo Saddam os americanos foram capazes de capturar. O ensaio segue atravessado por uma série de argumentos mostrando a sucessão de desgraças que se abateram sobre o povo iraquiano. Ao final do texto, porém, lá está o post scriptum, a nos reservar grande surpresa:


"P.S.: Os Estados Unidos não terem capturado Saddam Hussein não é nada. Nem os sósias de Saddam Hussein eles capturaram!"


Uma pequena pérola, o humor dando o ar da graça. A tragédia não seria suficientemente grandiosa se não evocasse igualmente uma reação de humor ? o triunfo da dobradinha nietzschiana. E assim, com esse gran finale, Pompeu de Toledo passa a encorpar o rol daqueles que, analisando e lamentando os dramas da modernidade, são capazes de vê-los também pelas frestas da graça e do riso.

(*) Estudante de Jornalismo, editor do Balaio de
Notícias
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