Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Somos todos necrófilos

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ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro

CADERNOS LITERÁRIOS

Deonísio da Silva (*)

Bem que o governador Olívio Dutra poderia mandar erguer uma estátua ao escritor Oswaldo França Júnior bem em frente ao Palácio Piratini, Porto Alegre. Seria expressar a gratidão do povo gaúcho a um corajoso escritor e aviador que liderou movimento para impedir que aviões da Força Aérea Brasileira bombardeassem aquele palácio durante a Campanha da Legalidade, em 1961, o último levante gaúcho no dizer do historiador Joaquim José Felizardo, autor de História Nova da República Velha (Vozes), já falecido.

À época, encastelado nele, o então governador Leonel Brizola chamou o povo para defender a Democracia com armas na mão e o povo foi. O pomo da discórdia era a ameaça de rasgar a Constituição e não dar posse ao vice-presidente João Goulart. Costurou-se o Parlamentarismo, sucedido pelo plebiscito que restabeleceu os poderes presidenciais de João Goulart. Quando o golpe de 1964 triunfou, Oswaldo França Júnior foi cassado e meses depois, em vez de um avião, dirigia uma carrocinha de pipoca pelas ruas de Belo Horizonte. Foi quando resolveu ser escritor.

Lembrei do episódio ao visitar Porto Alegre na primeira quinzena de março, quando o prefeito Tarso Fernando Genro determinou que fossem homenageados os vencedores do Prêmio Internacional Casa de las Américas que vivessem ou tivessem vivido na capital gaúcha, com destaque para o vencedor deste ano, Walter Galvani, com uma biografia romanceada de Pedro Álvares Cabral. E fiquei matutando: aqui está mais um fato literário digno de registro e comentário em nossos cadernos literários, mas é pouco provável que isso seja feito. Quando se trata de autores e livros, sobram rabecões e faltam parteiras. Todas as semanas nossos suplementos literários estão infestados de coisas velhas. E se pululam artigos sobre autores mortos, nem os cemitérios escapam à falta de critérios.

Vida pobre

O que é uma coisa velha nas letras? Bem, ao óbvio: devido ao rebaixamento intelectual da mão-de-obra juvenil nesses cadernos, aliado ao despreparo de vários de seus editores, temos uma sinistra parceria. Quando os autores não têm formação suficiente, escrevem mal, porque desconhecem os assuntos. E quando têm, também. Porque nas universidades criamos um dialeto que leva nossos schollars a escreverem apenas para eles mesmos, para as bancas ou, no máximo, para seus pares. Que a linguagem das teses seja um tanto hermética, vá lá. Mas trazer este estilo para a imprensa é demais. Quem vai ler aqueles ensaios pernósticos? E qual o critério para comentar aqueles autores e aqueles livros e não outros?

Em primeiro lugar o critério que não ousa dizer seu nome, disfarçando-se em muitos biombos, poderia ser qualificado como mortuário. Há várias vantagens. Sobre os mortos, sobretudo se mortos há muito tempo, há livros, teses, ensaios, artigos. A bibliografia é imensa. É só ir lá recortar, dar um trato, encher de citações para simular erudição e entregar ao editor. Quem é o editor? Quase sempre ele conhece o colaborador pessoalmente. No Brasil é ainda muito difícil o profissionalismo, um banco de dados mínimo que possibilite uma consulta rápida, do tipo: faremos um caderno sobre a literatura dos anos pós-64. Quem a conhece? Quem é capaz de levantar autores e livros, distinguindo os autores bissextos daqueles que se consolidaram? Que temas destacaremos? Pergunto, por fim: pode alguém que não é bem informado informar bem?

Sua Excelência, o leitor, ganharia muito com isso. Mas, não! Os cadernos são quase sempre insossos e pernósticos. Os autores vivos são destacados por motivos extraliterários, não por suas obras. Vale quase tudo. Suas sexualidades, suas idiossincrasias, seus outros ofícios ? esses, quanto menos significativos para o ato de escrever, tanto melhor. Domínios conexos, nem falar. Exemplo: alguns dos maiores autores brasileiros vivos estudaram Direito. Rubem Fonseca, no Rio. Dalton Trevisan, em Curitiba. Lygia Fagundes Telles, em São Paulo. No passado, o Largo São Francisco foi berço de escritores como Álvares de Azevedo, Castro Alves, José de Alencar, Fagundes Varela, Guilherme de Almeida e muitos outros. Não é mais? Não sabemos, ninguém se ocupa de ir lá ver o que está havendo, embora a biblioteca da Faculdade de Direito da USP e suas retiradas, assim como o índice de leitura entre os alunos e rápidas consultas nas listas de ex-alunos pudessem dar algumas pistas.

Tenho outras desjeitosas inconformidades. O frade dominicano Frei Betto é hoje, depois dos romances e contos que publicou, um dos nossos escritores fundamentais. Pagou em seus verdes anos, com a prisão, as ousadias políticas. Seu memorial desses anos é bem conhecido. Mas e sua obra de ficção? Ele é sempre apresentado como frade. Ora, isso talvez, chutatis chutandis, equivalha a apresentar Dostoievski como jogador ou como bêbado. E a obra? Quando o livro de Roberto Drummond, Hilda Furacão, foi transposto para a televisão, houve um murmúrio nacional: afinal, Frei Malthus era ou não era alter ego de Frei Betto? Quase requisitei visita à cela do frade, na rua Atibaia, para procurar o sapato de Hilda. Mas que importância tem isso para as nossas letras?

