Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sérgio Augusto

REVISTA EM REVISTA

"Uma revista que acreditava no charme das idéias", copyright O Estado de S. Paulo, 24/11/01

"Quando o número de outubro da revista Lingua Franca me chegou às mãos, em setembro, senti logo que o negócio ia mal: papel de capa mais fino e sem brilho. Ô-ou, comentei, à maneira do Rain Man. Antes de morrer, as revistas costumam ficar, além de mais finas, menos vistosas.

Suas capas perdem lustro e consistência; um certo ar mofino lhes desfigura a fachada. Com Lingua Franca não foi diferente. No dia 17 de outubro, seu atual editor, Andrew Hearst, confirmou as suspeitas: ela sairia só mais uma vez, em novembro, e babau.

Intelectuais do mundo inteiro ficaram em estado de choque. Lingua Franca deixou órfãos nos lugares mais insuspeitos. ?Já perdi muitas publicações na vida, mas tenho certeza de que vou demorar muito mais para superar a perda desta?, lamuriou David Remnick, editor da New Yorker. ?Eu deveria ter previsto o que ia acontecer e tentado fazer alguma coisa?, penitenciou-se o ex-colunista do Village Voice Ron Rosenbaum, atualmente no New York Observer, para quem Lingua Franca era ?única, brilhante e insubstituível?.

Superar a gente supera, mas é difícil e toma tempo. Foi duro, para mim, perder o semanário francês ARTS, os alternativos Ramparts, More e New Times – para não falar daquelas publicações em que tive a honra de escrever, como o SDJB, a Senhor, a Realidade, o Pasquim e Opinião. Vai ser duro ficar sem Lingua Franca, precioso antídoto contra o febeapá cultural mundial. Seu desaparecimento ocorre numa época especialmente ingrata para a cultura e a imprensa em geral. Se publicações de ?interesse geral? enfrentam há meses uma crise econômica sem precedentes, imagine como andam aquelas inteiramente voltadas para a discussão inteligente de idéias como Lingua Franca.

Embora gozasse de enorme prestígio junto à intelligentsia, já tivesse sido premiada como o melhor exemplar da espécie em 1993, e dispusesse de anunciantes fiéis, se bem que relativamente modestos, como editoras universitárias, associações culturais e publicações literárias, e apenas um de grosso calibre (a vodca Absolut, permanente em suas contracapas até dezembro de 2000), precisaria do apoio de uma fundação para manter-se de pé sem tropeços. Um misterioso mecenas lhe segurava as pontas, mas seus cheques pararam de chegar à redação no primeiro semestre deste ano.

Mês passado, Lingua Franca completou 11 anos de ininterruptos bons serviços à circulação de informações, opiniões e textos inteligentes sobre tudo quanto é assunto. Fundada por um professor de francês, chamado Jeffrey Kittay, era o sonho de todo acadêmico sem goma na alma e de qualquer jornalista cultural não corrompido pelas fatuidades do populismo e da indústria do entretenimento. Exemplos de uma nova maneira de escrever sobre o pensamento e suas conseqüências, seus artigos e reportagens desmontavam falsas reputações universitárias, levantavam polêmicas saudabilíssimas, desmascaravam picaretas e revelavam teorias que só mais tarde chegariam às livrarias e à grande imprensa. Sempre em ?linguagem de gente?; ou seja, sem jargão, nem vulgaridade. Virou um modelo, o padrão pelo qual todas as publicações do gênero passaram a ser avaliadas. A seção Arts and Ideas, do New York Times, foi criada por influência de Lingua Franca.

Os vigaristas do sofisma e os charlatões do ininteligível sofriam o diabo em suas páginas. Foi em Lingua Franca que, em 1996, o professor da New York University Alan Sokal revelou que um ensaio abstruso que publicara na sisuda Social Text, sem sofrer qualquer restrição, não passava de uma cascata para enganar e desmistificar a empáfia dos mandarins científicos, ponto de partida para o livro Imposturas Intelectuais. Nem a revista Time resistiu a esse explosivo babado acadêmico. E assim foi que Lingua Franca virou capa do mais lido semanário americano. Sua tiragem não sofreu alterações (continuou em torno dos 15 mil exemplares, apenas 2 mil vendidos em bancas e livrarias), mas vários de seus colaboradores começaram a ser cooptados pela grande imprensa, sobretudo pelo New York Times, que para suas hostes arrastou a editora senior Emily Eakin e os editores contribuintes Margaret Talbot, Emily Nussbaum e A.O. Scott.

Foi em Lingua Franca que tomei conhecimento, por exemplo, do Shaxicon Database, banco de dados dos textos de Shakespeare, criado por Donald Foster. Também foi em suas páginas que primeiro li sobre a existência de uma equipe de matemáticos israelenses que jura ter provas concludentes de que o Velho Testamento foi escrito por Deus, ou melhor, Jeová. E sobre a acusação que o filho de Cecil B. De Mille fez ao guru Carlos Castañeda (?É uma fraude completa?, assegura Richard De Mille).

