Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sérgio Augusto

SPIEGELMAN vs. BUSH

“Spiegelman deixa ?New Yorker? por causa de Bush”, copyright O Estado de S. Paulo, 1/02/03

“Em essência é isto mesmo: por causa da complacência da imprensa americana com a política arquiconservadora e belicista de George W. Bush, o extraordinário artista gráfico Art Spiegelman deixou a revista The New Yorker. Ele esperava que a mais sofisticada publicação americana mantivesse outra postura depois dos atentados de 11 de setembro. Segundo Spiegelman, ?a exemplo do que aconteceu com o New York Times e a imprensa em geral?, a New Yorker também se curvou ao medo de que o ?governo autoritário? de Bush bloqueasse o seu acesso a fontes privilegiadas de informação.

O desabafo foi feito à correspondente do jornal italiano Corriere della Sera em Nova York, Farkas Alessandra. Com direito a uma peroração sobre o estado atual da mídia nos EUA:

?Ela encontra-se nas mãos de um limitado grupo de milionários cujos interesses não coincidem com os do cidadão médio deste país, onde o abismo entre ricos e pobres parece cada vez mais intransponível. Nesse contexto, qualquer crítica ao governo é automaticamente rotulada de antipatriótica e antiamericana. Nossa mídia ignora notícias que no resto do mundo recebem ampla cobertura. Se não fosse a internet, até minha visão do mundo seria hoje extremamente limitada.?

A gota d?água foi a recusa, pelo atual editor da New Yorker, David Remnick, de uma tira em quadrinhos de Spiegelman sobre o pânico que tomou conta dos americanos em geral (e dos nova-iorquinos em particular) depois da derrubada das torres gêmeas do World Trade Center. Com o título de In the Shadow of no Tower (À sombra de nenhuma torre), a série inspirou-se nos atentados terroristas e na experiência de se viver numa cidade ?ameaçada simultaneamente por Bush e Bin Laden?. Acabou saindo no jornal alemão Die Zeit. A única publicação americana que a perfilhou foi a revista da colônia judaica The Forward.

Desde 1992 na New Yorker, publicando desenhos e ilustrando capas memoráveis, fazia tempo que as relações entre o artista e a revista pareciam condenadas a uma ruptura. Mais precisamente desde os últimos meses de 2001. Spiegelman concebeu a histórica capa seguinte aos atentados (toda preta, exibindo as torres gêmeas num tom ligeiramente menos escuro), mas teve dificuldade para emplacar outras que refletiam o seu estado de ânimo pós-11 de setembro.

Bomba – Gerou controvérsias a bomba atômica que encaixou ao fundo da capa da edição de 8 de julho de 2002, inspirada pelos festejos do 4 de julho, o dia da Independência dos EUA. Não menos problemática foi a capa que preparou para o último dia de Ação de Graças, em novembro passado, com um bombardeiro americano despejando perus em vez de bombas sobre um país não claramente identificado. Seu título original, Operation Enduring Turkey (Operação Peru Duradouro), gozava a Operation Enduring Freedom (Operação Liberdade Duradoura) com que o governo Bush batizara os ataques aéreos recém-iniciados contra o Afeganistão. Remnick manteve a ilustração, mas vetou o título.

?Sinto-me um exilado em meu próprio país ou um político dissidente confinado numa ilha?, desabafou Spiegelman com a correspondente do Corriere della Sera. ?Não consigo mais me sintonizar com a cultura americana.? Continua achando a New Yorker ?uma revista maravilhosa?, mas demasiado ?calma e submissa? ao status quo. ?Remnick parece incapaz de aceitar desafios, ao passo que eu ando cada vez mais inclinado a provocações.?

Filho de sobreviventes de um campo de concentração, Arthur (Art) Spiegelman nasceu há 54 anos em Estocolmo (Suécia) e fez todos os seus estudos nos EUA, onde também iniciou sua carreira de desenhista de quadrinhos com apenas 16 anos de idade. Cresceu ouvindo o conselho, aparentemente paranóico, de que o mundo é inacreditavelmente perigoso – e por isso deveria estar sempre preparado para fugir às pressas de algum lugar. Com a mulher, Françoise Mouly, fundou, em 1980, a revista de vanguarda Raw. No final daquela década, lançou Maus, alegórico romance gráfico sobre a saga concentracionária de seus pais, com ratos no papel dos judeus e gatos no dos nazistas. O comitê de premiação do Pulitzer, o mais importante galardão jornalístico da América, instituiu uma categoria especial para premiá-lo por sua originalidade.

Maus, editado no Brasil em dois volumes pela Brasiliense, é um marco dos quadrinhos. Nada de melhor, no gênero, existe sobre o Holocausto. Traduzido em 20 países, inclusive na Alemanha, terra dos ancestrais de Spiegelman, demorou um pouco mais a chegar à Polônia porque seus habitantes embirraram com a taxinomia do autor. Na série, os poloneses são representados como porcos e os franceses, como sapos.