Têm a seguinte: aquilo que poderia ser o fio da meada para despertar o interesse do leitor por autores e livros, virou fofoca. Nossa vida literária é de uma pobreza franciscana! Será que temos que esperar a morte (dos outros, bem entendido) para ler e entender o que se passou, quando as cartas serão publicadas? Cartas? Melhor talvez seria fazer como o procurador Luiz Francisco de Sousa e gravar tudo. No futuro, apresentaríamos séries: os melhores telefonemas de Fulano e Sicrano; os incríveis e-mails trocados entre Ele e Ela, Ela & Ela e, claro, como os tempos são outros, entre Ele & Ele também. Meu Deus, quantos desatinos!

Onde andam?

Quando deixam de lado os mortos, nossos suplementos repetem os nomes dos vivos, não apenas dizendo as mesmas coisas sobre eles, já ditas e escritas ali e em muitos lugares, mas também dando-lhes a palavra para que eles repitam o que já sabíamos, já que parecem ter gravado, não um antigo LP, mas um compacto simples. Já cansei de saber que um foi criar galinhas e deixou de escrever. Deixou? Quando? Escreveu tão pouco que acho que deixou de criar galinhas para escrever, arrependeu-se rapidinho e nunca mais deixou de criar galinhas. Sou fã incondicional das músicas e letras de Chico Buarque. Mas se um escritor gravasse dois ou três discos, os cadernos literários o considerariam músico? A confusão é geral. Nossos cadernos culturais só se ocupam de música!

Como leitor, gostaria de saber o que estão escrevendo, pensando e como estão vivendo escritores cujas obras me fizeram admirá-los. Nomes? O que aconteceu a Raimundo Carrero, no Recife? Seu livro de estréia foi traduzido para o inglês e publicado pela Avon Books. É sobre as confissões de um comissário de polícia que antes de morrer veste-se de branco e narra as atrocidades que cometeu, cônscio do dever cumprido e certo de que merece a salvação. Ainda no Recife, que é feito da poeta Dione Barreto? Não escreve mais? Ricardo Guilherme Diecke, por onde anda? Parou de escrever? E em Goiás: Miguel Jorge, autor de Pão Cozido Debaixo de Brasa e Nos Ombros do Cão, que dividiu com ninguém menos que Rubem Fonseca o prêmio de melhor livro do ano concedido pela Biblioteca Nacional há poucos anos, está escrevendo? Soube que o cineasta João Batista de Andrade ia filmar um livro dele. Está filmando?

Que literatura atormentada está fazendo Antônio José de Moura, autor de livros densos e inesquecíveis como Umbra? Outro dia soube pela Caras que os Barreto vão filmar ainda este ano o romance Videiras de Cristal, de Luiz Antônio de Assis Brasil. Benito Barreto escreveu uma série de quatro romances, Os Guaianãs, que certamente vão entrar para nosso cânone literário como uma das obras fundamentais da segunda metade do século passado. Que é feito dele? Onde encontrar Os Guaianãs? Quem os comenta? E Esdras do Nascimento, cujo mais recente romance, Lição da Noite, papou o prêmio de melhor livro do ano pela Associação Paulista de Críticos de Artes? Que está escrevendo ou pensando em escrever Esdras? E Márcia Denser, Tânia Faillace, onde andam? As duas renovaram nossa prosa de ficção nos anos 70. Certa vez conhecida editora brasileira quis lançar um novo livro de La Denser junto com outro de Odete Lara. A escritora chiou. A outra que fosse tratada como atriz que era. La Denser era escritora e não estava fazendo um filme eventual.

Café de bule

Efemérides? Este ano Salim Miguel comemora bodas de ouro de seu livro de estréia, Velhice e Outros Contos. Vi pelo sítio da RBS que ele é um dos mais votados entre as 20 personalidades do século em Santa Catarina. Mas se não fosse a internet, o que seria dos leitores? Ficariam sem saber de coisas importantíssimas. Visitando esses sítios, rompem o estreito mundo dos costumeiros factóides erigidos por nossa mídia.

Quem nos salva? Os estrangeiros! Vou dar um exemplo sucinto. A melhor e mais atualizada história da literatura brasileira foi escrita por uma italiana. Luciana Stegagno Picchio. Mora, ensina e pesquisa em Roma. (História da Literatura Brasileira, Rio, Editora Nova Aguilar, 1997, 743 pp, papel bíblia.)

Por favor, não me tomem por birrento. Há bons suplementos literários entre nós, mas são raros. Como tenho conversado com os leitores Brasil afora, lamento que suas queixas e sugestões não sejam ouvidas e nenhum ombdusman se ocupe de seus desejos neste campo. Afinal, são os leitores que nos pagam para escrever. Merecem o melhor que pudermos fazer. E merecem, principalmente, respeito, informação, análise. Café no bule, enfim.

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos. É colaborador regular desta página, das revistas Caras e Época, e escreve semanalmente em <www.eptv.com.br>. Seu livro mais recente é o romance Os Guerreiros do Campo (Siciliano/Mandarim).

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