E sobre a convivência de Hitler com Ludwig Wittgenstein numa escola primária de Linz, suposta origem do antisemitismo de Adolf. E sobre o principal cúmplice dos aliados na Primeira Guerra Mundial: um fungo que destruiu as colheitas de batatas de 1915 e 1916, dizimando de fome 700 mil alemães. E sobre a invenção do IEA (Intelligent Essay Assessor), programa de computador capaz de avaliar textos como um professor exigente o faria, indispensável software para qualquer estudante de língua inglesa. E sobre as traições cometidas pelos intelectuais iugoslavos do prestigiado grupo Praxis, nos anos 60 e 70. E sobre o pioneirismo do nazismo na descoberta da ligação entre o fumo e o câncer.

Alexandre Kojève espião da KGB? Lingua Franca deu na frente. Semiólogos britânicos vendem seu know-how a agências de publicidade? Isso e também a guinada para a esquerda do ex-tatcherista John Gray e do ex-reaganauta Edward Luttwak foram furos de Lingua Franca. Assim como a suspeita de que o escritor alemão Ernst Jünger ?inventou? a Internet.

Se não fosse ela, eu continuaria ignorando que a mais letal das armas americanas, para Kruchev, não era um míssil, mas o dry martini; que quando Jacques Lacan visitou Nova York, em 1975, seus guias o apresentavam aos nova-iorquinos como Jean-Paul Sartre; e que conselho a escritora inglesa Rebecca West deu, por carta, a Ingrid Bergman, quando esta ainda estava em dúvida se trocava ou não o marido sueco pelo cineasta italiano Roberto Rossellini.

Sim, dava de tudo em suas páginas. Dos manuscritos secretos de Mikhail Bakhtin (revelados por Matthew Steinglass) a um crime escandaloso envolvendo Nietzsche e Lacan. Da celeuma em torno das memórias de Dimitri Shostakovich à revolução que o náilon fez no mundo da moda. Da recente reforma ortográfica do alemão (a primeira desde 1901!) a um concorrido congresso sobre Frank Sinatra, organizado pela Universidade de Hofstra, que atraiu mais de 1.200 pessoas a Long Island, oferecendo 43 painéis e 120 teses (numa delas, o Velhos Olhos Azuis era comparado a J.D. Salinger e Albert Camus).

Presença esporádica, o Brasil só mereceu atenção, salvo bobeira de minha parte, duas vezes, ambas no mesmo ano. Na edição de março de 1999, um perfil de Roberto Mangabeira Unger, professor de Harvard e eminência parda de Ciro Gomes. No número seguinte, Ben Ratliff tratou com chá e simpatia o livro de Hermano Vianna, Império do Samba, traduzido nos EUA pela University of North Carolina Press. Unger foi definido como um ?agitador intelectual? que ?despreza as elites e nutre afeição pelo caos? e comparado ao mexicano Jorge Castañeda, então grão-vizir do presidente Vicente Fox. Claro que ao montar o seu curioso e justo mapa da poesia universal, a que batizou de Atlas of the Difficult World, John Palattella não se esqueceu de Carlos Drummond de Andrade. Corrijam, pois, o placar. Lingua Franca nos deu, no mínimo, três colheres-de-chá.

Numa elegia à revista, publicada no New York Times de domingo passado, sua ex-editora contribuinte Judith Shulevitz (agora no Slate.com) levantou as eternas mazelas da imprensa nanica: público qualificado mas reduzido, logo pouco atraente para o mercado publicitário; as inviáveis despesas de assinaturas (não saía por menos de US$ 50 o custeio de cada novo assinante); a falta de um patrocinador permanente. ?O problema das pequenas revistas é serem, justamente, pequenas e destinadas a um público pequeno?, escreveu Shulevitz. Como podem sobreviver? Talvez porque na praça há tanto tempo, as centenárias Harper?s, The Nation, The Atlantic Monthly e The New Republic conseguiram sobreviver a centenas de publicações de massa graças ao prestígio que conquistaram e à mobilização de recursos junto a abastados simpatizantes.

Shulevitz duvida, com razão, que o ?impulso quixotesco? que mantém vivas revistas como Lingua Franca consiga florescer na atual desconjuntura econômica. O futuro, arrisca, talvez esteja nas fundações, mas receia que o ?horror burocrático à controvérsia?, que a maioria delas parece sentir, ponha tudo a perder. Para ela, o ideal seria que o governo criasse um fundo de auxílio para criação e manutenção de publicações intelectuais sem fins lucrativos, como já existe para os museus e instituições afins. Isso é utopia. Ainda está para nascer governo tão magnânimo. E democrático o bastante para não exigir, em troca, um jornalismo cultural chapa-branca.

Ron Rosenbaum, um otimista, sem dúvida, acredita que de algum ponto, quiçá do céu, surgirá um salvador para a revista, e em breve Lingua Franca estará de volta. Promessa nesse sentido foi feita por Jeffrey Kittay. Antes, porém, ele terá de se livrar de um processo de US$ 16,5 milhões, movido contra ele e Denis Dutton. Kittay, ao que parece, caiu num conto-do-vigário. Dutton, professor de filosofia da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia, e criador de um badalado site para intelectuais na Internet, virou dono da revista, prometeu sociedade no site à sua editora executiva, depois deu-lhe o cano, e a jovem pôs tudo nas mãos de um bom advogado.

O caso é meio complicado. Mas não tão interessante quanto o conselho que Rebecca West deu a Ingrid Bergman, e vocês estavam doidos para conhecer há meia dúzia de parágrafos. Ei-lo: ?Você pode gostar muito do seu marido, mas precisa encarar o fato de que ele não tem talento algum.?"