?Respeitei a tradição dos cartuns americanos, nos quais os porcos não encarnam qualquer valor negativo?, explicou-se Spiegelman numa entrevista à extinta revista Língua Franca, destacando o exemplo de Porky Pig, o célebre porquinho dos desenhos animados da Warner, tão inofensivo e simpático quanto o camundongo Mickey. Poderia ter citado também a Miss Piggy dos Muppets e lembrado que o porco é o segundo animal mais inteligente que existe, por sinal uma das razões que levaram George Orwell a escolhê-lo para representar o ditador stalinista da não menos alegórica fazenda de A Revolução dos Bichos.

Pensando bem, os poloneses, traumatizados pela opressão stalinista e versados no romance de Orwell, tinham mais é que ver o porco com maus olhos.

?A única restrição que os judeus fazem ao porco é não ser kosher?, brincou Spiegelman.

Quanto aos quadrinhos, nada mais kosher. Para Spiegelman, os comics são uma arte judaica por excelência. Proclamou isso ao receber, há dois anos, o prêmio Will Eisner, instituído em honra ao seminal criador do Espírito, a quem Spiegelman reconhece como seu mestre número um.

?O gibi está para a arte como o iídiche para a linguagem?, disse em seu discurso de agradecimento. ?O iídiche é um idioma vulgar que incorporou outros, criando um meio de expressão vital, expressivo e mestiço, como os quadrinhos.? Para Spiegelman, a forma dos quadrinhos lembra a maneira como um texto talmúdico se desdobra. ?Sempre reconheceram os judeus como o Povo dos Livros. Mas só depois de Michael Chabon ganhar o Pulitzer de 2000 por seu romance Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay (traduzido pela Record), ficaram sabendo que os judeus são o Povo das Histórias em Quadrinhos.?

Confere. Na pré-história dos quadrinhos há um gráfico de origem judaica chamado Max Gaines, tido como o Gutenberg do gibi. Também era de origem judaica o maior divulgador de quadrinhos no Brasil, Adolfo Aizen, fundador da Editora Brasil-América. E o que dizer de Jerry Siegel & Joe Schuster (inventores do Super-Homem), Bob Kane (nascido Cahn, pai do Batman), Stan Lee (nascido Liber), Jack Kirby (Kurtzberg), dos inventores da revista Mad, Harvey Kurtzman & Al Feldstein, e de Will Eisner?

Heróis de papel – O genial Jules Feiffer, ele próprio judeu, foi o primeiro a tocar nas raízes semíticas dos grandes heróis de papel. ?Só um judeu pensaria em mudar seu nome para Clark Kent?, pilheriou num ensaio histórico, no qual também chamava atenção para o fato de Eisner ter escolhido o nome de Sheena para a célebre rainha da selva dos quadrinhos e do cinema. Sheena é uma corruptela de sheeny, gíria de origem iídiche, que é uma maneira nada lisonjeira de se referir a um judeu; no caso, uma judia.

Voltando ao affair Spiegelman-New Yorker, a menos que a revista perca um pouco de sua calma e passividade, o provocador Art só pretende voltar a colaborar com ela quando não mais se importar em fazer inofensivas ilustrações ?sobre garotos brincando de skate e casais burgueses enchendo-se de compras em shoppings?.

Por incrível que pareça, Spiegelman já fez isso e nenhuma dessas ilustrações será retirada da mostra de suas capas para a New Yorker que a galeria Nuage, de Milão, programou para maio. Até lá, ele decidirá se permanece em Manhattan ou se muda, como é seu desejo, para a Europa. Preparado para a mudança ele sempre esteve. Só não precisará fugir às pressas da perigosa América de Bush. Nem poderia, pois sua mulher tem em Manhattan emprego fixo e de alto nível. Françoise Mouly é diretora de arte. Da revista New Yorker.”

 

MONDE SOB SUSPEITA

“Livro acusa ?Le Monde? de abuso de poder”, copyright Folha de S. Paulo, 26/02/03“O principal jornal francês, ?Le Monde?, é alvo de ataque violentíssimo no livro ?La Face Cachée du Monde: du Contre-Pouvoir au Abus du Pouvoir? (a face oculta do ?Monde?: do contra-poder ao abuso de poder), dos jornalistas Pierre Péan e Philippe Cohen.

O livro chega hoje às livrarias da França, pela editora belga Mille et Une Nuits. A exclusividade na publicação de alguns trechos foi dada à revista ?L?Express?, que dedicou a sua última capa ao assunto, deixando em polvorosa o meio jornalístico e intelectual.

Ontem, o ?Monde? adiantou-se ao lançamento e respondeu aos ataques, com página e meia de artigos e o editorial do dia, acusando os autores de estarem movidos pela inveja e pelo ódio. Anunciou que está processando os autores, o editor do livro, a ?L?Express? e o diretor da revista, Denis Jeambar. Em 1997, o grupo Monde tentou comprar a revista, sem sucesso.

A principal denúncia contra o ?Monde? é a de que a publicação está pondo em risco a democracia francesa, por abuso de poder, lobismo e conduta parcial. O jornal teria, inclusive, ajudado na derrocada do ex-premiê socialista Lionel Jospin, que abandonou a vida política depois de ter sido ultrapassado pelo líder de extrema direita Jean-Marie Le Pen na corrida presidencial de 2002.

Segundo o livro, o ?Monde? contribuiu para a ruptura do premiê com seu antigo parceiro Jean-Pierre Chevènement, que apresentou candidatura própria. Foi o ?Monde? também que revelou o passado trotskista de Jospin, que este escondera ao deslanchar sua carreira no Partido Socialista.

A opção de Chevènement de não se associar aos socialistas é considerada por Jospin como um dos motivos de sua derrota, conforme artigo que o ex-premiê publicou no mesmo ?Monde?.

O jornal teria também se comprometido com a candidatura de Edouard Balladur (centro-direita), em 1995, às eleições presidenciais, contra Jacques Chirac (centro-direita) e a esquerda reunida em torno de Jospin.

?O novo ?Monde? apresenta todos os traços da impostura, mesmo se se trata de uma impostura moderna. É porque ele acarreta uma verdadeira degradação da vida democrática neste país que decidimos levantar o véu sobre esse assunto?, escrevem Péan e Cohen.

O ?novo ?Monde?? a que eles se referem é o que resultou de reformas empreendidas a partir de 1994 pelos jornalistas Jean-Marie Colombani, presidente do grupo Le Monde e diretor da publicação, Edwy Plenel, diretor de Redação, e Alain Minc, presidente do Conselho de Fiscalização, que cuida da saúde econômica da empresa.

É contra esse trio que se concentram as acusações mais duras e minuciosas, na apuração de dois anos dos jornalistas. Segundo o livro, Colombani teria ?treinado? políticos para entrevistas na TV, aceitado viagens gratuitas do festival de cinema de Cannes e da Bienal de Veneza, aumentado seu próprio salário em 85% (para 29.919) e fixado residência fiscal na Córsega, de onde é originário.

Sobre Plenel, os autores descrevem suas relações ?privilegiadas? com o chefe de polícia Bernard Deplace, a partir dos anos 80, considerado ?o segundo policial da França?. Relação que, segundo o livro, ?ultrapassa a que normalmente pode existir entre um jornalista e um informante?.

O livro também diz que a diretoria do jornal oculta a verdadeira situação financeira da empresa, bem como a tiragem real.

Para os autores, o grupo Le Monde registrou nos últimos dois anos perdas ?que ultrapassam 25 milhões?, e sua tiragem média teria sido de 213.014 exemplares em 2001. Segundo o ?Monde?, o resultado bruto consolidado do grupo foi negativo em 13 milhões em 2001. E a tiragem na França e no exterior chegaria 405.983, apurada, conforme o jornal, por um organismo independente, Diffusion Contrôle OJD.”

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“É ?romance de espionagem?, diz diretor acusado”, copyright Folha de S. Paulo, 26/02/03

“A principal resposta do ?Monde? ao livro que pretende denunciar as estratégias de poder e financeiras do jornal foi escrita por uma das vítimas da obra, o diretor de Redação Edwy Plenel. Ele chama o livro de ?romance de espionagem?.

No título, utiliza uma interrogação: ?Le Monde? é um perigo para a democracia??.

Plenel foca mais no modo de abordagem dos autores, buscando traçar um perfil ideológico, do que nas denúncias em si. Ele ressalta como Péan e Cohen insistem na ?francofobia? da atual diretoria do jornal e na idéia de que o ?Monde? estaria se aplicando na tarefa de ?denegrir a França?.

Ele indica como os autores insistem no fato de o diretor da empresa, Jean-Marie Colombani, ser corso, não francês. Como Alain Minc, do Conselho de Fiscalização, é tomado por símbolo do capital mundializado. E como ele próprio, Plenel, além de trotskista, é apontado como agente da CIA.

Para Plenel, o objetivo do livro é ?explícito?: ?Provocar uma crise interna no ?Monde? e impedir que ele consiga federar em torno de si um grupo de imprensa independente?.

A polêmica vai durar. Ela tem enorme alcance na França, onde o ?Monde? é mais do que um jornal: é uma instituição, desde a sua fundação, em 1944, no momento seguinte à libertação de Paris. Desde então, os principais debates do país foram travados em suas páginas.

Para Plenel, acusações contra o ?novo ?Monde?? não seriam novidade -e esta mesma expressão já teria sido usada nos anos 50. ?Péan e Cohen se enganaram de época?, diz o diretor de Redação.”